sábado, 30 de agosto de 2008

NOSTALGIA URBANA- de Carlos Vilarinho

Foi num clima de romance que fui pela primeira vez à Ponta de Humaitá, na Boa Viagem. Tinha dezesseis anos e Berenice quinze. Foi a ela que ofereci “chega de saudade” como se fosse eu que tivesse escrito, dois dias depois ela descobriu tudo ao ouvir um vinil que eu mesmo presenteei e não lembrava. Tom & Vinícius. Zangou-se com razão, daquele dia em diante comecei a reparar melhor as imagens ao meu redor e rabiscar letras genuinamente minhas para Berenice. Pensamos assustados, já no Humaitá, que todo aquele sol que ali se ia, cairia sobre nós e nos engoliria. Era um sol enorme e alaranjado, parecia estar se espreguiçando depois de irisação e um dia de trabalho quente, que a Ponta de Humaitá oferecia a nós dois amantes. Eu jamais esqueceria Berenice e seus olhos oblíquos e tristes. Seu rosto liso e macio que dava forma a sua voz pueril e seus cabelos de Iracema. Naquele instante ali, esqueci a seleção de Telê. Só Berenice dissuadia meu pensamento canarinho, até então o que me importava era ganhar a copa do mundo em Barcelona, Madri ou nas ilhas Tenerife. Sonho que se frustrou mais uma vez naquelas datas, como se sabe. E andar com Berenice sobre a cidade de São Salvador.

Desde sempre sentia meu envolvimento intrínseco e peculiar com os lugares que ia, sobretudo com meu pai. Lembro-me perfeitamente que toda vez que chegávamos, eu e meu pai, a praia de Itapuã, aquelas ossadas gigantes de baleia espalhadas sobre a praia me davam medo e dor de barriga. Era filho da cidade e de vez em quando ouvia umas gargalhadas invisíveis de satisfação comigo mesmo. E achava que a natureza de Salvador ria para mim. A apreensão também me assaltava quando ouvia minha mãe falar de Fundação Politécnica. Era o dentista. Tinha pavor, aliás, ainda tenho. No entanto quando chegava à Avenida Sete de Setembro e via o movimento, já corriqueiro dos anos de chumbo, anos setenta, de AI’s e estrelas de ombreiras mal polidas, onde todos estavam submetidos à obediência civil americana, estúpida, grosseira e mortífera, sentia, entretanto e paradoxal ao movimento turvo, um alívio de amálgama. De uma forma ou de outra estava protegido em minha cidade. Praça da Sé e o Elevador Lacerda, Farol da Barra e a praia de Ondina.Tudo romântico e paisagístico, gostava de beber Fratelli e crush. A vida era muito mais que um sol estático, amigo Drummond. No entanto esse conjunto de coisas e sentimentos de urbis deve-se somente à minha existência. Em fazer parte do espaço que não sei como me escolheu e acolheu. Sem ser poeta e andando em lodaçais macadames, bebo, fumo, desejo, julgo, riu. Um riso largo, caliente e tropical de São Salvador. Ao mesmo tempo em que entristeço, não sei mais onde está Berenice. Torno-me então poeta e sinto toda a quentura morna, modorrenta e cheia de pachorra, de um pôr do sol na lembrança tupi da índia Berenice. Suas frases tremidas e arfantes ao brincar comigo na rampinha do Teatro Castro Alves no dia que o papa morreu. Ela sumiu, virou-se e esqueceu que existo.
Agora estou na rua, como um miserável vagabundo. Rindo à-toa, sem itinerário, mas na rua, como um poeta sem casa engolido pela cidade de santos sábios velhos e africanos. Pregando poesia e arte nessa infinita inquisição. Na contramão, há as pregações irresponsáveis de inquisidores que não querem o poeta por perto. Ele, eu o poeta, bole insistentemente com a consciência, e a inconsciência coletiva ou singular, de quem pára para ouvi-lo. Deus e o diabo estão por aqui, na rua. Na 28 de Setembro, na Travessa da Ajuda, no Porto da Barra. Na madrugada com os porcos que servem à literatura marginal. À margem do querer e eu também escrevendo sem margem. Do ler, romantiquê. Não mais fui à ponta de Humaitá e agora só bebo conhaque. Hoje sem Berenice meu pensamento é imundo. Vivo nos becos sombrios ao lado do carnaval, na Rua do Sodré e na Gamaleira sem dilúculo de dedos rosados. Sem crepúsculo sonolento e romântico lá da ponta...

Carlos Vilarinho 27/08/08

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

PERDA- de Edinara Leão

Segunda-feira
Teu corpo ainda vi um dia trancafiado de ânsias. Melenas de mulher largadas nas desamarradas coleiras de um cão. Deixas-te só e deixas-me. E vou. Só para conferir a nesga de verdade que resta depois de tudo.

Terça-feira
Escrever é fazer doer o que insiste em doer e não o que a vida permitiu o esquecimento da dor. Largas baforadas trazem a ausência ainda não aplacada, só contida. Continua a sangrar. Solução não há. Consolo: existir. Existem outras mãos.

Quarta-feira
Internet. Luzes. Deslizar de mãos no volante. Deslizar de rodas no asfalto. Nenhuma lágrima, só o nervoso das mãos. Transparência das horas – que não passam, no desfile das areias do tempo.

Quinta-feira
Miro girassóis no deserto. A quentura de teu hálito vem-me no café da manhã e esparrama melancolia. Nuvens de ilusão sobrevoam a mesa. E passam. Realmente passam. Já não há lugar para elas nos curtos caminhos em que o sonho jaz apagado.

Sexta-feira
Hoje é sexta. E tudo se arrasta. Não há expectativa. Também não haverá fim de semana. É outra segunda. Todo dia em minha vida é segunda. O teu corpo reaparece qual miragem – tuas-minhas ânsias. Meu corpo é torpor e o instante desmente o ponteiro. Não passa. Lassidão.

Sábado
Não levantarei. Nem hoje nem nunca mais. Levantar é sinônimo de reação. Para que enganar-me? Enganar quem? Até o cérebro recusa-se a funcionar. Uns chamam a isso “depressão”. Que seja! Dêem o nome que derem. O que são os nomes?
Não permitirei o abrir dos olhos. E basta.

Domingo
O véu esmaece o caminho. Imóvel é a pedra – a mover destinos. Desalento. Angústia. Cama sem guarda. Fitas no chão. Mundo no chão. Despencar. Nem muletas carregam pernas que não querem mover-se. Só minhas mãos ainda vislumbram medrosas a seda das desalinhadas mechas do cabelo teu. E o resto é perda...




Edinara Leão é escritora gaúcha

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

O CORPO - de Flamarion Silva

Descontinuariam a festa por causa da morte de Romildo? Tomara vivalma não se lhe dê conta. Achado, decerto não haverá festividade. É costume do povo, que é respeitoso, não demonstrar alegria quando parte um irmão. É uma cumplicidade de dor, como quando o amigo se vai, deixando saudade colada à lembrança. Quem não se lembra de Seu Aniceto de dona Carmélia? Expirou no Jardim das Flores, mas lá, sem campo-santo, veio às carreiras ser enterrado em Barcelos. No dia do sepultamento, uma bebedeira no bar de Preto. A radiola alta. Mas, pronto, bastou o povo avistar o cortejo lá em cima, no Mirante, ligeiro o som silenciou. Quem estava de chapéu, sacou-o fora. Todos persignaram-se e fizeram o sinal-da-cruz em reverência. Um cujo abriu caminho para o dito:
“Vá com Deus, meu irmão.”
E logo todos o seguiram:
“Vá com Deus.”
Indo.
O sino principiou a bater na igreja de Nossa Senhora das Candeias. Anunciava a morte e convocava o povo para o cortejo. Quem ouvisse a trágica canção, logo fazia a leitura:
“Vixe, meu Deus, morreu um’alma, e não miúda, de anjo; pelo ritmado do badalo... o alteado... gente grande.”
Porém, o povo queria a dança, a cachaça, a esfregação, a safadeza, a putaria. Trezentos e sessenta e cinco dias na folhinha subtraídos, um a um, do levantar ao cair do sol, os dias compridos. Tão aguardada festa! Pois bem. Romildo que ficasse lá. Quem mandou subir em árvore? Pegar passarinho a mão? Eis o que se deu: despencou lá de cima. E cá embaixo, nas estacas, o corpo cravado. Alguém, sem coração, dirá depois:
“Quem lhe tem pena? Estragar a festa... Vá ser azarado assim no inferno!”
Olhe o diabo: dona Branca, mulher de Seu Miguel de dona Rola, havia-o de ver. Um mal estar a levou aos matos, arrancar folhinhas de chá. Bateu os olhos no corpo de Romildo. Diria, não diria, apodreça até amanhã! Nem isso a peste pensou. Deu a gritar. Gritos de morte. Diferenciados das batidas no anúncio de alguém já morto. Aí o momento é desigual. Diferente do sino que já bate consciencioso da morte. O grito de dona Branca declarava o exato momento do antecipado confronto. Pois quem morre, mata muitas vezes, até aquietar-se sob o terreno da memória, o defunto. É uma cadeia que se sucede. Primeiro o morto original, e no justo instante dona Branca de Seu Miguel de dona Rola, mais logo todo o mundo a morrer mais um bocadinho. Todos com o seu quinhão da Dona Fatídica. Até o morto, o de verdade, ser enterrado de vez. E, ainda assim, mesmo depois de amanhã e mais, mesmo sob o chão lacrado, às vezes, na lembrança vem, como alva garça, avoada a alma matar um pouco quem vive. E como apossa-se-lhe suave no pouso! Mas cravam-se-lhe as unhas na alma, irmão. A gente chora que doem os ossos. É costume da gente se lembrar, gostar de se matar, avivando o sofrer.
Por esse então, a gente embriaga-se toda. Um motivo tem: se há dor, é preciso esquecer. E, na bebedeira, os motivos se confundem, os objetivos tornam-se desvirtuados, os braços se agarram a tudo, pois a tontice é muita, e as pernas, tantas embaralhadas, assim vão-se a valsar essa dança doida de bêbado.
A gente concorda em fechar os olhos diante do morto. Gente, pois não somente dona Branca de Seu Miguel de dona Rola o viu, assim como Zeca da Biriba, Manuel do Brejo, o rapaz que se enamora de Dadinha, e quem mais, só Deus sabe! Que mundo, este!... Bem, o fato é que, resolvido, sem encontro marcado, ficou tudo conforme: ninguém viu o corpo de Romildo enfiado nas estacas. Foi tudo assim como se concluíssem: os mortos, aos mortos; a gente vai à festa.


Flamarion Silva é escritor baiano.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

ENQUANTO AS SERPENTES DORMEM AS CARALHAS SE DIVERTEM- por Zeh Gustavo heterônimo de Gustavo Dumas

O terno prata me ressuscitava a elegância mofada, disse-me um vulto-eu, voz-que-vinha, altiveza evocada de dentro do espelho amarrotado lá da casa velha de Madame Pompom. Íamos a um casamento muito chique. Eu estava saindo com Madame Pompom e precisávamos apenas comer e beber como dois durangos de folga, sem maiores preocupações.

Logo chegamos, Madame foi acionada para funcionar nos preparativos. Madame Pompom se sentia importante quando lhe confiavam tarefas em ocasiões especiais para os outros.

— Agora você pega esses dois pintos e enfia na boca daquelas serpentes.

Eis a Dona Mãe da Noiva, classuda, inteirona em seus enta-e-blau de idade. O Pai da Noiva não existia, estava morto e recebia as pessoas com um sorriso ocre de coveiro arrependido. Falava muita abobrinha e eu fugia dele indo ao banheiro. Eu tenho uma tática de provocar o mijo, quando me aporrinham.

Os perus vinham com suas respectivas bolas, e Madame esforçava-se para desguiar dos olhares curiosos dos convivas antecipados que salgavam todo o ambiente. Madame Pompom enfiou com jeito os dois cabeçudos na goela estreita das duas serpentes vivas. Dá-lhe, Madame! Caralhas na boca das serpentes, a festa podia agora começar. Eu não era daquele planeta mas continuei de butuca no movimento, parecendo alguém muito interessado.

Os minutos miudamente correram. A platéia encheu. Os burburinhos trabalhavam até o teto do lugar e Madame Pompom cumpria as ordens da Dona Mãe.

— Pega as mantas de ouro das damas-de-honra. Rápido! Rápido, ela já vai entrar...

Ela era a Noiva, cuja Dona Mãe estava muito estressada. As pessoas ficam estressadas com essas bodengas de família. Música, maestro, que lá vem, pois não, a Noiva, cheirando a orvalho de lua-queijo. Madame, eficiente, atravessou discretamente o pátio e a canção-comum que tocava e os olhares que se voltavam todos para a de-branco. Madame Pompom estava invisível aquela noite! Só que o baú onde deveriam descansar os áureos trapos encontrava-se surrupiado. Oh, houve uma comoção!

