quarta-feira, 30 de julho de 2008

CHÃO DE CIMENTO ENCERADO- de Andréia Donadon Leal

Sem contestações, destino. Virar poeira cósmica, lixo ou alimento de vermes. Incorruptível tropa de mortais. Os acordes sinfônicos que tocam nos ouvidos acariciam, o Réquiem k.626, mozartiano, para ninar a marcha fúnebre. Que melodia é esta? Ora lírica, ora austera. “Réquiem aeternam dona eis, Domine”. Descanso! Exigente ou simplesmente imbecil. Asseverações. Transparecer certo esgotamento de viver nem quatro décadas. O corpo brada: descanso. Exaustão triplicada com afazeres inúteis. Comer todo tempo. Sentir saudade da criança que andava descalça pelas ruas de Itabira afora, arrastando o casco grosso que protegia a sola dos pés. Gargalhar com piadas sem graça. Sentir falta de si mesmo. Levantar da cama de solteiro, esticar o lençol, dobrar a coberta e colocá-la no guarda-roupa. Do cheiro de café passado na cozinha pequena de um pai com caneca cheia, mão esticada e sorriso tímido nos lábios. Pai é assim mesmo. Passa café todas as manhãs e tardes. Infeliz quem não tem a caneca repassada. Hoje distante, longe e cansado. A saudade bate forte; rever a cena e sentir o cheiro. Sentir falta da casa desarrumada de manhãzinha. De vassoura na mão varrendo pacientemente os cômodos empoeirados e sujos com fios de cabelos embolados nos ciscos. Encher o balde de água com desinfetante e amaciante. Passar pano no chão de cimento grosso. Vez ou outra, vontade de chegar perto do pai e pedir um chão de madeira para encerar. Música estridente e incompreensível. Ora movimentar as ancas com a vassoura na mão ou fingir tocar guitarra. Bobagem, quanta bobagem! Mãe fala: passa cera vermelha no cimento que o chão ficará colorido e pare de dar este xouzinho patético. E era verdade mesmo. O chão da casa era vermelho encerado e escovado. Em casa de escovão sem uso, escondido no porão. Sentir saudade das brincadeiras dos irmãos ainda crianças, que quase estoura as veias do coração de tanto sentir. Cresceram e envelheceram, uns de cabelos grisalhos, rugas fincadas no canto dos olhos e da boca e dobras no pescoço. Os sobrinhos que crescem numa fração de tempo. Sentir saudade da árvore de natal montada na sala de casa e bolas metálicas e estrelas coloridas e bilhetes pregados. Do sapatinho de crochê que só mães de outrora faziam para cada filho colocar na janela no dia de Natal. Era pequeno o sapato, as mães diziam. Por quê? Porque Papai Noel tem que presentear todas as crianças do mundo. Um presentinho para cada menino. Saudade da música que saía da vitrola e os meninos dançando e pulando no cômodo, pai e mãe mirando amorosamente as peripécias das crias. Sentir falta dos dias chuvosos, com relâmpagos estourando trovões nos ouvidos e a criançada agarrada na barra da saia da mãe. Sentir falta em andar de mãos dadas com os irmãos pela rua em dias de domingo e do cheiro de broa de fubá com canela ou pudim de pão. Dos ralhos e beliscões da mãe e do pai, quando chegava em casa depois da hora. Sentir. Filho que sente falta do pai a acordá-lo cedo para ir à escola e das histórias da avó. Até da imbecilidade e falta de maturidade adolescente. Da crise nervosa das meninas quando chega à primeira regra, como dizem ainda algumas mães. Das horas conversando com colegas de escola sobre o primeiro e gosmento beijo; da festa de quinze anos e febre da onda das debutantes. Será que ainda existem debutantes? Crise de adolescentes, sim. Falta da falta de experiência, do primeiro emprego, da primeira entrevista. Até da primeira transa, primeiro contato com sexo, adolescente, menina ainda: traumatizante, dolorido e às pressas num banco de carro. Uma experiência a mais ou a menos. Sorte ou falta. Não importa, pouco importa. Memoráveis incidentes ou melhor acidentes. Não vem ao caso, catastrófico. Sentir falta de não pensar muito, não querer mais, mais, muito mais e ainda mais. O caminho sem retorno. Se tivesse... Um chão de cimento grosso para encerar e outra música para ouvir, que não o Réquiem K.626.
Andréia Donadon Leal é escritora e artista plástica premiada, natural de Minas Gerais.

2 comentários:

Anônimo disse...

parabéns, déia donadon. aprecio muito seu jorro literário de escrever,

rafa

Anônimo disse...

aíiiiiiiii, deinha, sempre arrasando, na escrita e na pintura.
Parabéns pelo texto!!!!!!

Carol