quinta-feira, 31 de julho de 2008

ÔNIBUS LOTADO - Flamarion Silva

Ônibus lotado. Mais de uma hora do bairro em que moro até o centro da cidade, onde trabalho. Olho o ferro da cadeira e muitas mãos seguram firmes por causa dos solavancos do ônibus e também para não perderem o espaço. Uma brechinha, entre uma mão preta e cabeluda e uma delicada e branca de mulher. Solto a mão esquerda do ferro do teto do ônibus e intento colocá-la entre a mão preta e a mão branca, mais perto da branca, é claro, que não sou trouxa. Minha mão desce descontrolada e bate na cabeça do homem sentado à minha frente. O tipo, barba de três dias, cara por natureza enfezada, troncudo, olha pra cima e diz: porra, caralho, isso é uma cabeça. Desculpe aí, digo. Ele resmunga qualquer coisa, se ajeita na cadeira me empurrando para o corredor e retesa os músculos do braço, do peito, das pernas, do corpo todo. Todo o tipo é só massa. Me seguro para não encostar nele. Só que atrás de mim todo mundo que passa empurra, e aí esfrego o pau no ombro do cara sentado à minha frente, e de novo ele olha pra cima, diz uma palavrão, resmunga e me empurra com o ombro para o corredor. A viagem toda é isso, todos uns fodidos enfiando uns nos outros. No final a gente se acostuma e aceita que a coisa tem que ser assim mesmo. Naturalíssima.
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Mãozinha macia, branquinha. No dedo de casada a aliança. Minha mão anelando o ferro, folgando um pouco, encostando o indicador na pele de seda, escorregando meio boba mais para o centro da mão dela, que está também meio frouxa. Buraco na pista, solavanco, a mão branca da mulher casada escorrega no ferro e fica batendo na minha preta. Comercial. United colors of Benetton. Mulher branca com filho café-com-leite no banco de trás do carro luxuoso, um negro no volante, o carro pára, aproxima-se uma amiga da mulher que está no banco de trás e diz: hum, de motorista, hein! É meu marido, responde a outra. Você precisa rever seus conceitos, diz a mensagem. Não tá vendo não que sou casada? Pergunta a dona da mão branca, quase chorando. Que foi, minha senhora, tá me estranhando, é? Pronto, todo mundo no ônibus toma partido da ofendidinha. Pára no módulo! grita um crioulo que nem eu lá de trás. Que é isso, minha senhora, acha que tenho cara de quem faz terra em mulher casada? digo, sério. Sou até crente. É que dei um jeito de me esfregar no traseiro dela, músculos definidos, o pau bem no meio deles, a gostosa gostava, eu sei que gostava; o preconceito é que é foda. Surupembou. Você precisa rever seus conceitos, diz a mensagem.
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Ônibus lotado. Uns caras se penduram na porta. Uma velhinha se pendura na porta. Eu vou cair, diz ela sorrindo quando o ônibus arrasta. Tem uma velhinha pendurada na porta, motorista, grita um. Motorista, seu maluco, tem uma velhinha pendurada na porta, grita outro. Ai, eu vou cair, diz a velhinha sorrindo. O ônibus pára. Uma ranchada de pivetes avança e empurra a velha para dentro. O ônibus tá cheio, não tem mais lugar, gritam todos de dentro. Também somos trabalhadores, temos o direito de viajar, gritam desaforados os pivetes. Com jeito a velhinha cruza a borboleta e um senhor também de cabelos brancos se levanta e diz: senta aqui, minha velha, devia ter entrado pela frente. Com essa idade e ainda não entra pela porta da frente. A velha se acomoda e a viagem continua. Tem que passar pra frente, diz o cobrador, aí não dá pra ficar. Os pivetes trabalhadores se olham, pronto, é agora. Cala essa boca, filho da puta! diz o menor deles com a arma na mão. É um assalto! Passa a grana! Rápido! O cobrador, com a arma apontada na cabeça, rápido raspa o dinheiro da gaveta e entrega ao pivete. Este sorri e olha seus companheiros de trabalho. Perfeito, diz um deles. Tá aprovado, diz um outro que parece ser o chefe da gangue. O ônibus pára e eles saltam, como se nada tivesse acontecido. Somos trabalhadores, vocês estão roubando trabalhadores, seus pivetes, grita uma mulher de dentro do ônibus. E nós, não somos? responde um deles, esse é nosso trabalho. Pensa que é fácil, é?
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Revista policial. Desce todo mundo, as mulheres podem ficar, diz o policial com a arma na mão. Encosta aí, com as mãos pra cima; abre as pernas! abre as pernas! já mandei, e dá um pontapé na perna do homem que vai trabalhar. O homem, com medo, humilhado, abre as pernas, tremendo de medo. O policial enfia a mão por baixo. E você aí, o que tem nessa sacola? Coisas minhas, responde o rapaz. Joga tudo no chão! manda o tira. São coisas minhas, besteiras, nada de mais. Coisas suas, besteiras, nada de mais porra nenhuma, arranca a sacola da mão do rapaz e joga tudo no chão. Olha só pra isso, o filho da puta é veado, diz o policial com raiva, e toma, toma, toma pra aprender a ser homem. O rapazinho, envergonhado, humilhado, abaixa-se e pega suas coisinhas, cremes, esmaltes, perfumes, calcinhas. E você ai, negão, o que que tá olhando? Nada não senhor, responde o negro forte, tão negro e tão forte que nem o policial, musculoso de tanto carregar material para a construção dos ricos. Músculos. Só músculos. Seu polícia, uns pivetes, lá atrás, roubaram o ônibus, diz uma mulher. O policial, depois de bater, humilhar, assustar todo mundo, escancara sua bocarra de dentes cavalares, faltam uns três na parte de trás, e, gargalhando, diz: como “roubaram o ônibus”, então ele não está aqui? Toda a gangue da polícia ri do gracejo inteligente do comparsa. O ônibus arrasta, os policiais, os pivetes, ficam pra trás.
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Rapazes e moças fardados no fundo do ônibus. Batucam. Dizem que são estudantes. Essa cambada! Diz o passageiro trabalhador que quer aproveitar a viagem longa e tirar uma soneca. Mas não pode. Os marginais se sentam nos encostos das cadeiras e com os pés batendo nos assentos e as mãos socando o teto do ônibus fazem a festa. Quem quer seda? Diz um com voz normal, e logo os outros respondem com voz grossa, quem quer seda? Todo mundo que vai trabalhar e já está cansado se incomoda, mas ninguém diz nada. Béééé! Cócócócó! Mulher passando na rua. Fiufiu! Tesuda! Ah, ela deu o dedo, goza o comparsa ao lado, sua vaca, aqui pra você ó. E voltam a zoar mais eufóricos. Quem quer seda? diz o chefe da gangue com voz comedida. E logo os outros num coro de vozes avolumadas, quem quer seda? E batem, e zoam, são estudantes. O ônibus pára e eles, assim por onde entraram, passam e saem: pela janela, ou pela porta do fundo, raramente pela porta da frente. Ficam pra trás, assim como ficaram os policiais, os pivetes, outros trabalhadores, etc.
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Fim de mais um dia de trabalho. Dureza. Corpo quebrado. Uma fome! Sem contar que o patrão, assim que o empregado chegou, logo cedo, um pouco atrasado por causa da demora do ônibus, do engarrafamento e da revista policial, foi logo dizendo: bonito hein, e isso são horas de chegar? Vou descontar. Desconta no dinheiro, acrescenta no trabalho, como se fosse direito fazer isso. O empregado aceita calado e às vezes até agradece por o patrão ser tão compreensivo. Outros, poucos, sofrem implosão, aquilo que acontece com os prédios, que ruem sobre si. Mordem-se de raiva. Melhor seria fossem homens-bomba, aquele kamikazes que se explodem, explodem-se, mas levam junto uma cambada. Os caras são muito loucos! Mas tudo isso é besteira. E o brasileiro não teria coragem. Melhor é comer calado feito um carneirinho, bicho no cabresto. Béééé!
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Agora o ônibus vai, aos poucos, deixando para trás as luzes iluminadas dos bairros ricos, as calçadas bem calçadas dos nobres, as vitrines cheias de roupas chiques dos chiques, o perfume e o cheiro bom do que é bom. A brisa que vem do mar é fresca, as gentes, que não são “a gente”, na orla também são frescas. E sorriem com todos os dentes, e correm, e vão, e passam à frente. O ônibus agora corre e vai, passando os postes que vão ficando pra trás, e que mal iluminam as ruas mal iluminadas com suas lâmpadas quase apagadas, ou sujas, ou quebradas, ou... o ônibus tomba, buraco na pista. Tomara que não quebre, tomara que não quebre, meu Deus, rezam todos que querem chegar logo em casa, e que são as boas mocinhas, os bons mocinhos, os estudantes, os policiais, os pivetes, os trabalhadores, etc. Do lado a calçada verde vai passando, e os galhos dos matos batendo na lataria do ônibus. Do mato vem um cheiro de mato, e dentro do ônibus um cheiro humano, um calor humano que sufoca. Meu Deus, aonde nos levará este ônibus?