E eis que surge... uma louca. A Louca! Apareceu com as tais mantas, penduricadas sobre o corpo magro com barriguinha. As loucas em geral são assim, magras com barriguinha. Sua presença de espírito parecia incentivar as serpentes de caceta na goela, que passaram a executar dancinhas desensaiadas, em algazarra. Naquele tempo os perus de serpente sofriam muito, coitados.

— Olá, eu sou a Louca da história! Aqui estou eu, ha ha ha! Ha ha ha!

A nossa vilã de filme C balançava as vestes, esfregando as mãos rechonchudas na genitália louca. Porém a Noiva não demoraria a retomar o seu protagonismo no evento. Precipitou-se uma cena sórdida – e eu a tremer de abstinência alcoólica!

— Ora ora, e eu, que sempre fui a princesinha, a virgem da hora?! Agora quero mais que se foda!

Súbito arrancou o vestido. Uau! Nossa diva estava de calcinha de algodão branca rabiscada de oncinhas vesgas.

— Já que essa Louca aí estragou tudo, venham me comer! Eu sei que todos estão doidos pra meter em mim, podem vir!!!

Doce menina... Eu já me dirigia ao sacrifício quando Madame Pompom interceptou-me com um duro olhar de reprova. O Pai da Noiva tentou apartar o clima que se gerava, ali.

— Filha, pare com isso, onde já se viu?...

— Você?! Pensa que esqueci que você cheirava minhas calcinhas quando eu era pequena, seu velho imundo?

A platéia, não sei por quê, ululava. A Louca girava com suas mantas douradas. As serpentes exercitavam seus perus na boca. Madame Pompom corria de um lado a outro. A Mãe da Noiva dava ordens, com estampa de horror na testa de rugas pintadas. De minha parte, digo que nunca suportei escândalos e comecei a me aborrecer: e a boca livre?!

Resolvi tomar uma providência. Cheguei-me ao Noivo:

— Ei, cara, comeste a Louca ou não, afinal?

Ele não gostou do tom da minha pergunta.

— Bom, eu vou andando... Vou procurar alguma coisa pra beber, tá a fim?

Ele gostou do tom da minha pergunta. Fomos andando.

— Onde vocês pensam que vão?

Era Madame que nos seguia, matreira; na mão direita uma faca de cortar bolo, que não deixava espelhar tristezas.

— Vamos transar, topa?

— É, só até essa coisa toda aí se resolver – o Noivo se soltava.

Madame Pompom sensibilizou-se com tão inocente gracejo e permitiu às nossas caveiras irem se embebedar em relativa privacidade. Ela tinha muito o que fazer. Eu e o Noivo ficamos falando de literatura, entre copos derrubados. O Noivo era um cara boa-praça, lia bastante os clássicos.

— Para poder falar mal... Muitos desses caras não bebiam!

Era a primeira vez que eu concordava com algum ser humano num papo sobre literatura. Depois ainda conversamos sobre os escritores que bebiam e sentiam e expressavam sem frescura suas dores, escritores cujos textos normalmente possuem manchas de merda e de sangue que os fazem morar à margem da avenida cânone.

Papo vai, papo vem, amanheci novamente de ressaca, todo vomitado. O vômito não era meu. Nem de Madame Pompom, que nunca vomitaria na vida. Havia vários guarda-chuvas molhados pelo chão e Madame tinha saído, eu acho. Mas deixou as serpentes de caralha na boca tomando conta de mim. Eu era um sujeito perigoso, podia denunciar todo mundo por tráfico de serpentes encaralhadas. O Noivo tava no chão, abraçado à Louca, toda vestida de noiva. Cabra danado! A Noiva reluzia na outra ponta, com um velho todo babado em cima dela. Pensei, pensei... E achei mais jogo voltar a dormir, enquanto as caralhas e as serpentes sonhavam com um mundo melhor.

* Texto concebido a partir de sonho de Ana Cecilia Reis.

Zeh Gustavo é heterônimo do escritor Gustavo Dumas. Publicou os livros de poesias “Idade do Zero” (Escrituras, 2005) e “A Perspectiva do Quase” (Arte Paubrasil, 2008), ambos pouquissimamente conhecidos. Faz sua estréia prosaica neste Algo a Dizer.
E-mail para contato: zehgustavo@yahoo.com.br
contato@algoadizer.com.br

domingo, 24 de agosto de 2008

O BALÃO AMARELO- de Clevane Pessoa

Pelas ruas empoeiradas no calor intenso, o menininho caminha com sua mãe. De vez em quando, ela sacode mãozinha firmemente encaixada na sua.
– Anda Zezinho!
Ele se esforça, mas é difícil acompanhar a mulher, no seu passo rápido e decidido. As pernas da criança são finas, a barriguinha estufada, os cabelos ressecados, espetados e quase sem cor definida.
– Ele está desnutrido, mãe, afirma a pediatra do posto onde o levou ontem, depois que ele passara a noite quase morrendo sem ar, numa crise de "laringite estridulosa " que nome, mas o guardara porque a médica chamou um acadêmico e usando o corpinho exausto, dera toda uma aula à sua frente.
– Tome essas amostras grátis, mas cada caixa tem apenas três comprimidos, essas duas dão seis, e ele vai tomar três ao dia, de oito em oito horas.
A pediatra escreveu numa das caixinhas a posologia, passou com cuidado as cartelas metálicas para ela, amassou cansadamente, as duas outras, com o pé calçado no mocassim branco repintado dezenas de vezes, meio cambaio pelos pés inchados, fez um carinho no rostinho sofrido do meninozinho, piscou para ele um dos olhos edemaciados, e sorriu um sorriso de canoa, que iluminou, por momentos seu semblante em "moon face" e passou para ele um balão, já cheio, que fazia a enfermeira encher tão logo chegava. Uma espécie de mágica, doada por laboratórios-e quando não recebia os envelopes plásticos com as coloridas promessas, abria a bolsa, catava as moedas e pedia à Tetê, sempre bonachona, que fosse à papelaria na esquina e trouxesse uns.
Os balões faziam choros se trancarem, lágrimas pararem de escorrer, distraía os pequenos enquanto ela conversava com os acompanhantes, quase sempre as mães, as avós, às vezes uma vizinha.Muito poucas vezes, os pais, mas com essa leva de desempregados, agora mais homens traziam os filhos à consulta, a maioria parecendo constrangida ou excessivamente simpática:mesmo a médica sofrendo de insuficiência renal, o azul dos olhos, as roupas brancas eram um oásis no cotidiano daqueles homens...
A mãe do menininho foi embora com ele, depois que a injeção foi-lhe aplicada, fazendo-o chorar baixinho. Apressada. Sem dinheiro, ia rasgar a receita, mas pensou que talvez pudesse usá-la para obter algum e comprar a pinga. A água ardente, aguardente. Que descia queimando, agitava o estômago, mas a deixava sem fome, sobrando uns trocados para comprar chips para o filho. Ele gostava, parecia que era muito, ele brincava com uns discos pequenos que vinham de brinde e depois que ele dormia, ela juntava a outros e depois a vendê-los ao moço do violão, que fazia artesanato e vendia na porta da igreja .
Ele lixava pacientemente no chão áspero, dando-lhe uma forma de gota e depois pintava com esmalte de unhas. Transformava em palhetas, que vendia ou usava. Uma vez ela achou numa lixeira um pacotinho de lixas de unha, que levou para ele. O moço disse que não podia comprar, então ela lhe fez o presente.Ele ficou tão alegre, quanto se houvesse ganho um relógio.
– Diacho, como vou dar esse remédio na hora certa, se não tenho relógio?
A mãe olhou o pequeno. Estava sonolento, mas precisavam andar.
Ela sentou-o na beirada de um laguinho que havia na praça e com um lenço de cabelo esfarrapado, que molhou na água parada, limpou o rostinho da criança. O garotinho sentiu o hálito sempre mesclado ao álcool, que sua mãe exalava. Era a sua identidade. Ele aspirou e se encolheu, num calafrio. A sensação, para ele, era boa. A mulher, após o primeiro gole, deixava o segundo na boca e depois bochechava, para limpar os dentes. Por isso, mesmo que ainda não houvesse bebido, rescendia à cana. E ainda porque algumas vezes, a mão trêmula deixava cair a bebida nas roupas rotas.
Penteou os ralos cabelos cor-de-nada do garoto com os dedos frementes.
Abriu a sacola de nylon, dessas de feira onde carregava todos os seus pertences, achada num terreno baldio, onde se refugiara com o Zezinho quando fugira do marido. Ele era um traficante de menor escalão, que traficava drogas para um médio, que, por sua vez, traficava para um chefão... Numa noite, levantou-se para beber água e o ouviu combinado com um adolescente que era seu cão de guarda:
– Amanhã, tu entra aqui depois que os meninos forem para a escola. Passa fogo. Eu preciso trazer para cá a Manu, mas não posso dispensar a Jaca assim , sem mais nem menos, meu irmão. Ela sabe demais... O rapazinho, a quem ela se afeiçoara, quase um irmão, pau para toda obra, que morava no quartinho dos fundos, naquela casa onde ela pensava que era feliz, cuidando dos filhos, cozinhando, lavando, passando...
– Queima de arquivo, meu, sei comé...
– Queima de artigo, cara; tá véia e esmagrecida. Nem se compara à Manu.
Jaqueline era seu nome, mas ele, numa cruel gozação, a chamava de Jaca, Jacaré, no princío até achava graça, pensava que era por causa de seus dentes grandes e brancos, mas no último churrasco, a tal da Manu, a interpelara numa gozação cruel:
– Como é, Jaca, tu não vai deixar meu nego em paz não?
Jaqueline ficou assustada demais com a morte, encomendada. Só pensava no Zezinho. Para a escola, iam os quatro maiores. O caçula ficava com ela. Poderia ser morto.Rolava na cama, vespas a zumbir na cabeça atormentada. Não tinha família em Belo Horizonte. Todos moravam pra lá de Piau, num sítio. Não tivera tempo de fazer amigos, tanto serviço havia em casa, o marido exigente, dava-lhe safanões por qualquer coisa-o que era normal, homem é assim mesmo, consolava-se. E para evitar as agressões, corria para todo lado, além de se esforçar para que os filhos fizessem as tarefas escolares, sabendo tão pouco... De repente, o marido começou a trazer muita carne, andar bem vestido, chegou uma dia, com um carro, sabia lá de que marca, pois nunca chegara perto. Mais trabalho, roupa boa para lavar e passar e no dia em que derrubou o perfume dele, levou um tapa que a deixou bicuda por dias... Precisava fugir, mas como, para onde?
Virava-se na cama, quando sentiu o peso do Osvaldo na cama. Deitou-se e virou para ela. A mão de sempre a alcançou. Levantou a camisola de flanela gasta e colocou as pernas magras da mulher sobre os ombros. Sem uma palavra, com a violência de sempre. Ela sempre achara que o bicho-homem é assim mesmo. Beijos, palavras doces, carinhos, coisa de artista na Tv. Representação. No cotidiano, a mulher é usada. A perseguida é penetrada, as mordidas são as carícias. A ejaculação, um alívio: acabou, posso dormir... Mas dessa vez, lutou um pouco, enrijecendo-se .A vagina sempre elástica, cerrou-se. Dispaurenia. Gemeu de dor. Ele não ligou: forçou-a como pôde e terminou ali, no intróito mesmo.
Ela teve ódio, pela primeira vez.Ia mandar matá-la e a tomava como a um animal. As lágrimas caíram, mas mordeu os lençóis para não fazer barulho. Assim que o marido dormiu, levantou-se, calçando as chinelas de plástico ao pé da cama. Foi ao quarto onde os meninos dormiam, dois a dois. Apanhou Zezinho e saiu em disparada para a noite misteriosa.
Conheceu então o que é não ter um teto. Descansar em bancos de praça, pedir esmola em escadaria, ser escorraçada pelos mendigos de ponto certo, querer ir ao banheiro e entrar num bar imundo, comprar um pacote de chips para o pequeno, e enquanto ele esperava, ia usar o mictório. Menstruada, catava papel até juntar um chumaço e ia colocar, tremendo. Se havia água, lavava os genitais, o rosto, braços e pernas. Banho de gato, pensava, ouvindo a voz da avó usar essa expressão. Cansou de roubar aquela preciosidade, quando encontrava:papel higiênico. As regras pararam de vir depois que ficou muito desnutrida, quando tomava quase somente a pinga. No começo, andara pedindo emprego. No máximo, ganhava umas roupas, bananas para o filho, biscoitos velhos. Raramente um prato de comida. Ninguém queria uma empregada desconhecida, caquética e ainda por cima com o menino de nariz sempre escorrendo. Ele crescia assim, dormia no ninho dos braços maternos, comia chips, ganhava umas coisas que o encantavam. Naquele momento, o balão amarelo, que desafiava o azul do céu, quando ele olhava para cima , um prazer enorme. O barbante fino firmemente preso à mãozinha suada.
Então, na praça onde dormiam, às vezes, a mãe o sentou num banco e lhe disse muitas coisas .Que estava fraca. Que não tinha dinheiro. Que ele ia ficar em uma casa onde havia muita comida. Que quando perguntasse sua idade, dissesse que tinha cinco anos. Ele tem seis, mas é tão magrinho e pequeno, que vão pensar ser mais novo. Têm mais pena dos pequenininhos, a mãe revela. A tudo que perguntarem, ele deve dar um sorriso antes de responder. O sorriso dele era lindo, parecido com o da mãe que já não sabia sorrir. Que dissesse que a mãe morreu, ou sumiu. Melhor sumiu, pois um dia poderá voltar e decerto vão tratar melhor o filho, por isso.
Havia reparado numa casa onde morava um casal de idade, que passeava ali, de vez em quando, com um poodle. Tratariam bem seu menininho.
Treina um pouco com Zezinho o sorriso, as respostas. Atravessa a praça. Ele, amedrontada, não diz nada. Somente os olhinhos de jabuticaba estão úmidos.
Uma empregada gordinha e alegre vem atender. A mulher usa sua voz mais educada. Explica que havia chegado da roça, que lhe roubaram tudo quando saiu da rodoviária - uma das histórias urbanas mais comuns, que sempre ouvira na roça ou ali mesmo, da população rua. Pede, então, um pouco de água e pergunta se tinham algo para o menino comer.
Assim que a serviçal se retira dizendo que vai falar com a patroa, agarra-se ao filho, as lágrimas lembrando-se que estavam ali, para a dor. Repete ao garoto que deve sorrir... Ele a olha calado, o coraçãozinho bate qual o de uma avezinha assustada.Ela vai até ao portão, mas volta, abre a bolsa, pega a receita dobrada, coloca-a no bolso da camisa azul desbotada do filho. Abraça-o novamente, chorando.
Assim que ela sai correndo, o garoto vai atrás. Chama-a, em prantos. A mãe lhe foge... O barbante escorrega de sua mão e o balão foge, também. Abre um berreiro.
A empregada chega com a água e um prato cheio de comida e olha espantada o menininho magricela, desnutrido, tornado feio. Não sorridente, conforme as recomendações, mas num pranto sentido, a campânula avermelhada e inchada aparecendo pela boca escancarada, a camisetinha encharcada de lágrimas. Pergunta-lhe pela mãe, quando esta volta correndo. A gaguejar, explica que correra atrás do balão, agradece o prato de comida, a água. O menino agarra-se às suas pernas, suja de ranho o vestido materno, feliz da vida...
Estavam comendo no banco da praça, o balão amarrado na alça da bolsa, ambos exaustos pelo pequeno grande milagre, quando a moça de uniforme abriu o portão da casa e veio até eles. Explicou que estavam precisando de alguém para cuidar do cachorro, das flores e do quintal. Que a mulher poderia morar como filho num quartinho independente, perto da lavanderia. Que fossem conhecer dona Rita, uma mulher muito boa, mas muito boa mesmo...
Da janela de seu quarto, a senhora idosa acompanhara e compreendera o drama que se desenrolara à porta de sua casa. E inventara aquele trabalho extra.
Agora, mãe e filho têm teto e são felizes, anos depois. Todos os dias, a mãe leva o menino à escolinha. Não raro, ele carrega, orgulhosos um balão, que sempre quer amarelo, embora às vezes, possa ser azul ou vermelho, das outras cores que sobram no pacote.... O casal idoso tem muito carinho por ele, agora forte e corado, que vai com eles e um poodle à praça, enquanto o olhar materno os alcança do jardim bem cuidado. O poodle é outro, a vida é outra. O sorriso voltou aos dois rostos, tão parecidos. O menino e sua mãe. Acima deles, o sol portátil, cheio de ar, paira e dança a dança da simplicidade. Ficou muito simples serem felizes e bem alimentados, agora...

