sexta-feira, 11 de julho de 2008

LUGAR-BUZUM- de Gustavo Dumas

Não salte da crônica. Espere um pouco. Não é nesse ponto. Você vai passar por alguns sinais e vai achar um ponto final logo adiante, na descida da alameda chamada texto. O leitor passageiro que me desculpe mas o motorista aqui vai atacar hoje de lugar-comum. Ou melhor, como diz a linha do título: vou falar do lugar-buzum de cada um. Porque, observando de dentro de um ônibus o comportamento de cada indivíduo, podemos encontrar todos os modelos sociais. Acha que não? Então que salte aí, precipitadamente. Tô nem aí, pode ficar aí no seu ponto que eu fico na espera do meu. Mesmo te atrapalhando. Calma que este pensatrevimento não é meu (oquei, esqueci conscientemente as aspas devidas) – é típico daquela categoria de passageiros que ficam parados exatamente à frente de quem vai saltar, como se o fossem, e naquele momento. Trata-se do tipo de sujeito em voga hoje, um sujeito de mercado, que se antecipa aos fatos. Compõe o exigido tipo pró-ativo. Antes que seu ponto de descida se aproxime, já está lá, prontinho, forçando, marcando seu terreno, mostrando serviço – no caso, para si próprio, tal sua capacidade/necessidade de autocontrole.
Reforçando o time estressadinho que fica na porta de descida do coletivo atravancando o fluxo de entrada e saída, lutando contra a demora do tempo (“time is money”) de viagem, há ainda dois tipos que se misturam: os desesperados e os perdidões. Os desesperados são os pobres coitados que estão atrasados para pegar num batente sem-vergonha para fazerem jus a uma ninharia mensal. Ou os que estão preocupados em chegar logo na distante moradia, para matar as saudades da família ou fazer as pazes com o estômago vazio que ronca contrariado. Ou estão à cata da empregabilidade perdida na selva do capitalismo financeiro, voraz em seu desenvolvimento tecnológico e na sua fundamental evolução excludente dos valores humanos. Já os perdidões congregam uma categoria equilibrada: não têm classe social, origem ou lugar social a revelarem num primeiro instante. Podem no entanto revelar muitos traços de personalidade. Há os retraídos, que não perguntam ou perguntam baixo sem requererem maiores detalhes ou informações precisas: são pessoas tímidas, que ficam a olhar pro vazio das ruas em busca de uma referência que lhes salve de andar quilômetros a mais ou de se verem obrigados a tomar outra condução. Revelam um comportamento social arredio. Há os que, mesmo sem conhecer patavinas de onde se encontram, perguntam e querem porque querem demonstrar, inutilmente, que conhecem do lugar e só estão um tantinho (muito!) esquecidos. Não dão o braço a torcer nunquinha da silva! Ô orgulho...
- Sabe a Barata Ribeiro?
- Sei, sei... – responde com alegria o perdido enrustido.
- Então. O senhor pega a Barata, desce a primeira...
- Sei... – interrompe com menos alegria para demonstrar que está prestando atenção e entendendo aonde seu interlocutor quer lhe levar.
- ... e entra na segunda rua à direita. O senhor vai ver uma...
- Onde tem uma padaria? – interrompe novamente o sabichão.
- Não, uma borracharia! Segue toda a vida.
- E entra na rua...
- Não, o senhor não entra em rua nenhuma. No final da rua o senhor vai ver a pracinha.
- Ah sim, é mesmo, agora me lembrei – completa simpático, sem perder o rebolado.