Flamarion Silva é autor baiano, contemporâneo dos escritores Carlos Vilarinho, Heitor Brasileiro Filho, Renata Belmonte, Tatiane Gonçalves, Andreia Donadon, Gustavo Dumas, Edinara Leão, todos mostrando o homem do século XXI.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

CHÃO DE CIMENTO ENCERADO- de Andréia Donadon Leal

Sem contestações, destino. Virar poeira cósmica, lixo ou alimento de vermes. Incorruptível tropa de mortais. Os acordes sinfônicos que tocam nos ouvidos acariciam, o Réquiem k.626, mozartiano, para ninar a marcha fúnebre. Que melodia é esta? Ora lírica, ora austera. “Réquiem aeternam dona eis, Domine”. Descanso! Exigente ou simplesmente imbecil. Asseverações. Transparecer certo esgotamento de viver nem quatro décadas. O corpo brada: descanso. Exaustão triplicada com afazeres inúteis. Comer todo tempo. Sentir saudade da criança que andava descalça pelas ruas de Itabira afora, arrastando o casco grosso que protegia a sola dos pés. Gargalhar com piadas sem graça. Sentir falta de si mesmo. Levantar da cama de solteiro, esticar o lençol, dobrar a coberta e colocá-la no guarda-roupa. Do cheiro de café passado na cozinha pequena de um pai com caneca cheia, mão esticada e sorriso tímido nos lábios. Pai é assim mesmo. Passa café todas as manhãs e tardes. Infeliz quem não tem a caneca repassada. Hoje distante, longe e cansado. A saudade bate forte; rever a cena e sentir o cheiro. Sentir falta da casa desarrumada de manhãzinha. De vassoura na mão varrendo pacientemente os cômodos empoeirados e sujos com fios de cabelos embolados nos ciscos. Encher o balde de água com desinfetante e amaciante. Passar pano no chão de cimento grosso. Vez ou outra, vontade de chegar perto do pai e pedir um chão de madeira para encerar. Música estridente e incompreensível. Ora movimentar as ancas com a vassoura na mão ou fingir tocar guitarra. Bobagem, quanta bobagem! Mãe fala: passa cera vermelha no cimento que o chão ficará colorido e pare de dar este xouzinho patético. E era verdade mesmo. O chão da casa era vermelho encerado e escovado. Em casa de escovão sem uso, escondido no porão. Sentir saudade das brincadeiras dos irmãos ainda crianças, que quase estoura as veias do coração de tanto sentir. Cresceram e envelheceram, uns de cabelos grisalhos, rugas fincadas no canto dos olhos e da boca e dobras no pescoço. Os sobrinhos que crescem numa fração de tempo. Sentir saudade da árvore de natal montada na sala de casa e bolas metálicas e estrelas coloridas e bilhetes pregados. Do sapatinho de crochê que só mães de outrora faziam para cada filho colocar na janela no dia de Natal. Era pequeno o sapato, as mães diziam. Por quê? Porque Papai Noel tem que presentear todas as crianças do mundo. Um presentinho para cada menino. Saudade da música que saía da vitrola e os meninos dançando e pulando no cômodo, pai e mãe mirando amorosamente as peripécias das crias. Sentir falta dos dias chuvosos, com relâmpagos estourando trovões nos ouvidos e a criançada agarrada na barra da saia da mãe. Sentir falta em andar de mãos dadas com os irmãos pela rua em dias de domingo e do cheiro de broa de fubá com canela ou pudim de pão. Dos ralhos e beliscões da mãe e do pai, quando chegava em casa depois da hora. Sentir. Filho que sente falta do pai a acordá-lo cedo para ir à escola e das histórias da avó. Até da imbecilidade e falta de maturidade adolescente. Da crise nervosa das meninas quando chega à primeira regra, como dizem ainda algumas mães. Das horas conversando com colegas de escola sobre o primeiro e gosmento beijo; da festa de quinze anos e febre da onda das debutantes. Será que ainda existem debutantes? Crise de adolescentes, sim. Falta da falta de experiência, do primeiro emprego, da primeira entrevista. Até da primeira transa, primeiro contato com sexo, adolescente, menina ainda: traumatizante, dolorido e às pressas num banco de carro. Uma experiência a mais ou a menos. Sorte ou falta. Não importa, pouco importa. Memoráveis incidentes ou melhor acidentes. Não vem ao caso, catastrófico. Sentir falta de não pensar muito, não querer mais, mais, muito mais e ainda mais. O caminho sem retorno. Se tivesse... Um chão de cimento grosso para encerar e outra música para ouvir, que não o Réquiem K.626.
Andréia Donadon Leal é escritora e artista plástica premiada, natural de Minas Gerais.

domingo, 27 de julho de 2008

"ESTÔMAGO" E A DIALÉTICA DO SUPRIMIDO-de Gustavo Dumas

O nordestino Raimundo Nonato aporta, origem nula, dinheiro zero, bagagem rala, na São Paulo de quem não tem carro, só canela. O cozinheiro Alecrim é recebido com zombaria na cela de Bujiu, o chefão da cadeia, ao se apresentar como Canivete – Nonato Canivete. Raimundo Nonato, Alecrim, Canivete tratam-se todos de facetas de um mesmo personagem, no caso o protagonista do filme de estréia do diretor Marcos Jorge, “Estômago” (Brasil/Itália, 2007), interpretado com acuidade pelo ator João Miguel, que se afirma no cinema brasileiro pela capacidade e ousadia de escolher e desempenhar bons papéis em filmes de diretores estreantes. (Antes de “Estômago”, Miguel atuara, por exemplo, em “Cinema, aspirinas e urubus”, de Marcelo Gomes, e no “Mutum” de Sandra Kogut.)

