quarta-feira, 20 de agosto de 2008

A SENTENÇA DOS DEUSES-de Carlos Vilarinho

A SENTENÇA DOS DEUSES é um capítulo de "TRÊS TIROS NUMA HISTÓRIA DE AMOR"

Agora começo a entender melhor o real significado e os mistérios que envolvem a vida e em conseqüência, ou em paralelo, a morte. Não morri então de fato. A imagem do enterro foi criado por mim mesmo dentro do meu cérebro. Acho que foi o susto e a minha entrada no coma. Ali é o meu corpo. E eu aqui, ainda sem o Velho. Ele ficou decepcionado comigo, com a minha vida. Entrei outro dia no sonho de Harmonia, ainda estava vivo. Ela estava confusa. Arrependida. Não percebi qual arrependimento. Mas era uma massa meio mijada. Quer dizer, a cor, a saturação e o cheiro de arrepender-se. A percepção é mais arguta quando se está morto. Antes de estar aqui agora, sei lá onde é isso, fiquei meio abestalhado com o que vi passar, claro que logo em seguida me compus novamente pensando em Harmonia. Vi primeiro passar Helena. Linda, cheirosa, com as carnes e os seios duros, correr com Páris. Em seguida Aquiles, com sua feridinha no calcanhar, largou a lança e corria no bosque com Pátroclo. Pareciam dois bambis. Depois vi Desdêmona passar chorosa entre a decepção e a revolta do amor perdido e sufocado pela megera inveja de Iago, muito parecida com a inveja de Galegão sobre mim, só que Iago tramou e obteve resultado concreto. É triste constatar que o ser humano é muito mais inclinado a semear a escuridão do que simplesmente levar lume à vida. Estou conseguindo aos poucos voltar ao momento do tiro. Consigo enxergar Bernardino Galegão olhando para mim com olhos arregalados e atirando. Mas não foi a bala dele que me pegou. Não sinto a energia perversa de Galegão arrodeando a perfuração do projétil que nem está mais em mim. O médico retirou e deu àquele investigador gordinho. Fui ao sonho de Joel, penetrei nos recônditos dos neurônios do cachaceiro. Um bom homem, meu amigo. Lá, dentro dele só havia um pensamento: descobrir quem atirou em mim. Vi algumas imagens salvas por ele próprio e subitamente uma chamou minha atenção. Uma coisa estalou dentro da minha massa nebulosa que me transformei, pelo menos por enquanto, e o buraco onde a bala penetrou emitiu de mim para aquela imagem uma estrada negra e lodosa. Descobri o pensamento que rondava insistentemente as cabeças de Joel, Amelinha, o investigador gordinho Carlos Antonio e todos meus amigos. Para não me precipitar, corri ao sonho de Amelinha. Lá estavam imagens guardadas da infância, as histórias que contei para niná-la e as mais recentes. A satisfação em ver e atestar o meu amor por Harmonia e uma última que me deixou repentinamente surpreso, a decepção que trazia dentro de si por algo ligado a Harmonia. Não havia, no entanto a imagem que esperava encontrar. Também contei a ela muito rapidamente o episódio, mesmo porque eu propriamente dito não dei a devida importância e ela certamente não absorveu. Correndo de um lado para o outro, me esbarrando em outras almas penadas. Algumas famosas e conhecidas e outras querendo um encosto. Com o aval do Velho fui vasculhar os sonhos e pensamentos de Luís e Mariozinho. No trajeto encontrei a besta que vivia encostada em Harmonia. Disse-me que não gostava de mim nem do Velho. Ia parar para lhe dar uma surra de energia, mas o Velho disse para continuar a busca e que aquilo, o desvendamento iminente, iria influir diretamente na sentença final dos deuses. Luís não era pernóstico como diziam às vezes Mariozinho e Joel. Os sonhos e os pensamentos de Luís eram bem claros. Havia no interior dos neurônios dele uma algaravia sinfônica formada por infinitas notas musicais. Engraçado, eu pensava que só existiam sete notas musicais, Luís criava umas