Clevane Pessoa Araújo Lopes

2 º lugar no Concurso de Ipatinga 2006, 6º Concurso Estadual de Contos, realizado pelo Clube de Escritores de Ipatinga - CEI, MG.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

E AS ALGEMAS? - de Jackson Vasconcelos

O brasileiro é, por excelência, palpiteiro. Temos opinião formada sobre quase tudo. Dissertamos sem dificuldade sobre conserto de automóvel, física quântica, corrupção, bíblia, orixás, futebol, política, arte, samba, guerra na Geórgia, trânsito, novelas, crime organizado, casamento gay, discriminação da mulher, micro-crédito, taxas de juros, inflação, remédio para o fígado, qualidade de aeroportos, preço das tarifas bancárias e até sobre as relações incestuosas do Lula com o Salmão e com o Piraju Dourado.

Faltava-nos, contudo, conhecimento mais profundo sobre algemas, assunto, pelo jeito, de absoluto interesse nacional.

Com o tema colocado na pauta da imprensa, o Brasil todo embarcou na discussão e eu não teria mais o que dizer aos amigos, nas nossas rodas de conversas, se continuasse a ignorar o assunto.

Então, parti para os estudos e deixei de lado por algum tempo a leitura dos relatórios que indicam que um em cada cinco homicídios cometidos por aqui tem a autoria de um policial – dados da Secretaria de Segurança Pública; que falam sobre a vida de 180 mil presos ainda sem julgamento, quase todos eles negros e pobres – dados do Ministério da Justiça - e sobre os 680 adolescentes infratores presos em situação ilegal - dados da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República.

Comecei meus estudos com o trabalho de encontrar o significado da palavra. Houaiss informa que algema identifica um instrumento de ferro, constituído basicamente por duas argolas interligadas, utilizado para prender alguém pelos pulsos ou pelos tornozelos. O escritor Deonísio da Silva, autor de “A Vida Íntima das Palavras”, informa que o vocábulo é derivado do árabe, aljámi’â (pulseira), nome dado aos adereços sinistros que servem à pratica do sadomasoquismo e para conduzir presos e humilhar suspeitos.

No campo legal, o termo aparece no artigo 199 da Lei 7.210, Lei de Execuções Penais: “o emprego de algemas será disciplinado por decreto federal”. Como é uma lei de execuções penais, imagino que a referência seja ao emprego de algemas no caso de presos e não de práticas sadomasoquistas. Mas, só imagino sem ter certeza absoluta, porque o legislador brasileiro, principalmente depois que o Lula foi diplomado na profissão, passou a adotar a mixórdia como lema de trabalho. É possível que o governo queira disciplinar o emprego de algemas também nas relações sadomasoquistas. Afinal...

Em todo caso, como até hoje não houve decreto federal para disciplinar o indisciplinado, os tribunais e advogados cuidam o tema à luz do Código de Processo Penal, principalmente nos espaços em que ele aborda o uso da força no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso.

Como se vê, o assunto é rico e não pode ser tratado com pouco caso nem em pequenos espaços. Por isso, não vou mais longe. Percebo que ele merece trabalho mais elaborado. Talvez um compêndio, com exame da biografia do criador do apetrecho e verificações sobre o seu poder transformador. Afinal, estamos diante de uma questão que, por sua essencialidade, há duas semanas ocupa a atenção de toda a imprensa, da Polícia Federal, do Ministro da Justiça, do Presidente do Supremo e até do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e mesmo do preso de alta qualidade, senhor Luiz Fernando Costa, o Fernandinho Beira-Mar.

*Jackson Vasconcelos é editor do site www.estrategiaeconsultoria.com.br

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

A SENTENÇA DOS DEUSES-de Carlos Vilarinho

A SENTENÇA DOS DEUSES é um capítulo de "TRÊS TIROS NUMA HISTÓRIA DE AMOR"

