sábado, 9 de agosto de 2008

CAFÉ RALO- de Andreia Donadon Leal

Acordei assustada com o barulho do despertador do quarto. Mãe passava café ralo, sentia o cheiro suave de seu aroma. Os olhos mal se abriam do rosto cansado de noites, que nem sei quantas, passadas em claro. O expediente noturno tinha sido muito pesado nas últimas semanas. .Dei um pulo da cama, acordada dos devaneios matinais. Tirei pijama, pantufas que esquentavam os pés na madrugada fria. Tomei banho quente. Espiei da fresta da janela, raios tímidos no céu cinza-prata. Talvez mais um dia de chuva; pingeiras na casa...Vociferei um bom dia para mãe que me aguardava na cozinha infestada de mosquitos nas panelas e pratos sujos da janta passada. Preparei ouvido para ladainhas de sempre, mal disfarçando a impaciência também corriqueira. Coitada da mãe. Sozinha. Abandonada. Triste. No ônibus contei as moedas da bolsinha jeans e entreguei para o trocador de rosto gorducho e olhos melados. Mais um expediente estressado de segunda-feira. A noite não demorou a entornar no céu. Mais um fim dela para vagar nas calçadas escuras da rua. Rodei sem rumo os seixos pontiagudos da rua direita, esquerda com o salto do sapato batendo elegantemente. Nada! Hoje a noite não prometia. Também com o desânimo expressivo pouco provável, muito pouco. Em casa mãe deveria saber que demoraria. Não com as mãos abanando. Não faltava nada para ela. Até a paciência que insistia brotar do cérebro para boca, segurava com jeito. Mãe era muito especial. Mas triste. Tão triste que a tristeza pulava dos olhos. Era gritante, forte e até irritante tanta melancolia que emanava dela. As roupas coloridas que dava de presente tinham se tornado desbotadas, sem vida. Despertei com a voz que penetrava no ouvido. Voltei. Este servia. Perfeito. Interessante. Falante. Mãe teve sorte hoje. Talvez a tristeza que emanava de seu corpo dissipasse algumas horas. Seria divertido. Apesar de triste, mãe era exigente. Metódica. Muito detalhe sem nada passar ileso. Os beijos molhados quase me seduziram. O corpo amoleceu e tentou cair em tentação. Mas o olhar triste penetrou nos pensamentos e esfriei. Abri a garrafa de vinho e salpiquei substância química. Os olhos do homem fecharam. Tomei assento no banco do motorista. A noite prometia e mãe ficaria feliz. Muito feliz hoje.
Acordei sobressaltada com o despertador do quarto. O sol começava a nascer no céu avermelhado de frio. Levantei da cama. Mãe me aguardava na cozinha com o café ralo passado. Um sorriso tímido no rosto. A noite foi boa, movimentada. O verme rosnou, gritou baixinho até libertar a tristeza dela e com um golpe de facão, mãe degolou o homem.



Andreia Donadon Leal - Déia Leal
Diretora do Jornal Aldrava Cultural
Governadora do InBrasCI-MG
Membro da Academia Letras Rio-CM e da AVSPE

http://www.jornalaldrava.com.br/pag_deia_leal_plan.htm

(31) 8431-4648

4 comentários:

Anônimo disse...

showwwwwwwww de conto! parabens!

Karla

Anônimo disse...

Tomei um susto no final. Bem interessante, surpreendente. Parabéns, Andreia Leal.
Laura Maria

Anônimo disse...

matou a pau e o homem.
carolina

Anônimo disse...

Excelente texto, Andreia. Parabéns pelos seus escritores e arte.
Sérgio