terça-feira, 26 de agosto de 2008

ENQUANTO AS SERPENTES DORMEM AS CARALHAS SE DIVERTEM- por Zeh Gustavo heterônimo de Gustavo Dumas

O terno prata me ressuscitava a elegância mofada, disse-me um vulto-eu, voz-que-vinha, altiveza evocada de dentro do espelho amarrotado lá da casa velha de Madame Pompom. Íamos a um casamento muito chique. Eu estava saindo com Madame Pompom e precisávamos apenas comer e beber como dois durangos de folga, sem maiores preocupações.

Logo chegamos, Madame foi acionada para funcionar nos preparativos. Madame Pompom se sentia importante quando lhe confiavam tarefas em ocasiões especiais para os outros.

— Agora você pega esses dois pintos e enfia na boca daquelas serpentes.

Eis a Dona Mãe da Noiva, classuda, inteirona em seus enta-e-blau de idade. O Pai da Noiva não existia, estava morto e recebia as pessoas com um sorriso ocre de coveiro arrependido. Falava muita abobrinha e eu fugia dele indo ao banheiro. Eu tenho uma tática de provocar o mijo, quando me aporrinham.

Os perus vinham com suas respectivas bolas, e Madame esforçava-se para desguiar dos olhares curiosos dos convivas antecipados que salgavam todo o ambiente. Madame Pompom enfiou com jeito os dois cabeçudos na goela estreita das duas serpentes vivas. Dá-lhe, Madame! Caralhas na boca das serpentes, a festa podia agora começar. Eu não era daquele planeta mas continuei de butuca no movimento, parecendo alguém muito interessado.

Os minutos miudamente correram. A platéia encheu. Os burburinhos trabalhavam até o teto do lugar e Madame Pompom cumpria as ordens da Dona Mãe.

— Pega as mantas de ouro das damas-de-honra. Rápido! Rápido, ela já vai entrar...

Ela era a Noiva, cuja Dona Mãe estava muito estressada. As pessoas ficam estressadas com essas bodengas de família. Música, maestro, que lá vem, pois não, a Noiva, cheirando a orvalho de lua-queijo. Madame, eficiente, atravessou discretamente o pátio e a canção-comum que tocava e os olhares que se voltavam todos para a de-branco. Madame Pompom estava invisível aquela noite! Só que o baú onde deveriam descansar os áureos trapos encontrava-se surrupiado. Oh, houve uma comoção!

E eis que surge... uma louca. A Louca! Apareceu com as tais mantas, penduricadas sobre o corpo magro com barriguinha. As loucas em geral são assim, magras com barriguinha. Sua presença de espírito parecia incentivar as serpentes de caceta na goela, que passaram a executar dancinhas desensaiadas, em algazarra. Naquele tempo os perus de serpente sofriam muito, coitados.

— Olá, eu sou a Louca da história! Aqui estou eu, ha ha ha! Ha ha ha!

A nossa vilã de filme C balançava as vestes, esfregando as mãos rechonchudas na genitália louca. Porém a Noiva não demoraria a retomar o seu protagonismo no evento. Precipitou-se uma cena sórdida – e eu a tremer de abstinência alcoólica!

— Ora ora, e eu, que sempre fui a princesinha, a virgem da hora?! Agora quero mais que se foda!

Súbito arrancou o vestido. Uau! Nossa diva estava de calcinha de algodão branca rabiscada de oncinhas vesgas.

— Já que essa Louca aí estragou tudo, venham me comer! Eu sei que todos estão doidos pra meter em mim, podem vir!!!

Doce menina... Eu já me dirigia ao sacrifício quando Madame Pompom interceptou-me com um duro olhar de reprova. O Pai da Noiva tentou apartar o clima que se gerava, ali.

— Filha, pare com isso, onde já se viu?...

— Você?! Pensa que esqueci que você cheirava minhas calcinhas quando eu era pequena, seu velho imundo?

A platéia, não sei por quê, ululava. A Louca girava com suas mantas douradas. As serpentes exercitavam seus perus na boca. Madame Pompom corria de um lado a outro. A Mãe da Noiva dava ordens, com estampa de horror na testa de rugas pintadas. De minha parte, digo que nunca suportei escândalos e comecei a me aborrecer: e a boca livre?!

Resolvi tomar uma providência. Cheguei-me ao Noivo:

— Ei, cara, comeste a Louca ou não, afinal?

Ele não gostou do tom da minha pergunta.

— Bom, eu vou andando... Vou procurar alguma coisa pra beber, tá a fim?

Ele gostou do tom da minha pergunta. Fomos andando.

— Onde vocês pensam que vão?

Era Madame que nos seguia, matreira; na mão direita uma faca de cortar bolo, que não deixava espelhar tristezas.

— Vamos transar, topa?

— É, só até essa coisa toda aí se resolver – o Noivo se soltava.

Madame Pompom sensibilizou-se com tão inocente gracejo e permitiu às nossas caveiras irem se embebedar em relativa privacidade. Ela tinha muito o que fazer. Eu e o Noivo ficamos falando de literatura, entre copos derrubados. O Noivo era um cara boa-praça, lia bastante os clássicos.

— Para poder falar mal... Muitos desses caras não bebiam!

Era a primeira vez que eu concordava com algum ser humano num papo sobre literatura. Depois ainda conversamos sobre os escritores que bebiam e sentiam e expressavam sem frescura suas dores, escritores cujos textos normalmente possuem manchas de merda e de sangue que os fazem morar à margem da avenida cânone.

Papo vai, papo vem, amanheci novamente de ressaca, todo vomitado. O vômito não era meu. Nem de Madame Pompom, que nunca vomitaria na vida. Havia vários guarda-chuvas molhados pelo chão e Madame tinha saído, eu acho. Mas deixou as serpentes de caralha na boca tomando conta de mim. Eu era um sujeito perigoso, podia denunciar todo mundo por tráfico de serpentes encaralhadas. O Noivo tava no chão, abraçado à Louca, toda vestida de noiva. Cabra danado! A Noiva reluzia na outra ponta, com um velho todo babado em cima dela. Pensei, pensei... E achei mais jogo voltar a dormir, enquanto as caralhas e as serpentes sonhavam com um mundo melhor.

* Texto concebido a partir de sonho de Ana Cecilia Reis.

Zeh Gustavo é heterônimo do escritor Gustavo Dumas. Publicou os livros de poesias “Idade do Zero” (Escrituras, 2005) e “A Perspectiva do Quase” (Arte Paubrasil, 2008), ambos pouquissimamente conhecidos. Faz sua estréia prosaica neste Algo a Dizer.
E-mail para contato: zehgustavo@yahoo.com.br
contato@algoadizer.com.br

Um comentário:

Anônimo disse...

um terno prata...olha lá eu nele