Agora começo a entender melhor o real significado e os mistérios que envolvem a vida e em conseqüência, ou em paralelo, a morte. Não morri então de fato. A imagem do enterro foi criado por mim mesmo dentro do meu cérebro. Acho que foi o susto e a minha entrada no coma. Ali é o meu corpo. E eu aqui, ainda sem o Velho. Ele ficou decepcionado comigo, com a minha vida. Entrei outro dia no sonho de Harmonia, ainda estava vivo. Ela estava confusa. Arrependida. Não percebi qual arrependimento. Mas era uma massa meio mijada. Quer dizer, a cor, a saturação e o cheiro de arrepender-se. A percepção é mais arguta quando se está morto. Antes de estar aqui agora, sei lá onde é isso, fiquei meio abestalhado com o que vi passar, claro que logo em seguida me compus novamente pensando em Harmonia. Vi primeiro passar Helena. Linda, cheirosa, com as carnes e os seios duros, correr com Páris. Em seguida Aquiles, com sua feridinha no calcanhar, largou a lança e corria no bosque com Pátroclo. Pareciam dois bambis. Depois vi Desdêmona passar chorosa entre a decepção e a revolta do amor perdido e sufocado pela megera inveja de Iago, muito parecida com a inveja de Galegão sobre mim, só que Iago tramou e obteve resultado concreto. É triste constatar que o ser humano é muito mais inclinado a semear a escuridão do que simplesmente levar lume à vida. Estou conseguindo aos poucos voltar ao momento do tiro. Consigo enxergar Bernardino Galegão olhando para mim com olhos arregalados e atirando. Mas não foi a bala dele que me pegou. Não sinto a energia perversa de Galegão arrodeando a perfuração do projétil que nem está mais em mim. O médico retirou e deu àquele investigador gordinho. Fui ao sonho de Joel, penetrei nos recônditos dos neurônios do cachaceiro. Um bom homem, meu amigo. Lá, dentro dele só havia um pensamento: descobrir quem atirou em mim. Vi algumas imagens salvas por ele próprio e subitamente uma chamou minha atenção. Uma coisa estalou dentro da minha massa nebulosa que me transformei, pelo menos por enquanto, e o buraco onde a bala penetrou emitiu de mim para aquela imagem uma estrada negra e lodosa. Descobri o pensamento que rondava insistentemente as cabeças de Joel, Amelinha, o investigador gordinho Carlos Antonio e todos meus amigos. Para não me precipitar, corri ao sonho de Amelinha. Lá estavam imagens guardadas da infância, as histórias que contei para niná-la e as mais recentes. A satisfação em ver e atestar o meu amor por Harmonia e uma última que me deixou repentinamente surpreso, a decepção que trazia dentro de si por algo ligado a Harmonia. Não havia, no entanto a imagem que esperava encontrar. Também contei a ela muito rapidamente o episódio, mesmo porque eu propriamente dito não dei a devida importância e ela certamente não absorveu. Correndo de um lado para o outro, me esbarrando em outras almas penadas. Algumas famosas e conhecidas e outras querendo um encosto. Com o aval do Velho fui vasculhar os sonhos e pensamentos de Luís e Mariozinho. No trajeto encontrei a besta que vivia encostada em Harmonia. Disse-me que não gostava de mim nem do Velho. Ia parar para lhe dar uma surra de energia, mas o Velho disse para continuar a busca e que aquilo, o desvendamento iminente, iria influir diretamente na sentença final dos deuses. Luís não era pernóstico como diziam às vezes Mariozinho e Joel. Os sonhos e os pensamentos de Luís eram bem claros. Havia no interior dos neurônios dele uma algaravia sinfônica formada por infinitas notas musicais. Engraçado, eu pensava que só existiam sete notas musicais, Luís criava umas dentro das outras, por isso sua destreza em tocar cordas e sopro, além de arranjar-se na percussão. Havia também a melancolia de ter perdido a mulher que achava amar, para outro homem. Remoia-se na mágoa da traição. Mas lá estava a imagem que procurava, era ele sim. A mesma imagem dos recônditos de Joel. Provavelmente essa mesma imagem estaria também em Mariozinho. E acertei. O Velho riu satisfeito de mim. Senti um alívio brutal. O Velho então me orientou o que fazer. Formatei aquela imagem e coloquei-a nos sonhos de Joel, Mariozinho, Luís e Amelinha. Soprei na cabeça de cada um que era para os quatro encontrarem-se no dia seguinte e tomar as devidas providências contra meu algoz. Essas coisas só morto é que desvenda. Absurdo. O povo está vivo, mas nunca consegue enxergar um palmo na frente do nariz. Agora vou esperar o chefão do mundo interior vir até aqui e me dizer algo. Já cansei de ficar aqui. Ou vou logo para o inferno, para o raio que me parta ou... Não sei. O que me intriga não é aquele cidadão atirar em mim na verdade, mas o Galegão errar. Sempre foi todo prosa, que sabe lutar, sabe jogar capoeira, sabe jogar baralho, sabe ganhar dinheiro, sabe atirar melhor que ninguém... E errou. Vi o investigador falando da bala com uma cruz raspada na ponta, foi Galegão. Aquele indivíduo não gostava de mim, será que ainda terei o desprazer de tê-lo ao alcance dos meus olhos? Será que ainda verei o inimigo dentro do mundo interior? Dentro da morte para ser mais claro. Lembro-me dos caras que fizeram escolas no mundo. Muito deles diziam que nós olhássemos para dentro de nós mesmos. Buda, Jesus Cristo e Sócrates, que agora a pouco o vi passeando e observando as coisas da morte. Esses três mesmo, sempre falaram. Cristo, por sinal disse o seguinte: ”Deus vive no espaço interior, onde Ele deve ser encontrado” e agora atesto para todos os fins. Deus somos nós mesmos. Sinto Deus agora dentro de mim, é como se eu sempre o tivesse, mas nunca havia acionado. Eu acho que nunca acionei. Mas para que então essa cúpula de deuses do universo?
_São os deuses da natureza, filho.
O Velho me disse que há aqueles que cuidam da natureza do universo. É da natureza que emana todo o sentimento que banha o homem. Portanto há esses deuses. São os deuses negros da África, os orixás, os pajés indígenas, acho que Amelinha vai gostar disso aqui, deuses nórdicos e gregos e as divindades da água. Segundo ouvi rumores , desde que cheguei e estou nesse chá de espera, são os donos e donas das águas do mundo que dão a sentença final. Mas engraçado que quem apareceu foi um animal enorme de chifres de búfalo. Me abraçou com compaixão e tornou-se uma guerreira muito parecida com Harmonia. A guerreira dos raios e trovões. Disse-me que Harmonia teria interferido e estava numa forte corrente de oração para me ter novamente. No fluxo da oração foi dado a ela, Harmonia, dois caminhos. Em um ela ia esperar a minha recuperação no mundo do além, onde estou agora. Ia tomar mais um curso de Humanidade, como eles chamam aqui, para não mais desprezar quem quer que seja. Voltaria em breve e terminaria a minha vida que, segundo soube também, ainda seria longa. O outro caminho seria ela também ser abreviada e nos encontraríamos aqui mesmo nessa pedra. Refutei de imediato essa proposta. Só que a decisão não cabia mais a mim. Estava em pauta na tal reunião, o amor proibido, contudo verdadeiro que vivia mais Harmonia. Tanto o Velho mais a guerreira de Harmonia, sua Oyá, me disseram e faziam parte da tal reunião de cúpula dos deuses. Acho que a guerreira veio me testar e o meu futuro dependia do meu desempenho ali junto aos deuses da natureza. Depois me lembrei de um fato importante que ocorria sempre e resolvi eu mesmo ser meu advogado de defesa. Disse-lhes que Zeus tinha amantes em todo o canto do mundo, assim como os orixás mais novos. Nunca tiveram então um amor verdadeiro como o meu e o de Harmonia, nunca sentiram a brasa arder o coração quando o amor dobra a esquina para encontrá-lo em qualquer lugar dali dos céus. E, no entanto eram deuses. Poderia haver tamanha contradição e paradoxo no juízo universal? Deuses podem amar quem bem entende, na hora que lhe for conveniente e não ser julgado, eu, morto agora, não posso amar Harmonia porque ela está casada com um bobão que tramou matar-me junto com o pai. Há minimamente uma discrepância aí. Todos os deuses me olharam com assombro, inclusive Zeus. Tinha que dizer aquilo, sabia que eu e Harmonia nos amávamos verdadeiramente, atestado inclusive pela Yansã dela que veio conversar comigo. Disse-me o estado em que se encontrava, muito, triste, infeliz e revoltada. Jejuando e orando por mim. E eu aqui julgado do vento, como diria um poeta baiano. Soube que foi o Velho e a Oyá de Harmonia quem desviaram as balas de Margarete, a louca da Margarete, e a de Galegão. Em seguida os pajés que acompanham Amelinha vieram me ver. Também falaram que tudo está sendo providenciado, eu só teria que assistir a palestra de Oxalá e demonstrar lá na Terra, eu acho, o que absorvi nessa conferência. Oxalá era um pouco mais novo que o Velho que me acompanha. Carregava com ele um semblante tranqüilo e sereno. E eu me vejo aqui arrodeado de divindades, deuses do universo e mitológicos. Deuses que sempre existiram e deuses criados pela literatura. Será que eu poderia me transformar em deus também? Se a literatura através dos seus escritores criou deuses, então eu como autor posso tornar-me deus. Deus Vadinho. Hilário. Uma vez um escritor mais velho e que muito admiro disse-me que eu estava no caminho certo da verdadeira poesia, disse-me também que era para eu ter cuidado com os monstros que poderiam aparecer para me assaltar durante minha trajetória. Galgar e subir degraus literários são momentos valiosos, ímpares e singulares. Só poucos conseguem. Esses monstros que ele falou, se não estou enganado são: a vaidade e a soberba de si próprio em relação ao resto do mundo. Oxalá falou sobre isso logo no início da palestra dos deuses do universo. Falou também da inveja, meu tema na noite do tiro. E olhou para mim tão sereno, suave e tranqüilo que a princípio fiquei receoso, depois a tranqüilidade dele entrou em mim. Oxalá deu a ordem para eu voltar se eu quisesse. O coma que estava entretido foi só um pretexto para os deuses me conhecerem de perto e receber as orações que Harmonia mandava para mim e para eles. Era uma energia harmônica como ela própria. O Velho me mostrou a ação que a oração tem no universo. Vi extasiado e maravilhado o canal de luz que se abria de Harmonia e chegava até a mim e aos deuses. Trilhando um caminho de palavras reluzentes que acalmavam o mundo. Explicou que há pessoas com o dom de segurar o universo. Disse que Amelinha, eu e Harmonia, nessa ordem, éramos algumas dessas pessoas. Depois de toda a palestra dos deuses, o Velho disse que era para eu responder se aceitava voltar a Terra sabendo da minha missão. Minha missão poética continuaria e respondi que sim. Falou também para que eu soprasse nas letras das orações a minha resposta para que Harmonia soubesse e aliviasse seu sofrimento e dúvida.
Acordei com aqueles aparelhos hospitalares ao meu redor. Não tinha dores pelo corpo, sentia uma espécie de ressaca e o buraco da bala estava dormente. Não havia ninguém no quarto, sentei na cama e comecei a escrever a poesia dos deuses...


Carlos Vilarinho 06/02/08

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

O SEGREDO -de Tatiane Gonçalves

“Já que não consigo caber em mim, transbordo como um copo pequeno e tudo resolvo”.

Ela roía as unhas no ônibus enquanto refletia.

“Os cheiros, os cheiros, o corpo em movimento, o som, o som”. Além de roer as unhas, agitava o pé freneticamente.

Quem a visse de longe, saberia: era louca.

Costumava se questionar se a loucura começaria pelo nariz, pelo ouvido ou pela boca. Isso, desde sempre. Sim, falava sozinha, corriqueiramente. Além disso respirava, respirava... enquanto dormia, enquanto falava, enquanto pensava. Apenas era. Segredava às suas entranhas seus dilemas, suas vontades.

Quando chegou em casa naquele dia, sua mãe chorava, ouvindo a canção antiga que tocava no rádio, enquanto lavava as roupas.

Foi nesse giro que se viu de volta à realidade e não mais no seu mundo repleto de loucura e segredos de sua alma.

- Por que choras, mamãe?
- É essa música, minha filha... me faz lembrar do seu pai... – e a senhora de pele curtida de sol chorava mais forte.
Os cabelos de Dona Guiomar eram presos em coque bem alto, com grampos a segurar os fios fujões. Eram do tipo fino e ralo, já de um grisalho avançado. O corpo era forte, anca larga. Mãos ásperas e envelhecidas. Mãos que sustentaram a ela e à filha com as roupas lavadas com as lágrimas, desde quando o marido a deixou com Mércia ainda de colo.

Já se refazendo da penosa recordação, esticava a vista e indagava à filha.

- Como foi a entrevista?
- Apenas mais uma... Tem horas que me canso!

Era final de tarde e, pondo o pó no coador, Mércia voltava aos seus pensamentos, vendo a imagem de sua mãe abrindo mais uma trouxa de roupas sujas.

- Para se ter sorte na vida: nem oito, nem oitenta. – dizia Mércia com uma convicção rala e até engraçada, enquanto terminava de passar o café.
- Vem você com essas conversas. – resmungava a mãe, já refeita.

O bule transbordou, derramando café e borra quentes na mão de Mércia.

- Merda de vida!... merda de vida... – ela mesma escutava sua voz a sentenciar a vida e buscava ainda um sentido para aquilo. Não o conseguia apreender. Eram nuvens apenas, ou o próprio ar, jamais poderia tocá-lo.

A mãe cantarolava qualquer coisa batendo as últimas peças do dia.

O gosto do café reconfortava pouco a pouco Mércia. Tomava-o olhando na janela o movimento daqueles que iam chegando do trabalho. Seus óculos embaçavam com a fumaça quente. E Mércia lembrou-se de sua infância.
Ajudava a mãe a pegar as trouxas de roupas nas casas das patroas. Era Mércia quem escrevia o rol diante das patroas, enquanto contavam as peças. Aquela criaturinha miúda aprendera a ler e a escrever sozinha, embora sua mãe fosse analfabeta.

- Uma camisa de homem listrada, uma bermuda de brim azul, uma blusa com gola de botão verde...

As senhoras ficavam impressionadas com a capacidade da menina, principalmente quando descobriam que ela tinha aprendido sozinha.

Sua facilidade com o aprendizado rendeu-lhe uma boa educação. Débora, uma das patroas mais generosa de Dona Guiomar, tomou a menina para criar. Deu-lhe escola, roupas, remédios... criou-a junto com seus três filhos: duas meninas e um menino. Mércia ficou com eles até os dezenove anos, quando Débora morreu. Ela, então, resolveu voltar para casa e ficar com sua mãe.
Precisava trabalhar para ajudar a mãe, que, já com idade avançada, tinha muitas limitações físicas: diabetes e pressão alta.
Munida de currículos e do seu certificado de técnica ambiental percorria a cidade em busca de vagas de jornais. Nada conseguia.
Entregava-se constantemente aos seus devaneios. Eram eles que a reconfortavam de fato. Indagava tudo o que podia, vasculhava-se exaustivamente e nada encontrava. Cansava.
Lera num livro que uma mulher com a vida mais complicada que a dela morrera atropelada. Sonhava com isso todas as noites. Em seus devaneios, era a mulher do livro.

Tatiane Gonçalves é escritora baiana contemporânea de Carlos Vilarinho, Renata Belmonte, Flamarion Silva, Heitor Brasileiro Filho ...

sábado, 16 de agosto de 2008

A VOZ -de Clevane Pessoa


Na abertura das Olimpíadas,
91 mil pessoas ouviram a linda voz
e viram Lin Miaoke, grácil passarinha de nove anos.
A VOZ perfeita trinava a "ODE à Pátria".
No entanto era um palyback.
Miaoke dublava a pequenina Yang Peye,
de apenas sete aninhos.

A justificatica:está acima do peso
com a adorável redondez das criancinhas, embora.
E os dentes são imperfeitos.
"O rosto não é tõ belo", explicou Chen ,
famosos compositor chinês.

Ela não liga, revela a professora.

Quem são essas aves rapineiras
que pretendem compreender o coração de uma criança?

A VOZ , perfeita.
A passarinha, longe das luzes desse gigantesco ninho...

Não é suficientemente bela!

Qual o conceito de beleza plena?...



Clevane Pessoa de Araújo Lopes jornalista,Nordestina ,mora em MG. Psicóloga,autora,poetisa, Cônsul de Poetas del Mundo.

(Belo Horizonte, Brasil)

Poeta Honoris Causa (CBLP)
Vice Presidente do Instituto Imersão latina.

Diretora Regional do inBrasCi.