“Estômago” compõe uma massa, una, de duas tramas narradas em paralelo, que têm como liga o talento de Nonato/Alecrim com a culinária. Na “primeira” trama, é a mão-boa para a cozinha, ou melhor, para a coxinha o que vai garantir a Nonato abrigo para dormir, mulher para abraçar, patrão para lhe aporrinhar e, num segundo momento, até mesmo “ascensão” social. É no pé-sujo de Zulmiro (Zeca Cenovicz), que o trata como um dejeto, que Nonato descobre seu talento culinário, logo percebido por Íria (Fabíula Nascimento), prostituta boa de garfo por quem se apaixona, e depois pelo dono de cantina Giovanni (Carlo Briani), que lhe dá, além de um emprego melhor, uma oportunidade de refinar seu gosto e adquirir o conhecimento necessário para se afirmar como cozinheiro. No “segundo” enredo, outra “ascensão” se efetua: Alecrim ganha Bujiu (Babu Santana) pelo estômago e começa a galgar espaço na hierarquia da prisão devido à sensível melhoria na alimentação do chefe. Até então, é o Nonato submisso, resignadamente anulado quem toca adiante o seu dia-a-dia – de acordo com o dia-a-dia de quem manda. Esta subserviência lhe permite conquistar território, prestígio, em troca apenas de suas horas de trabalho e dedicação, leia-se: de seu silêncio, de sua não-opinião, do sacrifício total de seu tempo e vida.

Raimundo Nonato, no entanto, é Alecrim. E é Canivete, ou não? Trata-se de sujeito capaz de buscar, apreender e bulir com os sentidos; seus instintos encontram-se preservados e ele possui mão-boa para observar, selecionar e combinar elementos com uma finalidade estética, com ou sem receita. Ao fazer de sua coxinha de galinha a mais pedida do pedaço; e de seus pratos um instrumento de “consideração” no presídio, Raimundo Nonato/Alecrim/Canivete escapa à exclusão característica de sua condição inicial, em ambos os casos (rua ou casa de detenção, liberdade ou prisão). A oportunidade de inserção social se revela um interessante abismo: dado que a sobrevivência está a se garantir, não estaria a despertar, no personagem, uma fome de viver, sem mais negação de si mesmo? Mas, viver o quê? E quem é ele, afinal? Esta negativa, ainda que episódica, da negação que o sobreviver impõe acaba por desvelar um Nonato violento, em processo de détournement (desvio), no uso subversivo que o situacionismo (1) apregoou para este termo, nos idos da década de 1960, ao alertar, ao seu jeito, para o fato de que as situações da vida cotidiana tornavam-se, cada vez mais nitidamente, propriedade do poder, alegorias de um espetáculo sem artistas, cujos papéis são exercidos por especialistas, ou seja, figurantes em suas próprias histórias de vida.

Ao ser traído, Raimundo Nonato mata, abrindo mão de seu status quo na sociedade organizada. Para ascender hierarquicamente na sociedade carcerária, Alecrim trai. E mata, de novo. Em ambas as situações, agindo sempre com crueldade. O personagem vai do acesso de raiva ao controle metódico de seu crime em poucas cenas. O crime adquire, assim, um fim em si mesmo, um fim estético, como um prato em cozimento para um banquete de sangue a ser servido e sorvido na temperatura que mais bem convier à saciedade do apetite.

O apetite, ou a falta de – não seria este o mistério do filme? Senão, vejamos... No universo fabular instituído com competência – e estômago! – por Marcos Jorge, Raimundo Nonato/Alecrim é o excluído de origem a fuçar e carpir temperos num mundo que pasteuriza sabores e plastifica sentidos. Neste mundo, a violência é recorrente, porque resulta de vícios e contradições estruturais. Nonato Canivete Alecrim a usa com requinte de chef, pois é este o papel que ele “escolheu” desempenhar e também porque a escalada na hierarquia do poder não vale, para ele, todo o sacrifício do paladar. Por outro lado: Nonato ascenderia a quê? E para quê?! Eis que seu caráter bruto o resguarda da venda plena de seus atos para um sistema que o nega, desde sempre, como sujeito, e que só o acolheu na condição de sobrevivente. Qual é o gosto disso? A pouca cultura, sábia, neste caso, de Nonato parece nos sacudir para o drama de nossa época: o fragmento de ser que a utilização totalitária de nosso tempo pelo poder nos torna. Ou não seria a metrópole o lugar de diálogo-trânsito forçado entre estados de ser esvaziados, que consentiram pessoalmente para a alienação de suas próprias vidas cotidianas?

Nonato Alecrim Canivete sintetiza o nosso vazio perambulando pela cidade mais viva que nós, que estamos nessa apenas para sobreviver; é o ninguém que se projeta em movimento repentino de um pretenso existir, servente que certo dia destoa, dialeticamente posto em situações que pressupõem, ainda que por uma via catártica, a superação da supressão de si pelo poder. Trata-se “Estômago”, enfim, de um retrato fílmico de nossa perplexidade e impotência diante de uma condição humana que só encontra sabor no plano da virtualidade. É cinema concebido para quem tem estômago para conviver e ficar bem em uma sociedade surrealisticamente situada no limiar entre civilidade e barbárie, no aguardo ciente e tenso pelo próximo conflito a se instaurar sob nossos olhos saturados.

Notas:
(1) Ver Internacional Situacionista. Situacionista: teoria e prática da revolução. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2002. Coleção Baderna.





Gustavo Dumas é escritor e revisor. Publicou, assinando com o heterônimo de Zeh Gustavo, os livros de poesias “A Perspectiva do Quase” (Arte Paubrasil, 2008) e “Idade do Zero” (Escrituras, 2005).
Contato: zehgustavo@yahoo.com.br
contato@algoadizer.com.br

sábado, 26 de julho de 2008

AS CARTEIRAS, AS IDIOSINCRASIAS E A CARONA- Carlos Vilarinho

FUI EDUCADOR DO PROJOVEM-2007-PROJETO DE INCLUSÃO DO GOVERNO FEDERAL PARA JOVENS QUE NÃO FREQUENTAVAM A ESCOLA HÁ ANOS. NOVIDADE PARA MIM ESSA DEMANDA, MESMO NUNCA ME IMPRESSIONANDO COM OS OCORRIDOS, FRUTO DA EXPERIÊNCIA DA OBSERVAÇÃO ANTROPOLÓGICA LITERÁRIA, ESCREVI ALGUMAS CRÔNICAS DO LUGAR QUE TRABALHAVA, ESSA É UMA DELAS.


