segunda-feira, 11 de agosto de 2008

O RATO DO CAPITÃO-de Flamarion Silva

O RATO DO CAPITÃO

Dostoiévski andava na calçada. Ia obstinado. Decidira-se momentos antes a não se desviar para que um tal senhor passasse. Ia com a idéia firme. Eis que o tal sujeito se aproxima. É um capitão. Traz tantas insígnias no peito e usa fina bengala. O chapéu, por ser firme, põe em destaque a altura do homem. As roupas impecáveis.
“Ah, ah, ah, ah, mas que sujeitinho troncho. De que buraco terá saído?”
Quem se riu assim foi o rato do capitão. Oh, oh, perdoe-me a maldita frase, quero dizer, mal dita. Decerto o capitão não levava consigo um rato. Nem tampouco tinha o capitão o caráter de um rato. Mas, diabos, será que és cego a ponto de não enxergar que todo capitão traz consigo um enorme ratão? Redundância? Pleonasmo? Sei lá o nome do rato. Sei que rói meu texto, assim como roeu a alma do pobre Dostoiévski.
“Ah, ah, ah, ah, mas que sujeitinho troncho. De que buraco terá saído?”
O capitão ficou a roer estas palavras. Roeu-as tanto e com tanto cinismo que, ao aproximar-se do nosso amigo, dava para ouvir o triturar dos dentes. Note que o senhor capitão, além de roer o já roído, babava-se.
“Ah, ah, ah, ah, mas que sujeitinho troncho. De que buraco terá saído?”
Perdoe-me senhor, mas o que foi que disse? — Perguntou Dostoiévski.
“Oh, oh, oh. Como? Mas o que foi que disse?” Quis saber o capitão.
Perguntei-lhe, senhor, o que foi que disse?
“Ora, mas como ousa interpelar-me? Eu, a mim, que sou um capitão?”
Perdoe-me, senhor, mas creio que estás a ofender-me.
“Como a ofender-te? Não vês que a ofensa és tu, por estares no mundo. Oh, oh, oh, oh” ri-se o rato do capitão. O capitão seriíssimo.
Talvez não saibas, senhor, mas, como já diz o ditado: o sol nasce para todos. Outro: quem com ferro fere, um dia com ferro será ferido.
“Ora, mas o que dizes? Provérbios vagabundos”.
Para bom entendedor...
“Ora, vá-se ao diabo! Agora, retro! Ordeno-te! Ou queres levar umas bordoadas do meu bastão?”
Dostoievski, impaciente e nervoso, num gesto de desatino, plaft! tapeia o delicado rosto do capitão.
Agora, sim! Dostoiévski diz para si em frente ao espelho, posso sair à rua e bater-me de frente com o capitão. Plaft! mais um tapa, atitude singular de um covarde, ou, diga-se melhor, de um rato.


Flamarion Silva é escritor baiano.

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