Embaixadora Universal da Paz.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

FIM DO CAMINHO- de Renata Belmonte

Andava pela rua e a canção a acompanhava. Os outros transeuntes não pareciam ouvi-la, caminhavam em passos apressados. “É pau, é pedra, é o fim do caminho”. Seu destino ainda não era certo, não sabia se iria conseguir chegar. ”Se tenho coragem de tomar banho pelando, imagina do que sou capaz”, pensou num tom de quem queria deixar claro de que estava segura de sua decisão.
Despejava sorrisos largos por cada metro que passava. Nem sempre eram bem aceitos. Alguns a olhavam com a dureza de quem precisa de um tempo para aceitar o inesperado. As crianças gargalhavam, misturando suas crueldades infantis com curiosidade. A mendiga da esquina, esticou a boca repleta de dentes podres e piscou o olho.
“É promessa de vida em meu coração”. O mar nunca tinha estado tão azul. Parecia que o céu tinha lhe dado este presente. Não que ela fosse acreditar em suas próprias ilusões. Sabia que todos poderiam até saber, que aquele era o dia do seu aniversário e que era pisciana, mas a certeza de que não se importariam era maior. Ninguém tinha tempo a perder com bobagens astrológicas. Suas vidas tinham que ser uma sucessão imediata de fatos para que fizessem algum sentido. O ideal é que pouco se tenha tempo para pensar, pois é o pensamento que induz ao erro. É antinatural ficar racionalizando as coisas. Os bichos não perdem tempo com idéias tolas e vivem seus destinos pela intuição. Pouco erram. Vão aonde devem ir. ”Só vou parar quando meus pés não mais agüentarem, ou quando chegar ao fim do caminho”, disse para si mesma, decidida.
Procurava, com cada passo, sua verdadeira libertação. A brisa soprava em seu rosto, levemente, enquanto seus cabelos misturavam-se incoerentes. Já sentia abandonados seus sentimentos antigos, já confortáveis. Por quilômetro percorrido, ia tornando-se uma santa. Seus pequenos detalhes sujos, como a mania de roer unhas e as mentiras que contava para a prima rica, tinham se tornado parte do passado. Estava tão limpa e pura quanto um bebê que acabou de nascer.
Tinha nos quadris, talvez por influência rítmica da canção, um movimento tão gracioso quanto os da Garota de Ipanema. Nunca tinha sido garota de nada. Viveu uma vida que foi arrumada contra ela. Até antes de sair de casa, tinha sido difícil para alguém guardar em mente seu nome. Era mais uma no meio de infinitos irmãos. Tentou evitar, durante toda a vida, que perguntas existenciais viessem à sua mente. Preferia não saber quem era, a ter a dor de mais uma decepção.
“É pau, é pedra”. Sempre amou aquele colar de pérolas que tinha no pescoço. Dizem que pérolas, quando não usadas, tornam-se envelhecidas. Suas pérolas eram a única coisa verdadeira que teve. Sempre lhe fizeram companhia. Não ficariam velhas, se dependesse dela. Logo, iriam juntas para o lugar de onde vieram.
Não mais se incomodava com os risinhos insolentes que percebeu durante o caminho. ”É promessa de vida em meu coração”. Seu corpo completamente nu se arrepiou todinho de excitação. Estava perto de experimentar o começo de tudo. ”É o fim do caminho”. O fim para ela representava um novo começo, uma nova chance. Respirou fundo e pulou, do alto do morro, em direção às águas azuis de março, que fecharam sua vida e o verão.

Renata Belmonte
Do livro Femininamente, Renata Belmonte Prêmio Braskem Cultura e Arte, Casa de Palavras, 2003, BA

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

QUEDA - de Carla Dias

Para Edu


Havia, eu sei, em algum lugar que se fazia desconhecido, a mágica que me devolveria tudo o que apaguei da minha alma, durante os últimos anos de minha vida. Assim como se eu devesse me transformar em especial momento, refiz meu espetáculo de vida que, retraído, era uma explosão de verdades quase irracionais.
Eu enxergava a vida de maneira a torná-la uma boa gargalhada ou um palavrão bem sonoro. Mas, enquanto meu senso cômico se apoderava da minha realidade, no lugar da diversão gratificante estava o desconforto e o aperto. Era como se eu tivesse vestido a roupa alguns números menores e me sentisse tão preso...
O que faço aqui, afinal?
Gostava, sim, de ficar entretido com o meu trabalho, esquecendo (aos poucos, ainda que depressa) que os dias lá força tinham sol e babavam em chuva copiosa. Há dias, eu só tentava ter algumas horas serenas ao lado das minhas realizações cotidianas de homem que sente dores nas costas e se dopa para suportar o ocorrido e se revela encantado com o que fosse possível resgatar e tivesse boa cara.
Sabe como é dar uma gargalhada dolorida?
Mas existe a possibilidade d lânguida gargalhada, aquela sonolenta e quase de mau tom... Que dor nas costas que nada! A dor é no coração.
Há, sobre minha mesa, papéis que se misturam desconfortavelmente. Há, atrás da porta, uma família reaprendendo o sabor do jantar de domingo. Há, ilusoriamente, mas há, mil possibilidades de reaprender o mundo. Eu sei... Eu temo... Eu sei...
Há sobre a cidade uma silenciosa sombra, capaz de tecer a história que devo contar, amanhã... Para mim? Há um céu que reflete (espelho que retrai) a figura distante de um homem que trago nos bolsos.
Quem trouxer, agora, algumas palavras que não sejam corroídas com o tempo, eu aceito. Quero mascar cada uma delas, feito chicletes que, vez ou outra, cumprimento a dentadas. Quero senti-las no meu hálito. Pronunciá-las em silêncio. Somente palavras casuais que de tão simples se mostram sábias. Quero comer a sabedoria, torná-la tão sem defesa que assumirei o poder para depois sair correndo, frágil de tantas descobertas. Quero viver o ciclo que não me leve sempre ao mesmo ponto de partida, mas ao recomeço repleto de idéias.
Quero pular do muro, cair com os pés descalços na calçada de um outro tempo... Quase uma doce loucura, um doce gosto. É como querer morar na lua e beber a água do oceano, ela escorrendo gelada e limpa em minhas mãos. Talvez eu encontre um mago qualquer que resolva transformar a mim, homem de dores e mais dores, no menino que releu e redescobriu o sentido da vida.
Sempre possível irei até o avesso de quem e encontrarei a mim quando ainda sabia avaliar o gosto por esperar da vida o que ela pudesse ser: uma grande brincadeira.
Vamos sorrir nosso desconfortável espaço. Estamos abraçados a um sonho que revela o infinito. Abraçados, fortemente, enlaçados num fugidio instante que se refaz do cansaço de ontem. Lendo nos teus olhos o despreparo para a realidade e a vastidão para a imaginação, quase compus uma canção. Do cotidiano você tira trégua e recria a cena. O artista que emudece e chora a alegria, fazendo de conta que vai passar e teremos um universo de liberdades heróicas para viver.
O que trago de amargo gosto é a facilidade em dispersar onde não deveria fazê-lo. O que mais temo é molhar os pés no lago pelo qual passei, enquanto seguia em direção a uma cidade que desconheço o nome. Brigam, dento de mim, a figura sem gestos e o sentimento de prisão. Gole a gole, jogo para dentro a fumaça...
A fumaça rodopia, dança de vento que bate e suas mãos têm a leveza da seda. Úmida casa... Faz frio aqui, tão longe. Faz frio. Minhas mãos se perdem e eu volto a procurar por mim. Eu volto.
Sobre minha escrivaninha, telefones que não uso, agendas que quase impero. Sou o rei da minha escrivaninha e seus rebeldes dizeres. Sento do outro lado, olho cima dos ombros e sinto que não quero saber... Não quero saber dessa coisa de remendar a essência minha que dorme o sono agonizante da letargia.
O mundo que me desculpe, mas gostaria de entretê-lo, enganar o mundo e sair correndo em direção ao primeiro quarto vazio que encontrasse. E lá ficaria a espera de que alguém abrisse a porta.
Há alguém que saiba da vida para me ensinar? Não sou tão vago e quero gente que sorria para mim, vez ou outra. Quero paz que me permita observar o infinito da ilucidez daquele que se preserva em poesia. Tiraram de mim e fragilidade aparente e eu quero colo e não pedir. Por que me deram gosto que eu não quis sentir? Por que aceitei?
Há, entre as casas dessa cidade, vãos que guardam mofados sonhos de pálidos homens. Há, ente o infinito que tento tocar e minhas mãos, apenas a certeza de que chegarei com vida em algum lugar que seja meu. Ainda que ele apareça em forma de noite que passa, trazendo no colo o dia seguinte.

Tudo o que eu queria era poder brincar. Eu brinco de vida. Eu esbanjo vida e reajo de acordo com o tempo que passa. Eu fico a cantarolar o espaço e a colher loucuras... A sorrir o infinito com a inocência de quem gosta de ver estrela brilhar.


Carla é escritora paulista e baterista

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

O RATO DO CAPITÃO-de Flamarion Silva

O RATO DO CAPITÃO

Dostoiévski andava na calçada. Ia obstinado. Decidira-se momentos antes a não se desviar para que um tal senhor passasse. Ia com a idéia firme. Eis que o tal sujeito se aproxima. É um capitão. Traz tantas insígnias no peito e usa fina bengala. O chapéu, por ser firme, põe em destaque a altura do homem. As roupas impecáveis.
“Ah, ah, ah, ah, mas que sujeitinho troncho. De que buraco terá saído?”
Quem se riu assim foi o rato do capitão. Oh, oh, perdoe-me a maldita frase, quero dizer, mal dita. Decerto o capitão não levava consigo um rato. Nem tampouco tinha o capitão o caráter de um rato. Mas, diabos, será que és cego a ponto de não enxergar que todo capitão traz consigo um enorme ratão? Redundância? Pleonasmo? Sei lá o nome do rato. Sei que rói meu texto, assim como roeu a alma do pobre Dostoiévski.
“Ah, ah, ah, ah, mas que sujeitinho troncho. De que buraco terá saído?”
O capitão ficou a roer estas palavras. Roeu-as tanto e com tanto cinismo que, ao aproximar-se do nosso amigo, dava para ouvir o triturar dos dentes. Note que o senhor capitão, além de roer o já roído, babava-se.
“Ah, ah, ah, ah, mas que sujeitinho troncho. De que buraco terá saído?”
Perdoe-me senhor, mas o que foi que disse? — Perguntou Dostoiévski.
“Oh, oh, oh. Como? Mas o que foi que disse?” Quis saber o capitão.
Perguntei-lhe, senhor, o que foi que disse?
“Ora, mas como ousa interpelar-me? Eu, a mim, que sou um capitão?”
Perdoe-me, senhor, mas creio que estás a ofender-me.
“Como a ofender-te? Não vês que a ofensa és tu, por estares no mundo. Oh, oh, oh, oh” ri-se o rato do capitão. O capitão seriíssimo.
Talvez não saibas, senhor, mas, como já diz o ditado: o sol nasce para todos. Outro: quem com ferro fere, um dia com ferro será ferido.
“Ora, mas o que dizes? Provérbios vagabundos”.
Para bom entendedor...
“Ora, vá-se ao diabo! Agora, retro! Ordeno-te! Ou queres levar umas bordoadas do meu bastão?”
Dostoievski, impaciente e nervoso, num gesto de desatino, plaft! tapeia o delicado rosto do capitão.
Agora, sim! Dostoiévski diz para si em frente ao espelho, posso sair à rua e bater-me de frente com o capitão. Plaft! mais um tapa, atitude singular de um covarde, ou, diga-se melhor, de um rato.


Flamarion Silva é escritor baiano.

domingo, 10 de agosto de 2008

POLÍTICOS FICHA SUJA LIBERADOS PARA ELEIÇÃO PELO STF por Carlos Vilarinho(texto1) & Jackson Vasconcelos (texto2)

A DECISÃO DO STF texto 1

Carlos Vilarinho

O que há de mais apropriado para a política é a crítica pela crítica. Crítica deslavada seria então. O que dizer da decisão do STF em liberar candidatos de “ficha suja” para disputar as próximas eleições no país. Em entrevista o presidente do STF condenou a lista de candidatos com “ficha suja” segundo ele, temeroso de cometer injustiça. Fico pensando se o senhor presidente não está a fazer piadas. Jokes, in english. Justiça seria não submeter a população a ouvir mentiras de tais candidatos. Quiçá de outros. Provavelmente de todos. É passível de paúra se o político não burle o próprio detector de mentiras. Apareça enfim com o riso franco e puro para um filme de terror, com a licença do arremedo e paródia do maluca-beleza Raul, invadindo nossas casa com promessas mirabolantes e intenções beirando a canonização. Desculpe o amigo leitor, tanto amargor. Mas o autor que vos escreve, está cansado. Mesmo com melhoras sociais e blá blá blás que obviamente houve, mas muito pouco. Li uma frase que Salvador Allende disse antes de ser violentamente massacrado. Muito antes, de qualquer forma já profetizando, dando o prognóstico e para mim definindo finalmente o que é a democracia. “O povo tem o governo, mas não o poder”. Não se trata, no entanto de premonição lúgubre e sim de constatação de fatos onde o processo eleitoral seja aqui, no Chile, na China, talvez até no Tibet sempre foi e sempre será passível de desconfiança. Fiz movimento estudantil e vi de perto como os ardis funcionam. Não tenho idéia de como separar estratégia política. Política em sua essência. De tramóia sedenta de poder. Aí é que entra o STF, a imprensa e os partidos dos tais políticos então “justiçados”. Mesmo que a constituição dê o direito e a justiça(?) de serem elegíveis, pois não foram condenados ainda. Não se sabe se serão. Os partidos desses tais candidatos e a imprensa que não pode ser marrom deveriam: um deduzir a proposta de vereança de tal candidato suspeito até que se diga ao contrário e o outro, a imprensa, notificar à população, como dissera Jackson Vasconcelos, a verdadeira posição e situação em que encerra tais políticos deixando então que o povo democraticamente tire suas conclusões. Entenda-se por democraticamente, livremente. O presidente da república costuma falar e opinar com tamanha precisão e conhecimento a respeito de futebol e do seu Corinthians. É assim que se apresentam nas casas do eleitores os candidatos “ficha suja” ou não. Com precisão, conhecimento e um vocabulário vasto em sinonímias, sometimes metáforas, que muitas vezes o real significado é desconhecido pelo emissor. Também com muito mais precisão e mais; pavor e apreensão, apresenta-se para a população a falta de verba pública para a saúde e educação. Não são versos rimados aí atrás, é a representatividade que a política deixa. Faríamos então como Comodus que ajudou a afundar o Império Romano, criaríamos gladiadores entre nós mesmos para enfim, comer.

