domingo, 27 de julho de 2008

"ESTÔMAGO" E A DIALÉTICA DO SUPRIMIDO-de Gustavo Dumas

O nordestino Raimundo Nonato aporta, origem nula, dinheiro zero, bagagem rala, na São Paulo de quem não tem carro, só canela. O cozinheiro Alecrim é recebido com zombaria na cela de Bujiu, o chefão da cadeia, ao se apresentar como Canivete – Nonato Canivete. Raimundo Nonato, Alecrim, Canivete tratam-se todos de facetas de um mesmo personagem, no caso o protagonista do filme de estréia do diretor Marcos Jorge, “Estômago” (Brasil/Itália, 2007), interpretado com acuidade pelo ator João Miguel, que se afirma no cinema brasileiro pela capacidade e ousadia de escolher e desempenhar bons papéis em filmes de diretores estreantes. (Antes de “Estômago”, Miguel atuara, por exemplo, em “Cinema, aspirinas e urubus”, de Marcelo Gomes, e no “Mutum” de Sandra Kogut.)

“Estômago” compõe uma massa, una, de duas tramas narradas em paralelo, que têm como liga o talento de Nonato/Alecrim com a culinária. Na “primeira” trama, é a mão-boa para a cozinha, ou melhor, para a coxinha o que vai garantir a Nonato abrigo para dormir, mulher para abraçar, patrão para lhe aporrinhar e, num segundo momento, até mesmo “ascensão” social. É no pé-sujo de Zulmiro (Zeca Cenovicz), que o trata como um dejeto, que Nonato descobre seu talento culinário, logo percebido por Íria (Fabíula Nascimento), prostituta boa de garfo por quem se apaixona, e depois pelo dono de cantina Giovanni (Carlo Briani), que lhe dá, além de um emprego melhor, uma oportunidade de refinar seu gosto e adquirir o conhecimento necessário para se afirmar como cozinheiro. No “segundo” enredo, outra “ascensão” se efetua: Alecrim ganha Bujiu (Babu Santana) pelo estômago e começa a galgar espaço na hierarquia da prisão devido à sensível melhoria na alimentação do chefe. Até então, é o Nonato submisso, resignadamente anulado quem toca adiante o seu dia-a-dia – de acordo com o dia-a-dia de quem manda. Esta subserviência lhe permite conquistar território, prestígio, em troca apenas de suas horas de trabalho e dedicação, leia-se: de seu silêncio, de sua não-opinião, do sacrifício total de seu tempo e vida.

Raimundo Nonato, no entanto, é Alecrim. E é Canivete, ou não? Trata-se de sujeito capaz de buscar, apreender e bulir com os sentidos; seus instintos encontram-se preservados e ele possui mão-boa para observar, selecionar e combinar elementos com uma finalidade estética, com ou sem receita. Ao fazer de sua coxinha de galinha a mais pedida do pedaço; e de seus pratos um instrumento de “consideração” no presídio, Raimundo Nonato/Alecrim/Canivete escapa à exclusão característica de sua condição inicial, em ambos os casos (rua ou casa de detenção, liberdade ou prisão). A oportunidade de inserção social se revela um interessante abismo: dado que a sobrevivência está a se garantir, não estaria a despertar, no personagem, uma fome de viver, sem mais negação de si mesmo? Mas, viver o quê? E quem é ele, afinal? Esta negativa, ainda que episódica, da negação que o sobreviver impõe acaba por desvelar um Nonato violento, em processo de détournement (desvio), no uso subversivo que o situacionismo (1) apregoou para este termo, nos idos da década de 1960, ao alertar, ao seu jeito, para o fato de que as situações da vida cotidiana tornavam-se, cada vez mais nitidamente, propriedade do poder, alegorias de um espetáculo sem artistas, cujos papéis são exercidos por especialistas, ou seja, figurantes em suas próprias histórias de vida.

Ao ser traído, Raimundo Nonato mata, abrindo mão de seu status quo na sociedade organizada. Para ascender hierarquicamente na sociedade carcerária, Alecrim trai. E mata, de novo. Em ambas as situações, agindo sempre com crueldade. O personagem vai do acesso de raiva ao controle metódico de seu crime em poucas cenas. O crime adquire, assim, um fim em si mesmo, um fim estético, como um prato em cozimento para um banquete de sangue a ser servido e sorvido na temperatura que mais bem convier à saciedade do apetite.

O apetite, ou a falta de – não seria este o mistério do filme? Senão, vejamos... No universo fabular instituído com competência – e estômago! – por Marcos Jorge, Raimundo Nonato/Alecrim é o excluído de origem a fuçar e carpir temperos num mundo que pasteuriza sabores e plastifica sentidos. Neste mundo, a violência é recorrente, porque resulta de vícios e contradições estruturais. Nonato Canivete Alecrim a usa com requinte de chef, pois é este o papel que ele “escolheu” desempenhar e também porque a escalada na hierarquia do poder não vale, para ele, todo o sacrifício do paladar. Por outro lado: Nonato ascenderia a quê? E para quê?! Eis que seu caráter bruto o resguarda da venda plena de seus atos para um sistema que o nega, desde sempre, como sujeito, e que só o acolheu na condição de sobrevivente. Qual é o gosto disso? A pouca cultura, sábia, neste caso, de Nonato parece nos sacudir para o drama de nossa época: o fragmento de ser que a utilização totalitária de nosso tempo pelo poder nos torna. Ou não seria a metrópole o lugar de diálogo-trânsito forçado entre estados de ser esvaziados, que consentiram pessoalmente para a alienação de suas próprias vidas cotidianas?

Nonato Alecrim Canivete sintetiza o nosso vazio perambulando pela cidade mais viva que nós, que estamos nessa apenas para sobreviver; é o ninguém que se projeta em movimento repentino de um pretenso existir, servente que certo dia destoa, dialeticamente posto em situações que pressupõem, ainda que por uma via catártica, a superação da supressão de si pelo poder. Trata-se “Estômago”, enfim, de um retrato fílmico de nossa perplexidade e impotência diante de uma condição humana que só encontra sabor no plano da virtualidade. É cinema concebido para quem tem estômago para conviver e ficar bem em uma sociedade surrealisticamente situada no limiar entre civilidade e barbárie, no aguardo ciente e tenso pelo próximo conflito a se instaurar sob nossos olhos saturados.

Notas:
(1) Ver Internacional Situacionista. Situacionista: teoria e prática da revolução. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2002. Coleção Baderna.





Gustavo Dumas é escritor e revisor. Publicou, assinando com o heterônimo de Zeh Gustavo, os livros de poesias “A Perspectiva do Quase” (Arte Paubrasil, 2008) e “Idade do Zero” (Escrituras, 2005).
Contato: zehgustavo@yahoo.com.br
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