PROJOVEM 03

Finalmente as carteiras de duas turmas chegaram. Nós, os professores, fizemos infinitas improvisações para dar aula nesses primeiros dias. Não havia como delimitar um assunto, por exemplo, de Matemática. O professor Urbano, já apresentado como titular das Exatas, não tinha como definir ou conceituar Fração, por assim dizer. Aliás, tinha. Só que no outro dia teria que falar tudo novamente, pois alguns faltavam, ou entravam em outra sala com outro professor e outra matéria, evidentemente. Todas as turmas misturadas e uma mixórdia total. Com a chegada das carteiras podemos então encaminhar os docentes para as suas devidas classes e assim começar de fato o programa.
Assumi então meu posto de orientador em uma das turmas. Cada professor é orientador de uma turma. Não sei se isso funciona mesmo, achei uma barra meio forçada. Eu, pelo menos, nunca orientei pedagogicamente algum aluno. Acho que nem eu mesmo sou orientado. Quando a equipe docente caiu em si, em torno do horário mandado, percebemos falhas gritantes. Por exemplo, a professora Flora em um certo dia da semana permanece os cinco horários da noite em uma mesma turma. Dá duas aulas de específica, ou seja, sua própria matéria, e então permanece lá, na mesma turma fazendo trabalho de orientação. Não entendi desde o início das reuniões burocráticas (e quanta reunião burocrática) o que se deve realmente fazer para orientá-los de forma convincente. Como deve ser uma orientação. Aliás, não só eu, a professora Helena e Flora também não. Urbano e Dido, remanescentes desse programa educacional em ano passado, tentaram nos explicar sem sucesso. Se entender, mais na frente com o bonde em andamento, explicarei ao leitor.
Comecei a perceber que os estudantes não se comportavam como estudantes, mas como alunos. Alunos bem primários. Paradoxos desconcertantes. Ao mesmo tempo em que eram imaturos,mal-educados e toscos, se apresentavam também carinhosamente e desconfiados. Percebi também que a desconcentração é para eles o grande adversário. Ainda não faço a mínima idéia de como fazê-los entender que o ar de uma sala de aula é diferente de qualquer outro tipo de atmosfera. O engraçado é que a maioria não se dá conta que ali talvez seja a última estação de transbordo para, ainda talvez, salvar-lhe a vida. Na verdade não sei se é engraçado, preocupante, triste ou infeliz. Não gosto de ter certeza, mas nesse primeiro momento, nesses vinte dias iniciais, não vi progresso discente. Fiz um esforço homérico, com todo respeito ao rapsodo grego, para não sequer pensar em subutilização ou inutilidade. Confesso-lhes, meio encabulado, que para não cair em desgraça descrente, até então, pensei no salário. Sentia saudades diariamente de minhas aulas na Universidade, dos meus alunos mais velhos e esforçados.
Para finalizar esse registro, contar-lhe-ei um episódio que não sei se o considero normal, incomum, preocupante ou apreensivo. Dada a universalidade nivelada rasteiramente da demanda estudantil, os discentes não se diferem muito. São muito parecidos e agem quase sempre da mesma forma. Um dia acabei minha aula e ia para casa. Ao chegar no pátio, percebi em uma das salas uma discussão entre duas alunas. Fato não notado pela professora Flora que fazia ajuste no horário com a professora Dido. Desconfiei mas não me deixei levar em conta no ocorrido. Segui meu caminho. Quando já estava para sair da sala dos professores, vi uma das que estava discutindo sair apressada, destemida e audaz da sala. Com uma revolta no semblante e com uma expressão anormal, disse-me que ela não era louca. Ao passo que concordei, discordando por dentro, imediatamente. Até então ninguém do corpo docente, além de mim, e administrativo havia atentado para o fato e sua gravidade. A estudante que, segundo ela, não era louca, ficava cada vez mais ofegante, respirava fortemente e avermelhava-se acumulando ódio e raiva. Tentei acalmá-la em vão. Ela não ouvia nada, nem ninguém. Num rompante sensacional arrancou da bolsa uma tesoura e partiu correndo para tesourar a outra. Nesse momento, umas das coordenadoras do programa, não vou nomeá-la agora, até porque não precisa, chegou ao núcleo. E no corre-corre, conversa daqui, conversa dali, conseguimos, depois de algum tempo eu, a tal coordenadora, a assistente administrativa (depois lhe dou um nome) e um vigilante, colocar as duas alunas frente a frente para dirimir as dúvidas. A coordenadora com muita habilidade tomou de imediato a tesoura. E ali tive certeza do que disse lá em cima no início do parágrafo, esses estudantes agem da mesma forma. As duas em ímpetos misturados de raiva, ódio e até compaixão uma pela outra foram às lágrimas. Mesmo assim a muito custo se desculparam desconfiadas entre si e entreolhando-se de través.
Fui para casa, mas uma coisa me deixou vexado por entre os dias que se seguiram. A professora Helena, sobretudo ela, fez zombarias burlescas por essa minha intervenção no fato. A essa minha idiossincrasia. O que é pior comentou ironicamente com o tal marido durante uma carona. Nunca mais peguei essa carona...


Outubro 2007
Carlos Vilarinho

quarta-feira, 16 de julho de 2008

DES (A) TRAVESSADA- de Edinara Leão

o pano da tarde
escorregou vísceras
de açoite

eu me contatava com o rio
não podia ver as
teias do mar

teci redes
de eterna ausência
e, atravessada de tua passagem,
por minhas mãos,

desfiz a travessia
embarquei no nada
e nunca mais
desagüei


Edinara Leão escreveu Minhas faces (1990), (a)mostragem (2000) Fragmentos e Quando sopram os trigais (2005) e Estética e transcendência em O estudante empírico, de Cecília Meireles (2007). Nasceu em 30 de outubro de 1968. Escreve desde os 12 anos, participa de mais de oitenta coletâneas. Possui doze troféus literários. Foi “Escritora do ano” três vezes em São Luiz Gonzaga. Mestra pela UPF e doutoranda em Estudos Literários pela UFSM. Reside em Santa Maria. É mãe de Mirela, Pablo, Pâmela e Pedro. Vó de Bernardo. Recebeu o 2º lugar no concurso “Com a palavra, os professores do Brasil” em 2008, no Rio de Janeiro. Idealizou e coordena o Movimento virArte.
e-mail: edinaraleao@yahoo.com.br
blog: http://edinaraleao.blogspot.com/
site: http://br.geocities.com/ruidosdegarca/