Carlos Vilarinho 10/08/08

A LEI DO MENOR ESFORÇO. texto 2
*Jackson Vasconcelos

O Supremo Tribunal Federal deixou claro que no Brasil não há espaços para leis nem para decisões judiciais que contrariem a Constituição Federal, por mais bem intencionadas que elas sejam. Por isso, gostemos ou não, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, ainda que esse alguém seja um político. É o que diz expressamente o inciso LVII do artigo 2º da Constituição.

A decisão é notícia de interesse para os que concordam com ela e para os que não gostam dela, assim como também é para aqueles que ainda não formaram as suas opiniões a respeito dela e mesmo para aqueles que não tenham qualquer interesse em formar opinião.

Eu, por exemplo, entendo que ela chegou em bom momento, porque interrompe a prática adotada pelos juízes eleitorais de negarem o registro de candidaturas de pessoas que respondam a processos criminais, com base tão somente em suas íntimas convicções.

Pelo visto, a imprensa pensa de modo diverso e por isso produziu as manchetes de hoje:

• O Globo: “STF libera candidatura dos fichas-sujas em todo o país”.
• O DIA: “STF decide liberar s candidatos “ficha-suja”.
• JB: “STF libera candidato sujo”.
• Folha de São Paulo: “STF rejeita barrar candidato com ficha-suja”.
• Estado de São Paulo: “STF rejeita recurso e libera candidato com ficha-suja”.
• Extra: “STF dá sinal verde a candidatos com ficha suja”.

A temperatura deixa claro que também neste caso, a imprensa foi um instrumento apaixonado de ação política, no lugar de ser um veículo de transmissão da “informação precisa e correta”, como determina o artigo 2º do código de ética dos jornalistas. E agiu com astúcia em favor da tese própria, porque o Supremo não autorizou a candidatura de pessoas com “fichas-sujas”. Ele deixou claro que à luz da Constituição Federal essas pessoas só possuirão “fichas-sujas” depois de condenadas com sentenças sobre as quais não caibam mais defesas ou argumentos.
Isso posto, existe a necessidade dos juízes, sejam eles de primeira ou de última instância, cumprirem melhor e de modo mais célere as suas tarefas: decidirem os processos judiciais em definitivo e no tempo certo, se, de fato, desejam que os suspeitos não sejam candidatos. Isso é impossível? Não acredito. Rui Barbosa, na Oração aos Moços fez um alerta que a ocasião pede: “Não estejais com os que agravam o rigor das leis, para se acreditar com o nome de austeros e ilibados...”

Há quem diga que o procedimento judicial no Brasil impede, pela protelação interminável, a sentença final condenatória. É pretexto. E, se não fosse, o artigo 61 da Constituição Federal autoriza o Supremo, os Tribunais Superiores e a toda gente, inclusive jornalistas e juízes de qualquer instância a propor leis e iniciar o processo de mudança.

Outro ponto: os partidos não poderiam cumprir melhor com base em seus códigos de ética, o papel de impedir a candidatura de candidatos suspeitos? Poderiam.

E, por que nada disso acontece? A resposta é uma só e bastante simples: a preferência pela lei do menor esforço. Os candidatos com muito voto, ainda que sejam ladrões, assassinos, corruptos ou homicidas, interessam aos partidos? Então, que fiquem com eles. Dá menos trabalho condenar sem processo? Que assim seja. A lei contém ritos processuais complicados? Desconheça-se os ritos. A verdade não rende bom dinheiro? Então façamos dinheiro com a versão no lugar do fato. Mas, nada disso é democracia. Então, às favas com a democracia.

*Jackson Vasconcelos é editor do site www.estrategiaeconsultoria.com.br

sábado, 9 de agosto de 2008

CAFÉ RALO- de Andreia Donadon Leal

Acordei assustada com o barulho do despertador do quarto. Mãe passava café ralo, sentia o cheiro suave de seu aroma. Os olhos mal se abriam do rosto cansado de noites, que nem sei quantas, passadas em claro. O expediente noturno tinha sido muito pesado nas últimas semanas. .Dei um pulo da cama, acordada dos devaneios matinais. Tirei pijama, pantufas que esquentavam os pés na madrugada fria. Tomei banho quente. Espiei da fresta da janela, raios tímidos no céu cinza-prata. Talvez mais um dia de chuva; pingeiras na casa...Vociferei um bom dia para mãe que me aguardava na cozinha infestada de mosquitos nas panelas e pratos sujos da janta passada. Preparei ouvido para ladainhas de sempre, mal disfarçando a impaciência também corriqueira. Coitada da mãe. Sozinha. Abandonada. Triste. No ônibus contei as moedas da bolsinha jeans e entreguei para o trocador de rosto gorducho e olhos melados. Mais um expediente estressado de segunda-feira. A noite não demorou a entornar no céu. Mais um fim dela para vagar nas calçadas escuras da rua. Rodei sem rumo os seixos pontiagudos da rua direita, esquerda com o salto do sapato batendo elegantemente. Nada! Hoje a noite não prometia. Também com o desânimo expressivo pouco provável, muito pouco. Em casa mãe deveria saber que demoraria. Não com as mãos abanando. Não faltava nada para ela. Até a paciência que insistia brotar do cérebro para boca, segurava com jeito. Mãe era muito especial. Mas triste. Tão triste que a tristeza pulava dos olhos. Era gritante, forte e até irritante tanta melancolia que emanava dela. As roupas coloridas que dava de presente tinham se tornado desbotadas, sem vida. Despertei com a voz que penetrava no ouvido. Voltei. Este servia. Perfeito. Interessante. Falante. Mãe teve sorte hoje. Talvez a tristeza que emanava de seu corpo dissipasse algumas horas. Seria divertido. Apesar de triste, mãe era exigente. Metódica. Muito detalhe sem nada passar ileso. Os beijos molhados quase me seduziram. O corpo amoleceu e tentou cair em tentação. Mas o olhar triste penetrou nos pensamentos e esfriei. Abri a garrafa de vinho e salpiquei substância química. Os olhos do homem fecharam. Tomei assento no banco do motorista. A noite prometia e mãe ficaria feliz. Muito feliz hoje.
Acordei sobressaltada com o despertador do quarto. O sol começava a nascer no céu avermelhado de frio. Levantei da cama. Mãe me aguardava na cozinha com o café ralo passado. Um sorriso tímido no rosto. A noite foi boa, movimentada. O verme rosnou, gritou baixinho até libertar a tristeza dela e com um golpe de facão, mãe degolou o homem.



Andreia Donadon Leal - Déia Leal
Diretora do Jornal Aldrava Cultural
Governadora do InBrasCI-MG
Membro da Academia Letras Rio-CM e da AVSPE

http://www.jornalaldrava.com.br/pag_deia_leal_plan.htm

(31) 8431-4648

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

A PALAVRA PODE FICAR- de Gustavo Dumas

A vida da palavra. Certo, estava num processo de vagabundagem intelectual e me veio às idéias esse tema, tão vulgar. Vivencio a velha angústia de olhar para a página imagética, formatada, que me assalta a tela e a mente em brancos e não saber direito o que dizer. Há efetivamente um algo a se dizer, sempre que se começa um texto?! Bom, fato é que eu já há muito pensava nesse assunto e Zeh Gustavo nem era nascido: o tal “antes” da palavra, seu quase. Ou pré-quase. Vamolá: eu quero, preciso escrever. Cogito os dois substantivos – vida, palavra. A vida da palavra. Penso ainda: e se eu, sorrateiramente, invertesse a ordem, fizesse um trambique do tema inicial e me propusesse escrever sobre “a palavra da vida”? Como seria? Acharia uma sobre a qual me debruçar para dissertar sobre a vida? Haveria uma palavra, “a” palavra, palavra-vida? Afinal de contas: que, ou quem é a palavra?!

Tá, confesso, estou muito confuso. O tempo vai passando. O tempo sempre vem passando. E passa. Com a vida, com cada vida. É mesmo? Foda-se. Não escrevo para ajudar a passar o tempo; escrevo para atravancar seu fluxo. É uma resistência. Uma pedra no caminho para o fim, um modo de estacar o ritmo da marcha para a morte, de desviar sua atenção. Trata-se de um drible – que pode ser de craque ou de pereba. Um drible-clichê. A palavra pode ser justo esta pedra, esta parada, este toque por debaixo das pernas do fim de cada qual de nós. A palavra é um modo de sobrevivência, permanência pós-morte? Pois a vida da palavra pode ser muito mais longa que a vida humana.

Mas, voltando à segunda questão: qual seria a palavra da vida? Pensei, pensei e só cheguei a uma: vida. Sim, a palavra da vida é: vida. Ou melhor, o verbo. Viver. E o ciclo da palavra? Sua vida seria eterna?! Não, lamentemos, porém palavras morrem também. Ou se transformam em outras, adquirindo um novo corpo, admitindo uma nova carcaça de sentidos. O desuso talvez seja o pior castigo para as palavras. O esquecimento no asilo das estantes de bibliotecas, entre milhares de páginas velhas, carcomidas, amareladas, túmulo sério de traças.

Cada palavra, ao nascer, recebe uma ou duas ou mais vidas. Há, potencialmente, ao menos uma vida escrita e uma vida falada para cada palavra viver. Um vocábulo pode nascer de boca em boca e não receber um registro formal de seu nascimento, via dicionário. Tal reconhecimento demora, às vezes nem acontece. Todavia tem palavra que já nasce com o registro. E não recebe uma vidinha, digamos, mais informal. Nela não se fala, só se escreve. Tem palavra, entretanto, que nasce e se estabelece na boca e na munheca, na fala e na escrita, no cotidiano e no seu inventário, no uso vulgar e no dicionário. Trata-se de um privilégio, que o falante não é sujeito de gastar saliva à toa.

Penso ainda no antes de cada vocábulo, nos fatos e atos que acabaram por formular uma palavra. Discussões, teses, debates, troças. Ou um simples processo de ir nascendo, até brotar de todo, sem forçar. Imagino a época em que a palavra não recebia, de jeito maneira, um registro formal. A palavra, creio, vivia mais intensamente, tinha mais peso, podia fundar uma tradição ou fazer fermentar uma cultura inteira. Quantos não caíram por causa de umazinha?! Em contrapartida, nessa época, devia haver um autêntico genocídio de palavras. Muitas, ainda recém-nascidas, sucumbiam sem dó de ninguém. A competição, a concorrência entre vocábulos por um mesmo significado devia ser igualmente forte. A economia da linguagem tende a não perdoar as palavras mais débeis, menos oportunas ao dizer característico de um lugar, de uma época, de um estrato social. Em compensação, palavras dúbias importunam porém são afagadas com risos, aos conchavos: a maledicência possui posto cativo na história das civilizações, afinal.

O que era o mundo dos homens sem haver uma língua qualquer de referência, antes do primeiro arbítrio, do primeiro significante prenhe de um significado que todos passaram a reconhecer após um breve ciciar de sons? Penso na sensação: a primeira palavra. E o primeiro palavrão? O primeiro fogo, a primeira roda da linguagem verbal. E o primeiro bate-boca? Desde então, palavras surgem, nos insurgem, grudam em nosso falar e ouvir. Necessidade? Sem dúvida. Mas, por que uma, e não outra? Por que “pétala”, e não “tépala”?! A criação da primeira de uma família de palavras só pode ser comparada à vitória de um espermatozóide, entre milhões, para gerar uma vida. As palavras não surgem, pois, apenas por urgência. Surgem também por uma força estranha que faz casarem-se sílabas, combinarem-se sons, criarem-se significados.

O nascimento da vida, portanto, é processo parente do nascimento de uma palavra. A palavra também é parida, cuspida ao mundo, e normalmente atende a uma filiação bem evidente. Eu disse normalmente, porque tem um monte de palavra aí que nasce sem pai nem mãe. E com uma força de expressão! Como no ciclo da vida humana, a palavra se alimenta, cresce, amadurece. Quando envelhecem, as palavras perdem importância, são esquecidas; como as pessoas. A palavra morre quando não é mais útil, mas não só. Às vezes, simplesmente, enjoam dela. Hoje, por exemplo, o pessoal prefere uma solitária imagem às mil palavras, e nisso vão mirrando alguns vocabulários pessoais, a ponto de parecerem uma coletânea de grunhidos. A palavra, entretanto, diferentemente de nós, nunca é sepultada; pode ressuscitar a qualquer momento, altiva, revigorada, comum, usual. A palavra pode ficar para sempre, mesmo que para fazer perdurar nossos silêncios, pelos tempos.

Gustavo Dumas é escritor e revisor de textos, autor, entre outros livros, de “Idade do Zero” (Escrituras, 2005) e “A Perspectiva do Quase” (Arte Paubrasil, 2008), os quais assina com o heterônimo de Zeh Gustavo
contato@algoadizer.com.br

terça-feira, 5 de agosto de 2008

ESTUDO GERAL DO CANSAÇO- de Clevane Pessoa

Das facas de dois gumes,

livrem-me, por favor!