dentro das outras, por isso sua destreza em tocar cordas e sopro, além de arranjar-se na percussão. Havia também a melancolia de ter perdido a mulher que achava amar, para outro homem. Remoia-se na mágoa da traição. Mas lá estava a imagem que procurava, era ele sim. A mesma imagem dos recônditos de Joel. Provavelmente essa mesma imagem estaria também em Mariozinho. E acertei. O Velho riu satisfeito de mim. Senti um alívio brutal. O Velho então me orientou o que fazer. Formatei aquela imagem e coloquei-a nos sonhos de Joel, Mariozinho, Luís e Amelinha. Soprei na cabeça de cada um que era para os quatro encontrarem-se no dia seguinte e tomar as devidas providências contra meu algoz. Essas coisas só morto é que desvenda. Absurdo. O povo está vivo, mas nunca consegue enxergar um palmo na frente do nariz. Agora vou esperar o chefão do mundo interior vir até aqui e me dizer algo. Já cansei de ficar aqui. Ou vou logo para o inferno, para o raio que me parta ou... Não sei. O que me intriga não é aquele cidadão atirar em mim na verdade, mas o Galegão errar. Sempre foi todo prosa, que sabe lutar, sabe jogar capoeira, sabe jogar baralho, sabe ganhar dinheiro, sabe atirar melhor que ninguém... E errou. Vi o investigador falando da bala com uma cruz raspada na ponta, foi Galegão. Aquele indivíduo não gostava de mim, será que ainda terei o desprazer de tê-lo ao alcance dos meus olhos? Será que ainda verei o inimigo dentro do mundo interior? Dentro da morte para ser mais claro. Lembro-me dos caras que fizeram escolas no mundo. Muito deles diziam que nós olhássemos para dentro de nós mesmos. Buda, Jesus Cristo e Sócrates, que agora a pouco o vi passeando e observando as coisas da morte. Esses três mesmo, sempre falaram. Cristo, por sinal disse o seguinte: ”Deus vive no espaço interior, onde Ele deve ser encontrado” e agora atesto para todos os fins. Deus somos nós mesmos. Sinto Deus agora dentro de mim, é como se eu sempre o tivesse, mas nunca havia acionado. Eu acho que nunca acionei. Mas para que então essa cúpula de deuses do universo?
_São os deuses da natureza, filho.
O Velho me disse que há aqueles que cuidam da natureza do universo. É da natureza que emana todo o sentimento que banha o homem. Portanto há esses deuses. São os deuses negros da África, os orixás, os pajés indígenas, acho que Amelinha vai gostar disso aqui, deuses nórdicos e gregos e as divindades da água. Segundo ouvi rumores , desde que cheguei e estou nesse chá de espera, são os donos e donas das águas do mundo que dão a sentença final. Mas engraçado que quem apareceu foi um animal enorme de chifres de búfalo. Me abraçou com compaixão e tornou-se uma guerreira muito parecida com Harmonia. A guerreira dos raios e trovões. Disse-me que Harmonia teria interferido e estava numa forte corrente de oração para me ter novamente. No fluxo da oração foi dado a ela, Harmonia, dois caminhos. Em um ela ia esperar a minha recuperação no mundo do além, onde estou agora. Ia tomar mais um curso de Humanidade, como eles chamam aqui, para não mais desprezar quem quer que seja. Voltaria em breve e terminaria a minha vida que, segundo soube também, ainda seria longa. O outro caminho seria ela também ser abreviada e nos encontraríamos aqui mesmo nessa pedra. Refutei de imediato essa proposta. Só que a decisão não cabia mais a mim. Estava em pauta na tal reunião, o amor proibido, contudo verdadeiro que vivia mais Harmonia. Tanto o Velho mais a guerreira de Harmonia, sua Oyá, me disseram e faziam parte da tal reunião de cúpula dos deuses. Acho que a guerreira veio me testar e o meu futuro dependia do meu desempenho ali junto aos deuses da natureza. Depois me lembrei de um fato importante que ocorria sempre e resolvi eu mesmo