terça-feira, 15 de julho de 2008

AMANHÃ, HOJE, ONTEM! de Andreia Donadon Leal

Da janela do apartamento eu espiava a vida lá fora. Era noite clara de lua minguante pendurada caoticamente no céu. Uma estrela lá outra acolá. Não ventava, não chovia nem fazia calor. Um extremo mal gosto do tempo. A maioria das luzes dos postes da rua estavam queimadas. Eu do alto do décimo quinto andar vigiava a rua avidamente; outros apartamentos, casas, cabines de telefone pichadas, janelas de outros apartamentos. Alguns estavam como eu, parado olhando tudo e nada, outros vestiam o uniforme doméstico, outros com o corpo jogado no sofá assistindo ao noticiário da TV. Não me dava o desatino de ligar a televisão e escutar a mesma ladainha de sempre; tudo era cópia da cópia, da cópia, da cópia de ontem! Às vezes fincava noite adentro a encarar a rua pela janela do apartamento e afogava em pensamentos estranhos, ou filosóficos? Será que estava ali mesmo? Eu era eu, ou era outro? Dentro daquela gaiola de loucos, sem sentido. De manhã levantava de sobressalto com o barulho tormentoso do despertador. Calçava meus chinelos e ia até o banheiro enfrentar minha carranca no espelho amassada pelas listras em alto relevo do travesseiro. As escovas estavam estáticas no copo de alumínio, encardidas de lodo. Duas escovas? Isso não tinha muito sentido. Elas só dependiam de mim para sua existência banal. O estômago contorcia com o gosto de flúor da pasta dental ressecada devido a úlcera não cuidada. Meu desjejum matutino: meia lata de coca-cola misturada com pó de café; um cigarro de maconha e a pílula da felicidade: 180 mg de fluoxetina. Trocar de roupa, qualquer uma serve, pegar a maleta e sair do apartamento. Mais uma vez o martelo no cérebro: pra que mesmo trocar de roupa? Num flash a resposta vinha à tona: para não ficar sujo; mas não estava sujo; para quê? Pra nada? Não! As pessoas trocam de roupa sempre! Tomam banho, trocam de roupa! Vão sair trocam de roupa! Vão trabalhar trocam de roupa! As roupas estão sujas? Trocam de roupa, aí tudo bem! Mas se estão limpas trocam de roupa também!? Tem sentido? Sim, por que isso é a convenção! Isso me causava pânico, tédio, raiva, angústia, revolta, ódio... Sei lá, pouco importa!
O bafo do vento soprou intrometido no rosto ressecado; os cabelos não mexeram engomados de poeira e gel; diabo com o sopro do vento! Não gostava do vento, do sol, do nascer nem do pôr-do-sol, da noite, da madrugada. Das pessoas andando na rua, às vezes, encostando em mim com seus corpos desastrados, uma trombada aqui outra desculpa ali. Ou um tanto pior quando me dirigiam um bom dia! Não olhava para as pessoas, estava farto da existência delas. Eram úlceras pro meu estômago queimado.
Os passos eram trêmulos pelo quarteirão. Dois longos quarteirões, até entrar num outro prédio. O elevador me enjoava o estômago, a cabeça, o corpo, a cara. As pessoas dentro dele me faziam pensar na imbecilidade de cada um que estava ali. Inclusive a minha, a nossa , a de todo ser humano com senso mínimo de raciocínio. O barulho da porta do elevador se abrindo, o porteiro anunciou o andar me acordando da excentricidade. Saí de má vontade do elevador vazio e me dirigi à sala com a placa : Psiquiatria e Terapia.
O ar da sala acometido por ar condicionado e incenso de flores que espantava maus fluidos. O som que entrou nos meus ouvidos lembrava clássicos que acalmavam os nervos. Nos meus não acalmavam, só irritavam, pois não suportava escutá-los mais! Música para os pacientes... Sem querer soltei um bocejo, um sorriso amarelo e finalmente um gemido enfastiado. Parei no limiar da porta, não entrei nem saí... Cocei a cabeça, forcei os olhos para a sala cheia de pessoas distribuídas uma a uma pelas cadeiras estofadas e confortáveis. A secretária no centro completando o cenário insensato do inexplicável olhava para mim com olhos forçados, certamente treinados, pois escondiam qualquer sentimento que viesse à tona em um ser humano que era cópia da cópia, da cópia, da cópia, da cópia... Levantou da cadeira como em câmera lenta, tudo estudado, calculado, treinado como ontem, anteontem, antes de anteontem, diversos anteontens, há uma década! Abriu a porta, levantou as sobrancelhas com ar de cinismo e um sorriso amável no rosto; delicadamente entrei na sala titulada: doutor...
Tudo em ordem... Fui para trás da escrivaninha, sentei na cadeira giratória, peguei as fichas dos novos pacientes com problemas velhos sem interesse, olhei para o relógio, mesma hora ontem, hoje e amanhã ... Amanhã?! Amanhã nunca será, porque quando chegar vai ser hoje! Tudo cópia da cópia, da cópia da cópia, da cópia da cópia...

Andreia Donadon Leal é escritora e artista plástica. Natural de Minas Gerais.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

MARIA de Flamarion Silva

“Se a alma e o coração sujos estão,
dê ao corpo água e sabão.
Se o lado de fora limpo está,
no lado de dentro fica a impressão.”


Remontam o caminho de volta os talhos da tiririca, que iam, de um e outro lados, penitenciando-me docemente. Também dos matos, as suas galhas, largadas num debruço, e o sol, no desmaio da tarde, caíam sobre mim.
Ia ao Apicum, onde me aguardava Maria.
Decerto por estas trilhas imaginais sons: os pés chapechapeando a água e a lama; sururus em suas cantigas estaladas; piados longe; chiados; aqui, mais perto, neste canto da memória, o desejo a sofregar: Maria antecipada, Maria distante, Maria nunca mais.
“De pirraça”, disse ela bem à frente, no caminhar da história. “De pirraça e por pura maldade me manda a mãe lavar o sujo da roupa.” “Maria!”, chamei, a que só olhasse para trás.
Virou-se. Viu-me e sorriu-se toda. Dengosa. Porém, o tempo também aí já é outro, mais tarde, depois de tanto antes nos termos tentado na ignorância sabida do caso. Foi o acaso que nos levou, outras desvariadas vezes, pelas mesmas várzeas do caminho.
No Apicum, Maria acocorada. Da bacia as roupas ia tirando. Os pés n’água. Abeirado a ela, puxei conversa, pois Maria, agora, tão calada, aguava a roupa, concentrada.
Puxei um fio:
E é de maldade que Dona Esterzinha te manda lavar essa roupa, e sempre a esta hora alta, Maria?” Respondeu, sem dizer palavra, que sim. E esfregava o vestido com sabão e ódio. Porém dele e dela a nódoa não se soltava.
Tanta raiva tenho dela!”
“Tem raiva dela não, Maria. É tua mãe.”
“Antes-de-ontem me mandou cortar uma gamela de maturi... Olha só o magoado das mãos.” “Maciazinha”, disse mentiroso, tocando de leve os talhos da mão.
Maria se recolheu diante do afago, como se fosse moça prometida transgredindo contrato.
“O pai me fez um agrado: me deu um corte de pano. Disse:”
‘É para fazer um vestido para a festa de ano; Nossa Senhora das Candeias merece.’
“O pai é bom. Ele me deu a fazenda e saiu para a pescaria. A mãe, afastada, na fonte, quando voltou e viu o tecido aberto na cama, disse:”
‘Tem dois vestidos do ano passado, Maria.’
‘Mas são desde o ano retrasado, minha mãe; tão ruços’, “disse suplicante.”

‘Este é meu, Maria, só meu’, “e saía feita dona do corte que me dera o pai.”
‘Conto pro pai’, “afrontei”

“A mãe virou-se, já com a bofetada guardada na mão. Chamou-me de atrevida. Juntos, ao pai se faz doce. Mas a mãe tem um fel no coração, amorzinho... Desde então me castiga...”
Maria se lavava no enxaguar da roupa. E esta foi a última vez que a vi animada. Deu-me seu amor por último e estas palavras, que nunca se me saíram:
“Quero morrer... quero morrer...”
Pensei morria por mim, ensandecida pelo fogo do nosso amor. Qual nada! Intenção escrita no pensamento, arma engatilhada.
E foi, que no outro dia, no mesmo marcado encontro, lá fui eu fazer companhia a Maria. Porém Maria não havia mais. Nem pios nem chios. Tudo silencioso, como se aguarda um momento a hora de um outro ver.
“Onde Maria? Terá ela lavado toda a roupa suja e se foi?” intriguei-me.
Mais adiante, num passado marcado, mais lá no fundo do Apicum, onde eram as águas mais profundas e menos confiáveis, eu a vi.
“Maria!”