Dos inúteis ciúmes,

escondam-me

(talvez no seio da flor)...

Das balas perdidas,

desviem-me a cada instante

(pois sou inocente

de qualquer acusação indevida)...

Dos falsos amores,

mandem-me um documento

para que os rasgue

e fuja deles, contida,

endurecida

sem olhar para o desejo!

Ando cansada da deslealdade

dos que representam

e fingem-se leais...

O cansaço me abate,

com tiros mortais,

quando, triste, vejo

plágios,roubos,mediocridade:

quero uma zona de conforto,

cercada de gente do BEM

para, confiante, ter e dar colo,

relaxar e ser alguém,
enfim, poder DESCANSAR...


Clevane Pessoa de Araújo Lopes
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DOS CICLOS de Clevane Pessoa

para Marici Bross(*)

Sim, Sim,sim,
cicicicicicicicicici
quais as cigarras repetiriam
prenunciando chuva.
Essa, tem aspecto ruim e bom,
na dualidade de Shiva.
Destruir para re/construir.
Concluir para re/começar...
Shivachuvashivachuvashivachuva...
shshshshshshshshshsshshs
lama de uva
aroma de pétala amassada
semente que incha/eclode
ventos polinizadores,
águas apodrecem troncos
que viram limo/humus...
A vida a brotar e rebentar
em flor depois...

Clevane Pessoa de Araújo Lopes

Fonte:http://clevanepessoa.multiply.com/journal/item/6


(*) Poeta e escultora, amiga que partiu
quais as cigarras,depois de muito cantar...



Clevane Pessoa é poeta mineira

domingo, 3 de agosto de 2008

ELEFANTES E GUEPARDOS - de Carlos Vilarinho

Texto em homenagem ao centenário de Machado de Assis

Venho sentindo nos últimos tempos, posso dizer-lhes com a franqueza da alma, pode rir-se também se quiser. Dado à estranheza e absurdo do sentimento. Mas percebo renitentemente que está em arrabaldes, no ar, na atmosfera um incomum processo, familiar até, de proximidade com o autor centenário Machado de Assis. Fico assim pairado, pois como ele morava no Cosme Velho. Era o bruxo do bairro. Eu que não sou bruxo nem nada, nem mágica para enganar criança faço, sou morador de Cosme de Farias. Moramos em bairros homônimos. Também isso não é lá grande coisa, mesmo porque os dois Cosmes eram distintos. Um era comerciante português de séculos atrás, o outro, esse mais próximo de mim, era advogado sem carta de Direito que proclamava justiça aos pobres. Não faço idéia como esse sentimento singular, misterioso e excêntrico vem iminentemente propagando-se de imediato e em princípio, acho eu, em mim mesmo.
Uma vez ao escrever um conto, não lembro qual, tive uma visão metafísica. Ou foi um sonho acordado. Ou foi uma viagem astral. Vi um homem barbudo, com um cavanhaque acentuado, muito parecido com o bruxo do Cosme Velho, dizendo a mim que eu estava caminhando sobre letras certas. Foi um enleio abstrativo. De imediato afirmo-lhe que não usei nada que me levasse a um barato lingüístico-literário-histórico. Então me lembrei dos elefantes que andam em bandos e na hora da morte trilha seu caminho sozinho para o desenlace atmosférico. Talvez o indivíduo que escreve, e que se descobre caminhando para escrever, aja assim. Claro, bem metafórica a comparação. De qualquer forma a figura do elefante bem que se parece com um escritor debruçado em livros na ânsia de absorver e em seguida escrever, criar. Eles nunca esquecem. Tanto um como o outro. Pode-se dizer, no entanto, que como em tudo que compõe a vida, o ato de traduzir o ser humano suscita também uma das mais febris dúvidas. Onde está a imaginação ou a vida? Princípio, meio e fim. Entre as infinitas centelhas de genialidade que assaltam Gabriel García Marquez, ele saiu-se com essa uma vez “... o puro prazer de narrar é talvez o estado humano que mais se parece à levitação”. E levitando provavelmente era que o bruxo do Cosme Velho deveria pender seus olhos em observações antropológicas para então dar vida (ou imaginação) à Capitu, por exemplo. Ora, ora, seria então um duelo infausto, como diria o próprio Machado em uma de suas cartas, o desafio diário e cotidiano de um observador de nuances de seus semelhantes. Retratá-las como um espelho de letras e ao final de tudo, levitar-se, como quer Gabo. Ou confessar de si mesmo, de si para si, ou para outros, como Gerana Damulakis acentuou em texto a respeito de Clarice Lispector. É essa proximidade que começa o texto, talvez familiar, ou por completar um ciclo de cem anos que nos deixa herdar bruxarias lexicais, que seja, urge ser desnudado o homem do século XXI. Aparentemente igual, parecido, em paradoxo diferente, quiçá um outro tempo, mas com os mesmos anseios e dificuldades de século atrás. De épocas atrás. O homem é o mesmo desde Homero. Outros sofistas, uma inquisição “modernizada” e a mesma informação maniqueísta. Sendo que todos são bons e ruins ao mesmo tempo. Maniqueísmo em cada um de nós.
De mais a mais, sendo épocas distintas e distantes, havia e há a mesma evolução tecnológica, científica. Os mesmos discursos políticos, os mesmos dissabores sociais. Hoje um pouco mais intenso. No entanto, como diria outro ensaísta “a literatura não era pensada como manifestação autônoma, e sim tributária de uma discussão sobre o sentimento de nossa natureza, a originalidade da nação, o indianismo, enfim, a cor local”. Há originalidade nos elefantes de hoje. Não há cumplicidade entre os pares da pena, melhor, do word. Não posso, no entanto, sozinho, sentir a proximidade familiar de um bruxo centenário. Ou correr desarvorado para lugar nenhum. Correr sim, como um guepardo entre antílopes, mas coletivamente e em objetivo comum. Revelar o homem do século vinte e um.

