segunda-feira, 18 de agosto de 2008

O SEGREDO -de Tatiane Gonçalves

“Já que não consigo caber em mim, transbordo como um copo pequeno e tudo resolvo”.

Ela roía as unhas no ônibus enquanto refletia.

“Os cheiros, os cheiros, o corpo em movimento, o som, o som”. Além de roer as unhas, agitava o pé freneticamente.

Quem a visse de longe, saberia: era louca.

Costumava se questionar se a loucura começaria pelo nariz, pelo ouvido ou pela boca. Isso, desde sempre. Sim, falava sozinha, corriqueiramente. Além disso respirava, respirava... enquanto dormia, enquanto falava, enquanto pensava. Apenas era. Segredava às suas entranhas seus dilemas, suas vontades.

Quando chegou em casa naquele dia, sua mãe chorava, ouvindo a canção antiga que tocava no rádio, enquanto lavava as roupas.

Foi nesse giro que se viu de volta à realidade e não mais no seu mundo repleto de loucura e segredos de sua alma.

- Por que choras, mamãe?
- É essa música, minha filha... me faz lembrar do seu pai... – e a senhora de pele curtida de sol chorava mais forte.
Os cabelos de Dona Guiomar eram presos em coque bem alto, com grampos a segurar os fios fujões. Eram do tipo fino e ralo, já de um grisalho avançado. O corpo era forte, anca larga. Mãos ásperas e envelhecidas. Mãos que sustentaram a ela e à filha com as roupas lavadas com as lágrimas, desde quando o marido a deixou com Mércia ainda de colo.

Já se refazendo da penosa recordação, esticava a vista e indagava à filha.

- Como foi a entrevista?
- Apenas mais uma... Tem horas que me canso!

Era final de tarde e, pondo o pó no coador, Mércia voltava aos seus pensamentos, vendo a imagem de sua mãe abrindo mais uma trouxa de roupas sujas.

- Para se ter sorte na vida: nem oito, nem oitenta. – dizia Mércia com uma convicção rala e até engraçada, enquanto terminava de passar o café.
- Vem você com essas conversas. – resmungava a mãe, já refeita.

O bule transbordou, derramando café e borra quentes na mão de Mércia.

- Merda de vida!... merda de vida... – ela mesma escutava sua voz a sentenciar a vida e buscava ainda um sentido para aquilo. Não o conseguia apreender. Eram nuvens apenas, ou o próprio ar, jamais poderia tocá-lo.

A mãe cantarolava qualquer coisa batendo as últimas peças do dia.

O gosto do café reconfortava pouco a pouco Mércia. Tomava-o olhando na janela o movimento daqueles que iam chegando do trabalho. Seus óculos embaçavam com a fumaça quente. E Mércia lembrou-se de sua infância.
Ajudava a mãe a pegar as trouxas de roupas nas casas das patroas. Era Mércia quem escrevia o rol diante das patroas, enquanto contavam as peças. Aquela criaturinha miúda aprendera a ler e a escrever sozinha, embora sua mãe fosse analfabeta.

- Uma camisa de homem listrada, uma bermuda de brim azul, uma blusa com gola de botão verde...

As senhoras ficavam impressionadas com a capacidade da menina, principalmente quando descobriam que ela tinha aprendido sozinha.

Sua facilidade com o aprendizado rendeu-lhe uma boa educação. Débora, uma das patroas mais generosa de Dona Guiomar, tomou a menina para criar. Deu-lhe escola, roupas, remédios... criou-a junto com seus três filhos: duas meninas e um menino. Mércia ficou com eles até os dezenove anos, quando Débora morreu. Ela, então, resolveu voltar para casa e ficar com sua mãe.
Precisava trabalhar para ajudar a mãe, que, já com idade avançada, tinha muitas limitações físicas: diabetes e pressão alta.
Munida de currículos e do seu certificado de técnica ambiental percorria a cidade em busca de vagas de jornais. Nada conseguia.
Entregava-se constantemente aos seus devaneios. Eram eles que a reconfortavam de fato. Indagava tudo o que podia, vasculhava-se exaustivamente e nada encontrava. Cansava.
Lera num livro que uma mulher com a vida mais complicada que a dela morrera atropelada. Sonhava com isso todas as noites. Em seus devaneios, era a mulher do livro.

Tatiane Gonçalves é escritora baiana contemporânea de Carlos Vilarinho, Renata Belmonte, Flamarion Silva, Heitor Brasileiro Filho ...

Um comentário:

Gerana Damulakis disse...

Tatiane é ótima: texto firme e imaginação previlegiada.