Fazia-se tarde. O escuro descendo do céu assombrava tudo. Por certo eu não via direito. O corpo dela, assim meio de viés, preso pelos cabelos nas galhas, abandonado no mangue, como se lhe puxasse pelos cabelos a mãe, num último castigo.
“O mal se corta é pela raiz”, diziam os pais duros de antigamente.
Maria ficou em mim, como fica na boca o travo de fruta de vez. E nunca me saiu o gosto dela, este grudado na memória e na pele, com toda sua natureza, toda ela no meu eu, este travo que não me sai. Maria.

domingo, 13 de julho de 2008

EU E O WORD- de Valdeck Almeida de Jesus

Era uma despretensiosa manhã de sexta-feira. Acordei, espreguicei-me todo e voltei a enroscar-me no edredom - sim, durmo enrolado num edredom, sobretudo para me proteger das muriçocas que perturbam a noite inteira.
O calor é insuportável no quarto da frente, onde prefiro dormir. Mas dali posso sentir o vai-e-vem das pessoas lá fora, que me inspira as mil e uma histórias que gostaria de escrever. Locais demasiadamente calmos nem sempre contribuem para a inspiração da minha natureza frenética. Quero ser escritor e orgulho-me de meu jeito diferente de querer ser escritor. Afinal, todo escritor é diferente. Mas quero ser diferente de todos os diferentes.
Escrever para mim é um sonho. É ver as palavras caminharem sozinhas; é ver a folha em branco se vestir de letras, símbolos, vírgulas, pontos e outros sinais que, juntos, vão provocar uma emoção final.
Mas eu falava da manhã daquela sexta-feira. "Sexta-feira" me remete à história do escravo de uma fazenda de açúcar, que ficou conhecido com este nome. Minha mãe contava que, segundo relatos, esse rapaz, o Sexta-Feira, havia morrido por causa de uns roubos ocorridos na fazenda onde morava. Todos os roubos aconteciam às sextas-feiras. Geralmente, ele era pego com a "mão na botija" e sempre perdoado pelo patrão. Até que um dia amanhecera morto com as formigas a lhe devorar os lábios. Cena tétrica. Imaginem só, em plena sexta-feira da Paixão, uma coisa dessas... Não poderiam ter escolhido outra data para matar o infeliz? Nem dia santo se respeitava mais para matar.
Espreguiçava-me, precisava me levantar. O dia me chamava. O sol rasgava minha janela, metendo-se por entre as frestas. Um raio do maldito sol me incomodava, a lamber meus olhos como um cão que lambuza o rosto do dono, ao menor sinal de carinho. Precisava me levantar. Mas a vontade mesmo era de ficar ali para sempre, pensando no que fazer, aguardando uma inspiração súbita para começar a escrever. Afinal, eu queria ser escritor. E escritores precisam de uma inspiração e das palavras somente.
Acabara de perder o emprego de repositor num grande supermercado da cidade. Estava preocupado com as contas da casa: luz, água, remédios de minha mãe, que me enchia o saco para comprá-los. Tudo isso me martelava a cabeça e me incomodava demais. Preferia fechar os olhos, virar para o lado e ali permanecer, não fosse o incômodo raio de luz a desvirginar a menina dos meus olhos. Dei uma piscada para mim mesmo, como se tivesse tido uma idéia brilhante, e levantei de um pulo só.
Corri pelo estreito corredor, esqueci o calor, as muriçocas, o maldito raio de luz. Nem abri a janela para ver o que acontecia lá fora. Havia gente gritando e correndo. Devia ser mais um tiroteio, fato comum aos costumeiros acontecimentos daquele bairro miserável, que não conhecia justiça nem respeito. Respeito ali era confundido com o temor imposto pelos mais fortes e pelos traficantes.
Eu não queria apodrecer naquele lugar, como o escravo das histórias de minha mãe. Eu queria ser importante, um doutor, um letrado, um escritor. Não mais trabalharia para quem quer que fosse. Eu ia ser escritor e trabalharia para mim mesmo, escrevendo histórias da vida real e fazendo sucesso no mundo das letras. Aquele bairro imundo e amaldiçoado jamais me veria de novo. E aquele quartinho quente e abafado, aquelas muriçocas, que me conheciam desde a tenra infância, não me reencontrariam jamais.
Fui ao sanitário, fétido e minúsculo, ao lado da cozinha, aliviei-me dos dejetos que esperaram a noite inteira para abandonar o corpo e corri para o computador 486, que havia ganho na sorte. Deu zebra! Ganhei um computador no bicho. Com o pouco de dinheiro que tinha no bolso, decidi fazer uma fezinha na zebra, que resolveu me ajudar a comprá-lo. Após adquiri-lo, deixei-o por alguns meses parado no canto do quarto, pensando no que fazer com ele, já que mal sabia ligá-lo. Mas posteriormente aprendi a digitar.
Pensava que datilografar e digitar significassem a mesma coisa, quando procurei uma escola de datilografia. Na verdade, nem era uma escola. Era uma improvisação de escola, nos fundos de uma vila, de propriedade de Neuza. Neuza possuía quatro máquinas e dava aulas para ganhar a vida. Diziam que havia sido mulher da vida e que tinha se regenerado. Veio do Pará sozinha, depois chegaram mais duas primas. Com menos de um ano na cidade, Neuza já tinha conseguido abrir uma escola. Ô gente de sorte! Nasci e me criei na miséria, nunca pude ser independente. Quando falei a Neuza que queria aprender datilografar no computador, ela reagiu com uma risada estridente, que denotava desprezo e gozação. Neuza se achava "a boa". Só porque tinha uma escolinha de merda, se achava a "poderosa do pedaço".
Engoli seco e me contive, afinal precisava dela. Não fosse esse detalhe, teria lhe quebrado o resto dos dentes estragados que ela mostrava quando sorria. Fiquei calado para não derrubá-la de um soco. Ela me deu aulas de datilografia por três meses. Depois que comprou um computador para a escola, tomei com Neuza mais alguns dias de aula de digitação. Estava certo de que um dia eu viria a ser um escritor famoso. Esta convicção fazia com que freqüentasse assiduamente as aulas de datilografia, todas as noites, após o trabalho. Tirava a farda do trabalho, que tinha uma estrela imensa aplicada nas costas, tomava um banho, comia algo e lá ia eu, para a escola. Embora as estrelas sejam fontes inspiradoras de poetas e escritores, aquela estrela no meio da farda incomodava-me sobremaneira.
Fui dispensado do trabalho porque as vendas caíram. Eu não tinha nada com isso, nem trabalhava com vendas. Mas, como não havia gente comprando, não compensava para a empresa ter dois repositores. Lenito, o cara mais chato da face da terra, o mais puxa-saco que já conheci, permaneceu no emprego. E eu levei azar. Mas assim é a vida. Além disso, agora eu estava determinado a ser escritor. Já tinha colocado essa idéia na cabeça e ninguém haveria de mudar o rumo de minha vida.
Sentei-me diante do computador, liguei-o e ele começou a dar uns chiados, ameaçando não ligar o monitor. Dei uns dois tapinhas do lado direito e ele sorriu para mim com aquela luz esverdeada na tela. Feliz da vida, comecei a digitar.
Digitei "casa" e ele "dizia" que estava errado, sublinhando a palavra. Digitei "Casa Grande", pois queria escrever sobre a história do escravo, e ele acusava novo erro. Para meu desespero, o Word sublinhava todas as palavras que eu digitava com uma linha vermelha tracejada. Não entendia que diabo podia ser aquilo, o computador parecia falar a língua de um outro planeta. Fui clicando em cima das palavras sublinhadas e o Word ia mudando as palavras que eu digitava. Escrevia uma coisa e ele queria outra. Fui clicando, escrevendo, clicando novamente... Quando terminei o texto de duas páginas, em estado de total exaustão pelo duelo travado com a máquina, fui ler o que tinha escrito. Não entendia nada... Estava tudo escrito numa língua que não sabia bem se era a língua do computador ou a de algum espírito que dele havia se apoderado naquele momento.
Pensei logo que a culpada de tudo deveria ser Neuza, que não havia me ensinado a digitar direito. Meu texto estava todo modificado, nada do que havia escrito estava na tela esverdeada do meu modesto 486. Ou então era culpa do teclado. Devia haver algo de errado com ele. Teria minha mãe tirado as letras do lugar e, na hora de recolocá-las, não acertou? – pensei. Minha mãe tinha mania de limpeza. Não gostava nada quando ela entrava no meu quarto, pois mudava tudo de lugar e desorganizava tudo. É, podia ter sido minha mãe. Mas não, verifiquei e vi que não era.
Estava intrigado com aquele texto incompreensível. Salvei-o e fui à casa de Neuza. Entrei logo xingando-a sem dó, quase dei aquele murro que tive que guardar, quando ela começou a me ensinar a digitar. Neuza ria de mim, ria como uma louca, o que me deixava ainda mais furioso. Estava inchado e enlouquecido de raiva, já quase partindo para cima da mulher, quando ela disse:

- Você é muito bobo de ficar brigando com o computador! Precisa apenas configurar o editor de texto para operar em "Português", senão vai ter sempre o mesmo problema. A cada vez que clicar na palavra sublinhada em vermelho e aceitar a sugestão do Word, vai transformar seu texto numa salada, se não fizer a devida configuração.

Fiquei vermelho de raiva e voltei para casa envergonhado. Como poderia adivinhar uma coisa daquelas? O "futuro" não poderia ser assim tão complicado. Achei melhor então me matricular num curso sério de computação, com professor especializado, para aprender a lidar com aquela geringonça, que me mais parecia uma máquina de fabricar estresse no usuário. E lá ia meu plano de ser escritor por água abaixo naquela sexta-feira. Achava que poderia ser bem mais simples, que bastava uma inspiração e palavras. Não imaginei um Word entre elas.
O curso ainda não terminou, pretendo fazê-lo até o fim. Mas ainda sofro desta espécie de síndrome que, toda vez que penso em escrever algo, me deixa morto de medo de encarar aquele computador velho e rabugento. Ele venceu. Desisti de ser famoso, desisti de ser escritor. O melhor a fazer agora é "acordar" e procurar um novo emprego de repositor. Afinal, é muito mais fácil e eu posso ganhar meu dinheiro mais depressa.
O sonho, no entanto, não me abandonou de todo. Sonhos, quando bem sonhados, não nos abandonam assim tão facilmente. E, enquanto ele não se legitima, deixo que seja um grande sonho, sem prejuízo da realidade

sábado, 12 de julho de 2008

A FÚRIA DE NOZINHO BOMBADO- de Heitor Brasileiro Filho

Nozinho Bombado estava inconformado. O bravo Nozinho é ex-lutador de jiu-jitsu, ex-boxer, mas marombeiro atuante, ex-caucaicultor e de família quatrocentona, contudo, atualmente, desempregado e respondendo a dezoito processos por vários delitos somente na Comarca de Ilhéus, a maioria deles por lesões corporais. Não se conteve ante a provação. Estava inconformado.
Com o Estatuto do Menor e do Adolescente ao alcance da mão, o delegado Dudu Sempre Alerta questiona o estado de desconstrução em que ficou Fabinho Cara Dura, que, a bem da verdade, não pode ser chamado de desocupado, porque acumula os cargos de arruaceiro, avião do tráfico, ladrão e alcagüete da polícia. O delegado pede uma explicação a Nozinho pra razão de tanta violência, já que a cara dura de Fabinho acabou ficando pelo avesso.
Declaração de Nozinho, que também está sendo analisada por uma comissão de Justiça e Direitos Humanos:
“Doutor Dudu, esse descarado me chamou de maconheiro em plena Marquês de Paranaguá, às 11 horas da manhã. E isso eu não tolero.
Ora, eu estive em Woodstock e não trisquei num baseado nem pra fazer média com as cocotas. Estive em Arembebe, botei várias rodadas de uísque, ácido e pó, e não peguei uma ponta nem para agradar a Janis Joplin.
Quando voltei de Amsterdã trouxe na mala duzentas cartelas de ecstasy e distribui pra minha galera em Londres, sem cobrar um tostão. E ele me chama de maconheiro, doutor. Isso eu não admito. Maconha é coisa de relento. Logo eu, que já cheirei três apartamentos no Rio de Janeiro. Cheirei uma casa no Horto e dois apartamentos no bairro do Rio Vermelho, em Salvador. Cheirei uma casa no centro de Porto Seguro e dezoito fazendas na região cacaueira. E não cheirei essa casinha que agente mora porque o pessoal lá de casa me mandou pra Clínica Cachoeira, em Itabuna.
E esse desclassificado me faz uma desfeita dessas... Tenho sangue de coronel correndo nas veias e não aceito desaforo de biribano. Pois então, lhe digo e reafirmo, ninguém ofende um Nozinho desse jeito e fica na impunidade. Ninguém!”
Nozinho e Fabinho agora dividem o mesmo espaço luxuoso do Presídio de Ilhéus. Embora em celas diferentes, mas em igualdade de condições, atualmente gozam os mimos dos anfitriões daquela casa de correção.