Carlos Vilarinho 02/08/08

sábado, 2 de agosto de 2008

A SANTA - de Carla Dias

Em nome do dia eu me desapego da noite. Acordar não se trata de apenas abrir os olhos, mas também de ressuscitar histórias, como se fôssemos um grande livro fechado sobre a mesa de centro de uma sala vazia e, de repente, pessoas entrassem e começassem a folheá-lo, a descobrir a trama, os devaneios, a ausência de lucidez alimentada com cuidado nas entrelinhas do roteiro que o destino assina por nós. É assim que me sinto quando o meu marido entra no quarto, fica de frente ao espelho para dar o nó na gravata. Veste-se bem, recende a perfume caro. Nem se vira para o adeus e sai, as malas já postas à porta, prontas para segui-lo seja aonde for.
E eu tendo de acordar, levantar e viver. Eu que não gasto o meu afeto com o imediatismo, prefiro a falência homeopática, como se isso a tornasse secreta. Prefiro o silenciar aos poucos ao grito de histeria ao despencar em abismos.
Não se iludam... Não me fere a partida do homem da minha vida durante dez longos e tortuosos anos. Não me importa que no armário minhas roupas mofem sozinhas. Não me incomoda a casa vazia, sendo vítima da ausência de alguém. Assim como tanto faz se à mesa do café somente os meus pés se acomodam por debaixo dela. É assim que sou consumida pela vida: calmamente, no frescor da extravagância de certa loucura.
Em frente ao espelho, nua em pêlo e a esgueirar defeitos. Cabelos pingando, molhando o carpete e ofendendo o esmero, antes de hoje um dos senhores da casa. Seios flácidos, resquícios de todas as vezes que dei de beber ao amante desinteressado de mim, mas que não se atrapalhava ao me confundir com um mero instrumento de apaziguamento de desejo, contanto que sua fome fosse ressarcida pelo destino que lhe injetou na vida a minha presença. E me amou com o amor ressentido; durante todos estes anos, gozou em mim a sua mágoa, enchendo o meu ventre de uma paixão estéril. E nos dávamos por satisfeitos ao engolir a defesa de que não era nossa culpa, que não fora nossa escolha. E eu me consumia de tranqüilidade ao voltar para a sala e passar a madrugada lendo Balzac, desinteressada de realidade ou compreensão, ou das normas estabelecidas para que levássemos a vida sem dela verter uma gota de insanidade que fosse. E assim, eu me embrenhava na imaginação e, através dela, rejuvenescia delírios que guardava para consumir a sós.
O tique-taque do relógio vai contra o meu momento de desapego do tempo. Levanto e vou até ele, tiro as pilhas. Volto para a mesa e me sento como se nada tivesse acontecido nos últimos anos. O silêncio é impenetrável.
Observa-me, preocupada com a minha situação de esposa abandonada, quarenta e cinco anos, sem filhos, desleixada com a aparência. Pergunta se não vou tomar jeito, porque sou mulher adulta e preciso reagir. Será que ela sabe que o futuro nunca me interessou? Que não me doeu em nem um milímetro do corpo, que dirá da alma, a partida do Ernesto? O que ela sabe sobre mim, além do fato de termos nascido da mesma mãe e herdado os olhos azuis aguados do nosso pai? Nada.
Adelaide é mulher de aceites. Basta-se na perseverança em viver uma paixão afrodisíaca, a mesma que se torna uma rotina pálida quando o sol nasce. É mulher da noite, com o descuido de ser de um homem só. E ainda tem coragem de me cobrar reações, minha pobre irmã! Nem parece tão mais moça do que eu; que quinze anos separam nosso início de jornada na terra. Estamos tão parecidas, sem idade, sem vislumbre. Ela mais colorida do que eu no seu vestido vermelho de tafetá, na ansiedade de seguir para a festa de aniversário da cunhada. Celebrar o nascimento de quem a despreza e ridiculariza, tudo para poder se deitar, mais tarde, com um homem que em público a trata como uma dama, mas a sós, nos arrabaldes da noite, degusta-a como se ela fosse mulher da vida e lhe impõe, logo de manhã, a função de serviçal.
Mas da vida todas somos. Mulheres coordenando hormônios e querenças, fabricando castelos na areia e também na planta dos prédios em construção. Aperfeiçoando a capacidade de sobreviver às faltas, vadiando com as próprias emoções em busca da raspa da panela, de alguém que lhe ofereça um olhar de afeto por década que seja, mas que haja motivo para a espera.
Adelaide insiste para que eu vá com ela à festa. O café da tarde ainda à mesa, chegando frio à noite que despenca e escurece a sala de jantar. É ela quem se dá ao trabalho de levantar e acender a luz, me fazendo piscar até acostumar os olhos. Ela diz que preciso de um novo homem, um que me queira de fato e não que tenha se casado comigo a pedido do nosso pai, para somar fortunas e unir famílias, brasões. Eu me nego sequer a responder e ela bufa, desfazendo a cara bonita que maquilou para a orgia de ofensas que sempre acontece, após suas festas familiares.
Sai batendo a porta, gritando que arrumará alguém que me coloque nos eixos e me faça relembrar de quando, ainda jovem, eu tecia elogios ao amor. E eu sorrio, complacente, sem mover um músculo. Sorrio ao lembrar do quanto ignorava as rasuras emocionais e de que nada há de tão inocente do que renegar as experiências falíveis, provenientes de amores suicidas.
Calço os chinelos largados debaixo da mesa e vou para o meu quarto, me enfio debaixo das cobertas e fecho os olhos. Adormeço embalada pela poesia que há nos amores risíveis.
Ainda com o telefone na mão, há quanto tempo? Ela não compreende que tudo o que quero é sossego? Que ler os meus livros na cama, ao invés de no sofá, tem sido intensamente agradável; que me dedicar novamente a pintar quadros me basta por agora? Mas não... Falo sobre a irmã mais nova, afetada pela displicência do romantismo, corrompida pelos fados, tangos e boleros, e pela assiduidade com a qual ama sem ser amada.
Como pôde? Grita ao telefone que me avisou e que eu estava sabendo. Mas foi armadilha... Sempre recorre a elas. É amigo do Horácio! , amigo do marido... E daí? Seria, então, outro bonachão? E por que eu deveria aceitar isso? E quem disse que eu quero homem? Paixão? Lubricidade?
Adelaide... A irmã que vive querendo fazer da vida dos outros, aquilo que não consegue fazer com a própria. Vivendo à base das conquistas e alegrias alheias. Ela é quem sorri sempre que vê alguém sendo feliz, ainda que seja um estranho, mesmo que não passe de observar de longe, de alcançar sem tocar... Intocável por ela.
Cinco horas de uma tarde de quarta-feira. Corro até a cozinha e abro a geladeira... Quase nada! O que darei de comer ao desconhecido? Pizza? Pão de queijo? Torta de frango congelada? O que beberemos? Chá de hortelã? Licor de cicuta?
Ligo para o restaurante, peço socorro ao dono, o Alberto, amigo de longa data e de muitas dúvidas gastronômicas. Peço qualquer coisa saborosa. Mas me dê uma idéia do que deseja, Maitê! , e respondo que não importa, contanto que seja para dois e que entregue às sete em ponto. E que ele também escolha um bom vinho, porque da vida pomposa que tive rejeitei etiqueta e conhecimentos gastronômicos e alcoólicos. Do vinho só lembro de tê-lo sorvido para suportar as festas promovidas pelo Ernesto e para agüentar os olhares inquiridores dele ao comprovar, devidamente, que eu era, e por opção, uma péssima anfitriã.
Não servia para a função naquela época e ainda não sirvo, nem quero aprender a servir. Mas aparece esse homem, amigo do Horácio, quem acha que devo encarar a realidade a ferro e fogo, como se não soubesse dos meus passeios pelos infernos disfarçados. Tem a Adelaide, que nem me deixou aproveitar um pouco da solidão com ausência, porque sentir solidão na presença de Ernesto era sofreguidão da pura. Na ausência, é quase poesia.
Sete horas, comida na mesa, vinho, velas. Adelaide me fez jurar que eu colocaria velas nos castiçais, que seria um jantar charmoso. Como ela não exigiu mais nada, decidi eu mesma pela roupa. Tocam a campainha e eu respiro fundo antes de atender. Quem é? É ele mesmo... Rodrigo, amigo do marido da irmã doidivanas que decidiu marcar um encontro às escuras para a irmã insossa. Abro a porta, nos fitamos: desleixados da cordialidade.
Poucas palavras foram pronunciadas durante o jantar. Rodrigo, assim como eu, brincava com os talheres, aborrecido que estava com a situação. Certamente, Horácio o convenceu a jantar comigo através de chantagem. O que seria? Rodrigo o estelionatário? O assassino? Não... Rodrigo o primo de qualquer grau que não o primeiro e que se mudou para a cidade não tem muito tempo.
Às vezes, ele se dá conta de que eu estou presente e sorri. Fez elogio à comida, e eu confessei que mandei comprar de última hora. Desfiou um rosário de adjetivos para o vinho, e eu disse que não entendia nada do que ele estava falando, que só entendia era de buquê de café e flores do campo. Porém, não podíamos negar que estávamos na mesma situação. Assim como eu, ele queria sumir do mapa, mandar o mundo plantar batatas e com ele Adelaide e Horácio. Optei pela solidariedade.
Conversamos durante pouco mais de uma hora, sentados no chão da sala. O terno de corte fino dele jogado sobre o meu tapete persa. Pergunta se eu sempre recebo vestindo moletom. Bancando a ofendida, esclareço que é o meu moletom preferido e ele sorri, alertando-me que isso muda tudo e dá total status ao feito. Ele diz que está na cidade para resolver um problema complicado, mas que não deve ficar muito tempo. Comento que este foi o encontro às escuras mais condenado que alguém poderia ter. E assim, tecendo ironias a respeito de quem somos e de quem Adelaide e Horácio gostariam que fôssemos, percebemos a empatia se juntando a nós, cruzando pernas e fazendo caras e bocas, atrevida que só. Luxuriosa.
Pergunta por que o meu casamento acabou. Respondo que nunca fui casada de fato. Pergunta por que nunca fui casada de fato. Respondo que isso já não tem mais importância e merece o esquecimento. Sorri, pergunta se me acho uma mulher de coragem...
Meu pai, aos prantos, veio a mim e pediu que aceitasse; que era para o bem da família. Até então, cuidar de quem se ama para mim significava proteger, não sacrificar. Aceitei, convencida de que a minha vida ofereceria a todos da família o bem-estar que muitos não poderiam alcançar, além dos títulos, rótulos, conveniências, brasões... Símbolos pelos quais meu pai daria a vida. E eu emprestei a minha ao me casar com o Ernesto, até o dia da morte do meu pai, quando pedi a mim de volta. Não acho... Sou uma mulher de coragem!
Rodrigo se concentra no vinho. Ainda bem que Alfredo é conhecedor dos hábitos do ser humano,pois sabia que precisaríamos de outra garrafa e enviou a extra. Diz que me acha uma mulher muito bonita. Rebato alegando que ele não tem realmente idéia se a minha pseudo beleza de fato o conquistaria em outra ocasião. Por quê? Seios flácidos, pele ressecada, barriga eminente, quarenta e cinco anos contra quantos dele? Trinta e dois? Trinta e três? Ele sorri, mas parece triste. Pergunta se eu tenho medo da morte e, sem pestanejar, respondo que não, que a tenho como companheira de viagem da vida.
E chegamos naquele momento constrangedor em que percebemos o que aflige o outro. E ele deita a cabeça nas minhas pernas, homem destinado a ser filho meu por algum motivo. Não resisto à maternidade do acaso e pergunto o que há, preocupação pelo estranho que choraminga, enquanto aperta, de leve, a minha coxa. Um silêncio constrangedor e pouso a mão nos ralos cabelos dele. Agora o percebo debilitado, apesar de bonito, grandes e vivos olhos negros. Ele se senta bem próximo a mim, me encara enquanto abaixa o zíper da minha blusa e segura o meu seio, como se nele morasse algum tipo de bálsamo. Olhar lacrimejante o dele, o meu é de susto, bem sei. E de certo prazer, porque ainda que me preocupe aquele tom de tristeza na feição dele, me faz estremecer sentir os seus lábios dele me tocarem, e me assusta alimentar outro homem assim tão cedo, antes mesmo de desejar fazê-lo.
E escorrega o corpo sobre o meu, beijando a minha boca, um regalo da vida para uma mulher desafinada na paixão. E me abraça, entregue a um choro que me enegrece ainda mais a alma. De onde vem essa tristeza? Por que ela bateu na minha porta? Bastava a minha própria ser companheira de casa.
Deitada no chão, ele aconchega-se no meu corpo, cabeça deitada na minha barriga, como que tentando ouvir algum conselho vindo de dentro de mim. Mãos segurando os meus quadris. Limito-me a acariciar suas costas com uma das mãos, temendo o desfecho daquele encontro mais cego do que poderia Adelaide imaginar.
Pergunta se estou bem? Sussurro que sim. Pergunta se quero fazer amor. Respondo perguntando se não há como comprarmos feito. Sinto uma gargalhada contida ressoar na minha barriga e essa sensação me causa outra: como se um leve choque trafegasse pelo meu corpo. Pergunta se já fui feliz. Não respondo. Insiste. Digo que não sei, mas que provavelmente sim. Porém não quero me entreter respondendo perguntas que não foram criadas para serem respondidas. Pergunta se eu poderia lhe fazer um favor, mesmo o tendo conhecido somente há algumas horas. Mesmo ele sendo um estranho. Respondo que não deixo estranhos se aproveitarem da minha barriga. Faria? Faria... Por que não? Estamos sempre prontos a fazer favores, prestar serviços físicos ou emocionais, até mesmo os físico-emocionais, quando não há nada a perder.
Sinto quando uma lágrima escorre na minha barriga, ela que parece até a atriz principal da novela. Ele diz que está doente e não tem muito tempo de vida; que precisa partir antes que a dor o parta ao meio, de tão insuportável que é. Confessa que prefere convidar a morte a ter de esperá-la chegar. Pergunta se eu poderia assisti-lo dançar com a morte, antes de ser engolido por ela, porque o único medo que sente é de estar só neste momento. E me sinto estranhamente em paz ao responder que sim.
Não é a primeira vez que algo tão inusitado toma conta da minha vida. E ali, deitada na cama que foi minha e do Ernesto, e agora é só minha, um Rodrigo abatido a me amar sem amor... Que seja... Ao menos não goza em mim suas mágoas, e sim essa melancolia que conheço de cor; já é minha parceira há tempos.
Olhar dele fisgado pelo meu. Aposto que treinou muito para quando encontrasse a pessoa certa. Então é fato: existe a pessoa certa... Eu sou a pessoa certa para ele, que me chama de santa e sorrio, pensando que todos os santos estariam me condenando por ter tomado tal decisão. E já teriam providenciado a minha passagem para o inferno. Mas ele precisa de mim... Uma mulher que não se deixa seduzir pelos castelos construídos na areia ou nas plantas de apartamentos em construção, ou pelo tafetá do vestido de noite capaz de lhe garantir fervorosos momentos de paixão que se esvaem ao primeiro sinal da chegada do dia. Alguém que se dê conta da dor que ele sente e que se proponha a ir com ele até o fim, mesmo que seja para amargar mais tarde. Porque ele sabe da raridade em se ter esse tipo de companhia.
E foi enquanto nos beijávamos, excitados com o desfecho, ele sob mim, manuseando a seringa com liquido do qual preferi desconhecer nome e origem, injetando na veia a visita da morte, que me senti realmente desejada pela primeira vez. Ironia, empatia, prazer, solidão. E ao assistir Rodrigo fazer a corte à morte no ápice do gozo, ele ainda dentro de mim, dei-me conta da fragilidade da vida e das certezas que colecionei ao passar por ela.
Sentada na beira da cama, atrás de mim jaz Rodrigo, meu encontro às escuras. Só consigo pensar no epitáfio: “aqui jaz Rodrigo, homem que escolheu ao invés de ser escolhido”. Em folhetim isso daria ibope, os editores enriqueceriam ao explorar tal história.
Recolho as roupas do chão e me visto. E se choro baixinho, não se atormente por mim, eu já o faço sem ajuda. É que me intriga não saber se assisti a morte de um estranho ou de alguém que conheço há muito tempo: eu mesma. Porque sequer amanheceu e eu já começo a fechar as cortinas, querendo que o sol fique lá fora para que eu possa lamentar um pouco mais por aquele homem de quem, de uma maneira mordaz, conheci da companhia o gosto. E que levou parte de mim com ele nessa viagem. Uma parte que jamais terei de volta.

CARLA DIAS é escritora, baterista e produtora de eventos, nasceu em Santo André, São Paulo, em 1970. Em 1994, foi classificada no V Concurso de Poesias da cidade de São Caetano do Sul (São Paulo), com o poema Transformação. Em 2001, ficou em segundo lugar no III Concurso de Contos José Cândido de Carvalho, promovido pela ANE – Associação Nacional dos Escritores, com o conto Vôo Cego. Também através de concurso, integrou a coletânea Poesias Brasileiras, com o poema Arquétipo da Rebeldia Desenfreada.Participa de diversos sites com poemas e contos, como Jornal de Poesia e Blocos Online, além de ser responsável pelo Improvisos, site que reúne a obra de artistas de diversas áreas, principalmente da literária.
Trabalha no IBVF – Instituto de Bateria Vera Figueiredo, produzindo diversos eventos, entre eles o Batuka! International Drum Fest, que já teve 10 edições realizadas.

Site: www.carladias.com

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

REVIRANDO- de Tatiane Gonçalves

Revirando

O sol nunca mais iria se pôr. Estava consternada. A última tempestade solar tinha mudado toda a humanidade. Por um motivo mantido em segredo pelos cientistas, a partir daquele dia, seria apenas dia e dia, dia após dia. Hélio nunca mais haveria de recolher seu carro de fogo.
E aquele sol, hein!?... Não agüento mais de calor!... Parece que vou derreter!... Não consigo dormir no claro...
As pessoas estavam enlouquecendo. Suavam tanto que precisavam andar sem roupas.
Acabavam, por força do hábito, trabalhando até mais tarde, mas a noite não caía e o sol escaldava o pensamento.
Os pequenos lagos começaram a secar. As calotas começaram a derreter e o mar, furioso com o sol, começou a se expandir. A área continental do planeta começou a se reduzir rapidamente. As pessoas conseguiam pensar com muita dificuldade.
Os humanos esqueceram-se da lua e, como a água potável era escassa, começaram a beber do mar, que por sua vez dava mais sede.
As células, em decorrência da elevada ingestão de sais, começaram a se comportar de forma diferente e nem sequer ficavam túrgidas ou plasmolisadas.
As pessoas, que a essa altura já não conseguiam pensar, desistiram de lutar por qualquer alteração.
E foram ficando pequenas, e foram ficando pequenas, e foram ficando pequenas, e foram ficando pequenas...
- É assim que me lembro de quando viramos amebas.

Tatiane Gonçalves é escritora baiana. Nasceu em Nova Iguaçu, RJ, em 1977. Mora em Salvador desde 1980.
Começou a escrever poemas ainda na adolescência. Participou de oficinas em áreas de seu interesse como Criação literária e teatro.
Teve seu primeiro poema publicado no jornal literário Sopa: Poesia e afins em julho de 2005. Em junho de 2006 apresentou seu poema Seis com o compositor Marcos di Silva e o flautista Flávio Hamaoka na Mostra do Minuto da Escola de Música da UFBA. Em agosto de 2007 lançou seu livro de contos As borboletas são assim. Teve seu nanorromance, Uma dama, publicado em maio de 2008 no nº 2 da revista Axilassada e em marcadores de livros. Ambos através da Editora CISPOESIA.
Os contos "Meninice" e "Vizinhança" estão publicados no site do escritor e professor Renato Suttana e "Os carimbos de Aurélia" no site literário Garganta da Serpente.