Tem ainda o perdido folgado. Este tipinho acha que todos têm que parar tudo para lhe fornecer a informação mais precisa. Trata-se de um “auto-suficiente em perigo”. Odeia precisar de alguém, mostrar-se dependente. Fica mal-humorado de perguntar, mas pergunta porque acredita ser obrigação da coletividade lhe ajudar. Agradece de modo polido e sem olhar nos olhos. (Normalmente é de boa apresentação e usa óculos escuros.) Outro tipo de perdido é o perdido desconfiado. Nunca pense muito ou gagueje ante uma pergunta de um perdido desconfiado. Ele vai entender que você não sabe nada ou que está querendo sacaneá-lo. Vai perguntar a outro, e a outro, e a outro... Até encontrar uma resposta mais firme. Chega a saltar do ônibus, ir na direção contrária à indicada só para perguntar a mais alguém, na ânsia de obter o oculto prazer de vez por outra descobrir que acertou na desconfiança: “Hum, ainda bem que eu perguntei pra outra pessoa!”.
O perdido desconfiado se confunde com o perdido minucioso, detalhista. Tem sujeito que pára perto de um e pergunta um pedaço da informação de que carece; pára perto de outro e, sutilmente (eis sua principal diferença para o desconfiado!), busca um outro pedaço de informação.
Outros comportamentos afloram. Os dorminhocos são hilários, e irritam também. Uns simplesmente caem no seu, no meu, no nosso colo, leitor ou leitora. Aí jogamos ele pro lado lá dele, e ele, quando e se acorda, olha pra nossa cara, em alguns piores casos pede-nos desculpas e... volta a dormir, claro! Formam um grupo, sem dúvida, socialmente muito graúdo: o grupo dos despreocupados ou resignados. O ônibus (mundo, país, cidade, time de futebol...) pode estar indo para as cucuias que ele neeeeem... É, porcamente, macunaímico: “Ai, que preguiça!...”
E os folgadões? Dá para imaginar como esses indivíduos disputam espaço numa empresa, não dá? Os folgadões não se contentam em ocupar o espaço a eles reservado no banco do ônibus. Eles não aceitam dividir. A perna resvala, sutil ou abruptamente, além da sua metade de banco. Há casos de folgadões que ocupam 75%, até 80% do espaço total, empurrando pro corredor quem viaja ao lado. Ou seja, eles não querem nem saber se tem alguém do lado, se “aquilo” for um obstáculo para o seu conforto. Ah, ia me esquecendo dos folgadinhos! Estes são gentis e dóceis, sorridentes, políticos por natureza, para o bem e para o mal. Querem sempre um favorzinho extra, uma concessãozinha, “só desta vez”. Agem na base do “Ih, me esqueci que o ponto mais próximo era o da Rio Branco... Dá pro senhor dar uma paradinha ali no sinal? Pô, brigada, hein!... Muito bom trabalho pro senhor!”
Creio que existam também os “passageiros invisíveis”. São personagens discretas, que só querem o que lhes é de direito. A metade da poltrona, o troco correto do trocador (“tipos de trocador” também dariam uma ótima crônica, mas fica pra próxima), a parada no ponto certo etc. Constituem a grande massa, não só de passageiros, felizmente, quero crer. São típicas personagens urbanas, cidadãos na amplidão com que o termo deveria ser entendido.
E haveria muitos outros tantos tipos a descrever. Vou citar alguns a título de “homenagem”: os tagarelas, os casais exibicionistas, os adolescentes gritadores, os taradinhos, os romantiqueiros (que se apaixonam pela mulher que salta!)... Decerto esqueço uns tantos. Decerto ainda que o comportamento pode variar, dia a dia. Dificilmente, por exemplo, um sujeito se comporta, passeando pela via horária da madruga, da mesma maneira com que transita durante o dia. Mas a viagem da crônica já vai longa. Calma que tá chegando, prezado leitor ou atenciosa leitora. Nada custa saltar só no fim – apenas o olhar. Quiçá um olhar para si mesmo(a), para o próprio comportamento de passageiro(a) social. É o que somos, sempre, até um ponto final de trajeto: indivíduos sociais, e de passagem.

Gustavo Dumas é escritor e revisor. Publicou, assinando com o heterônimo de Zeh Gustavo, os livros de poesias “A Perspectiva do Quase” (Arte Paubrasil, 2008) e “Idade do Zero” (Escrituras, 2005).
Contato: zehgustavo@yahoo.com.br.

Um comentário:

Anônimo disse...

Gostei muito do texto, cheio de verdades sobre o comportamento humano. Valeu a leitura!