quinta-feira, 7 de agosto de 2008

A PALAVRA PODE FICAR- de Gustavo Dumas

A vida da palavra. Certo, estava num processo de vagabundagem intelectual e me veio às idéias esse tema, tão vulgar. Vivencio a velha angústia de olhar para a página imagética, formatada, que me assalta a tela e a mente em brancos e não saber direito o que dizer. Há efetivamente um algo a se dizer, sempre que se começa um texto?! Bom, fato é que eu já há muito pensava nesse assunto e Zeh Gustavo nem era nascido: o tal “antes” da palavra, seu quase. Ou pré-quase. Vamolá: eu quero, preciso escrever. Cogito os dois substantivos – vida, palavra. A vida da palavra. Penso ainda: e se eu, sorrateiramente, invertesse a ordem, fizesse um trambique do tema inicial e me propusesse escrever sobre “a palavra da vida”? Como seria? Acharia uma sobre a qual me debruçar para dissertar sobre a vida? Haveria uma palavra, “a” palavra, palavra-vida? Afinal de contas: que, ou quem é a palavra?!

Tá, confesso, estou muito confuso. O tempo vai passando. O tempo sempre vem passando. E passa. Com a vida, com cada vida. É mesmo? Foda-se. Não escrevo para ajudar a passar o tempo; escrevo para atravancar seu fluxo. É uma resistência. Uma pedra no caminho para o fim, um modo de estacar o ritmo da marcha para a morte, de desviar sua atenção. Trata-se de um drible – que pode ser de craque ou de pereba. Um drible-clichê. A palavra pode ser justo esta pedra, esta parada, este toque por debaixo das pernas do fim de cada qual de nós. A palavra é um modo de sobrevivência, permanência pós-morte? Pois a vida da palavra pode ser muito mais longa que a vida humana.

Mas, voltando à segunda questão: qual seria a palavra da vida? Pensei, pensei e só cheguei a uma: vida. Sim, a palavra da vida é: vida. Ou melhor, o verbo. Viver. E o ciclo da palavra? Sua vida seria eterna?! Não, lamentemos, porém palavras morrem também. Ou se transformam em outras, adquirindo um novo corpo, admitindo uma nova carcaça de sentidos. O desuso talvez seja o pior castigo para as palavras. O esquecimento no asilo das estantes de bibliotecas, entre milhares de páginas velhas, carcomidas, amareladas, túmulo sério de traças.

Cada palavra, ao nascer, recebe uma ou duas ou mais vidas. Há, potencialmente, ao menos uma vida escrita e uma vida falada para cada palavra viver. Um vocábulo pode nascer de boca em boca e não receber um registro formal de seu nascimento, via dicionário. Tal reconhecimento demora, às vezes nem acontece. Todavia tem palavra que já nasce com o registro. E não recebe uma vidinha, digamos, mais informal. Nela não se fala, só se escreve. Tem palavra, entretanto, que nasce e se estabelece na boca e na munheca, na fala e na escrita, no cotidiano e no seu inventário, no uso vulgar e no dicionário. Trata-se de um privilégio, que o falante não é sujeito de gastar saliva à toa.

Penso ainda no antes de cada vocábulo, nos fatos e atos que acabaram por formular uma palavra. Discussões, teses, debates, troças. Ou um simples processo de ir nascendo, até brotar de todo, sem forçar. Imagino a época em que a palavra não recebia, de jeito maneira, um registro formal. A palavra, creio, vivia mais intensamente, tinha mais peso, podia fundar uma tradição ou fazer fermentar uma cultura inteira. Quantos não caíram por causa de umazinha?! Em contrapartida, nessa época, devia haver um autêntico genocídio de palavras. Muitas, ainda recém-nascidas, sucumbiam sem dó de ninguém. A competição, a concorrência entre vocábulos por um mesmo significado devia ser igualmente forte. A economia da linguagem tende a não perdoar as palavras mais débeis, menos oportunas ao dizer característico de um lugar, de uma época, de um estrato social. Em compensação, palavras dúbias importunam porém são afagadas com risos, aos conchavos: a maledicência possui posto cativo na história das civilizações, afinal.

O que era o mundo dos homens sem haver uma língua qualquer de referência, antes do primeiro arbítrio, do primeiro significante prenhe de um significado que todos passaram a reconhecer após um breve ciciar de sons? Penso na sensação: a primeira palavra. E o primeiro palavrão? O primeiro fogo, a primeira roda da linguagem verbal. E o primeiro bate-boca? Desde então, palavras surgem, nos insurgem, grudam em nosso falar e ouvir. Necessidade? Sem dúvida. Mas, por que uma, e não outra? Por que “pétala”, e não “tépala”?! A criação da primeira de uma família de palavras só pode ser comparada à vitória de um espermatozóide, entre milhões, para gerar uma vida. As palavras não surgem, pois, apenas por urgência. Surgem também por uma força estranha que faz casarem-se sílabas, combinarem-se sons, criarem-se significados.

O nascimento da vida, portanto, é processo parente do nascimento de uma palavra. A palavra também é parida, cuspida ao mundo, e normalmente atende a uma filiação bem evidente. Eu disse normalmente, porque tem um monte de palavra aí que nasce sem pai nem mãe. E com uma força de expressão! Como no ciclo da vida humana, a palavra se alimenta, cresce, amadurece. Quando envelhecem, as palavras perdem importância, são esquecidas; como as pessoas. A palavra morre quando não é mais útil, mas não só. Às vezes, simplesmente, enjoam dela. Hoje, por exemplo, o pessoal prefere uma solitária imagem às mil palavras, e nisso vão mirrando alguns vocabulários pessoais, a ponto de parecerem uma coletânea de grunhidos. A palavra, entretanto, diferentemente de nós, nunca é sepultada; pode ressuscitar a qualquer momento, altiva, revigorada, comum, usual. A palavra pode ficar para sempre, mesmo que para fazer perdurar nossos silêncios, pelos tempos.

Gustavo Dumas é escritor e revisor de textos, autor, entre outros livros, de “Idade do Zero” (Escrituras, 2005) e “A Perspectiva do Quase” (Arte Paubrasil, 2008), os quais assina com o heterônimo de Zeh Gustavo
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