ser meu advogado de defesa. Disse-lhes que Zeus tinha amantes em todo o canto do mundo, assim como os orixás mais novos. Nunca tiveram então um amor verdadeiro como o meu e o de Harmonia, nunca sentiram a brasa arder o coração quando o amor dobra a esquina para encontrá-lo em qualquer lugar dali dos céus. E, no entanto eram deuses. Poderia haver tamanha contradição e paradoxo no juízo universal? Deuses podem amar quem bem entende, na hora que lhe for conveniente e não ser julgado, eu, morto agora, não posso amar Harmonia porque ela está casada com um bobão que tramou matar-me junto com o pai. Há minimamente uma discrepância aí. Todos os deuses me olharam com assombro, inclusive Zeus. Tinha que dizer aquilo, sabia que eu e Harmonia nos amávamos verdadeiramente, atestado inclusive pela Yansã dela que veio conversar comigo. Disse-me o estado em que se encontrava, muito, triste, infeliz e revoltada. Jejuando e orando por mim. E eu aqui julgado do vento, como diria um poeta baiano. Soube que foi o Velho e a Oyá de Harmonia quem desviaram as balas de Margarete, a louca da Margarete, e a de Galegão. Em seguida os pajés que acompanham Amelinha vieram me ver. Também falaram que tudo está sendo providenciado, eu só teria que assistir a palestra de Oxalá e demonstrar lá na Terra, eu acho, o que absorvi nessa conferência. Oxalá era um pouco mais novo que o Velho que me acompanha. Carregava com ele um semblante tranqüilo e sereno. E eu me vejo aqui arrodeado de divindades, deuses do universo e mitológicos. Deuses que sempre existiram e deuses criados pela literatura. Será que eu poderia me transformar em deus também? Se a literatura através dos seus escritores criou deuses, então eu como autor posso tornar-me deus. Deus Vadinho. Hilário. Uma vez um escritor mais velho e que muito admiro disse-me que eu estava no caminho certo da verdadeira poesia, disse-me também que era para eu ter cuidado com os monstros que poderiam aparecer para me assaltar durante minha trajetória. Galgar e subir degraus literários são momentos valiosos, ímpares e singulares. Só poucos conseguem. Esses monstros que ele falou, se não estou enganado são: a vaidade e a soberba de si próprio em relação ao resto do mundo. Oxalá falou sobre isso logo no início da palestra dos deuses do universo. Falou também da inveja, meu tema na noite do tiro. E olhou para mim tão sereno, suave e tranqüilo que a princípio fiquei receoso, depois a tranqüilidade dele entrou em mim. Oxalá deu a ordem para eu voltar se eu quisesse. O coma que estava entretido foi só um pretexto para os deuses me conhecerem de perto e receber as orações que Harmonia mandava para mim e para eles. Era uma energia harmônica como ela própria. O Velho me mostrou a ação que a oração tem no universo. Vi extasiado e maravilhado o canal de luz que se abria de Harmonia e chegava até a mim e aos deuses. Trilhando um caminho de palavras reluzentes que acalmavam o mundo. Explicou que há pessoas com o dom de segurar o universo. Disse que Amelinha, eu e Harmonia, nessa ordem, éramos algumas dessas pessoas. Depois de toda a palestra dos deuses, o Velho disse que era para eu responder se aceitava voltar a Terra sabendo da minha missão. Minha missão poética continuaria e respondi que sim. Falou também para que eu soprasse nas letras das orações a minha resposta para que Harmonia soubesse e aliviasse seu sofrimento e dúvida.
Acordei com aqueles aparelhos hospitalares ao meu redor. Não tinha dores pelo corpo, sentia uma espécie de ressaca e o buraco da bala estava dormente. Não havia ninguém no quarto, sentei na cama e comecei a escrever a poesia dos deuses...


Carlos Vilarinho 06/02/08

Um comentário:

Anônimo disse...

Vá em frente, afilhado! E gostei muito!