Heitor Brasileiro Fº


(Heitor Brasileiro Filho é poeta,
crhonesto & friccionisto –
ex-tenso,
ex-es-tático
& ex-tinto)

sexta-feira, 11 de julho de 2008

LUGAR-BUZUM- de Gustavo Dumas

Não salte da crônica. Espere um pouco. Não é nesse ponto. Você vai passar por alguns sinais e vai achar um ponto final logo adiante, na descida da alameda chamada texto. O leitor passageiro que me desculpe mas o motorista aqui vai atacar hoje de lugar-comum. Ou melhor, como diz a linha do título: vou falar do lugar-buzum de cada um. Porque, observando de dentro de um ônibus o comportamento de cada indivíduo, podemos encontrar todos os modelos sociais. Acha que não? Então que salte aí, precipitadamente. Tô nem aí, pode ficar aí no seu ponto que eu fico na espera do meu. Mesmo te atrapalhando. Calma que este pensatrevimento não é meu (oquei, esqueci conscientemente as aspas devidas) – é típico daquela categoria de passageiros que ficam parados exatamente à frente de quem vai saltar, como se o fossem, e naquele momento. Trata-se do tipo de sujeito em voga hoje, um sujeito de mercado, que se antecipa aos fatos. Compõe o exigido tipo pró-ativo. Antes que seu ponto de descida se aproxime, já está lá, prontinho, forçando, marcando seu terreno, mostrando serviço – no caso, para si próprio, tal sua capacidade/necessidade de autocontrole.
Reforçando o time estressadinho que fica na porta de descida do coletivo atravancando o fluxo de entrada e saída, lutando contra a demora do tempo (“time is money”) de viagem, há ainda dois tipos que se misturam: os desesperados e os perdidões. Os desesperados são os pobres coitados que estão atrasados para pegar num batente sem-vergonha para fazerem jus a uma ninharia mensal. Ou os que estão preocupados em chegar logo na distante moradia, para matar as saudades da família ou fazer as pazes com o estômago vazio que ronca contrariado. Ou estão à cata da empregabilidade perdida na selva do capitalismo financeiro, voraz em seu desenvolvimento tecnológico e na sua fundamental evolução excludente dos valores humanos. Já os perdidões congregam uma categoria equilibrada: não têm classe social, origem ou lugar social a revelarem num primeiro instante. Podem no entanto revelar muitos traços de personalidade. Há os retraídos, que não perguntam ou perguntam baixo sem requererem maiores detalhes ou informações precisas: são pessoas tímidas, que ficam a olhar pro vazio das ruas em busca de uma referência que lhes salve de andar quilômetros a mais ou de se verem obrigados a tomar outra condução. Revelam um comportamento social arredio. Há os que, mesmo sem conhecer patavinas de onde se encontram, perguntam e querem porque querem demonstrar, inutilmente, que conhecem do lugar e só estão um tantinho (muito!) esquecidos. Não dão o braço a torcer nunquinha da silva! Ô orgulho...
- Sabe a Barata Ribeiro?
- Sei, sei... – responde com alegria o perdido enrustido.
- Então. O senhor pega a Barata, desce a primeira...
- Sei... – interrompe com menos alegria para demonstrar que está prestando atenção e entendendo aonde seu interlocutor quer lhe levar.
- ... e entra na segunda rua à direita. O senhor vai ver uma...
- Onde tem uma padaria? – interrompe novamente o sabichão.
- Não, uma borracharia! Segue toda a vida.
- E entra na rua...
- Não, o senhor não entra em rua nenhuma. No final da rua o senhor vai ver a pracinha.
- Ah sim, é mesmo, agora me lembrei – completa simpático, sem perder o rebolado.
Tem ainda o perdido folgado. Este tipinho acha que todos têm que parar tudo para lhe fornecer a informação mais precisa. Trata-se de um “auto-suficiente em perigo”. Odeia precisar de alguém, mostrar-se dependente. Fica mal-humorado de perguntar, mas pergunta porque acredita ser obrigação da coletividade lhe ajudar. Agradece de modo polido e sem olhar nos olhos. (Normalmente é de boa apresentação e usa óculos escuros.) Outro tipo de perdido é o perdido desconfiado. Nunca pense muito ou gagueje ante uma pergunta de um perdido desconfiado. Ele vai entender que você não sabe nada ou que está querendo sacaneá-lo. Vai perguntar a outro, e a outro, e a outro... Até encontrar uma resposta mais firme. Chega a saltar do ônibus, ir na direção contrária à indicada só para perguntar a mais alguém, na ânsia de obter o oculto prazer de vez por outra descobrir que acertou na desconfiança: “Hum, ainda bem que eu perguntei pra outra pessoa!”.
O perdido desconfiado se confunde com o perdido minucioso, detalhista. Tem sujeito que pára perto de um e pergunta um pedaço da informação de que carece; pára perto de outro e, sutilmente (eis sua principal diferença para o desconfiado!), busca um outro pedaço de informação.
Outros comportamentos afloram. Os dorminhocos são hilários, e irritam também. Uns simplesmente caem no seu, no meu, no nosso colo, leitor ou leitora. Aí jogamos ele pro lado lá dele, e ele, quando e se acorda, olha pra nossa cara, em alguns piores casos pede-nos desculpas e... volta a dormir, claro! Formam um grupo, sem dúvida, socialmente muito graúdo: o grupo dos despreocupados ou resignados. O ônibus (mundo, país, cidade, time de futebol...) pode estar indo para as cucuias que ele neeeeem... É, porcamente, macunaímico: “Ai, que preguiça!...”
E os folgadões? Dá para imaginar como esses indivíduos disputam espaço numa empresa, não dá? Os folgadões não se contentam em ocupar o espaço a eles reservado no banco do ônibus. Eles não aceitam dividir. A perna resvala, sutil ou abruptamente, além da sua metade de banco. Há casos de folgadões que ocupam 75%, até 80% do espaço total, empurrando pro corredor quem viaja ao lado. Ou seja, eles não querem nem saber se tem alguém do lado, se “aquilo” for um obstáculo para o seu conforto. Ah, ia me esquecendo dos folgadinhos! Estes são gentis e dóceis, sorridentes, políticos por natureza, para o bem e para o mal. Querem sempre um favorzinho extra, uma concessãozinha, “só desta vez”. Agem na base do “Ih, me esqueci que o ponto mais próximo era o da Rio Branco... Dá pro senhor dar uma paradinha ali no sinal? Pô, brigada, hein!... Muito bom trabalho pro senhor!”
Creio que existam também os “passageiros invisíveis”. São personagens discretas, que só querem o que lhes é de direito. A metade da poltrona, o troco correto do trocador (“tipos de trocador” também dariam uma ótima crônica, mas fica pra próxima), a parada no ponto certo etc. Constituem a grande massa, não só de passageiros, felizmente, quero crer. São típicas personagens urbanas, cidadãos na amplidão com que o termo deveria ser entendido.
E haveria muitos outros tantos tipos a descrever. Vou citar alguns a título de “homenagem”: os tagarelas, os casais exibicionistas, os adolescentes gritadores, os taradinhos, os romantiqueiros (que se apaixonam pela mulher que salta!)... Decerto esqueço uns tantos. Decerto ainda que o comportamento pode variar, dia a dia. Dificilmente, por exemplo, um sujeito se comporta, passeando pela via horária da madruga, da mesma maneira com que transita durante o dia. Mas a viagem da crônica já vai longa. Calma que tá chegando, prezado leitor ou atenciosa leitora. Nada custa saltar só no fim – apenas o olhar. Quiçá um olhar para si mesmo(a), para o próprio comportamento de passageiro(a) social. É o que somos, sempre, até um ponto final de trajeto: indivíduos sociais, e de passagem.

Gustavo Dumas é escritor e revisor. Publicou, assinando com o heterônimo de Zeh Gustavo, os livros de poesias “A Perspectiva do Quase” (Arte Paubrasil, 2008) e “Idade do Zero” (Escrituras, 2005).
Contato: zehgustavo@yahoo.com.br.

TUDO É IRREAL- de Carlos Vilarinho

Livre de Rosauta, subi pela rua da loteria, que ironia! Estava jogando com meu sonho. Aquele homem tinha que ser de massa corpórea, não estava louca, eu o vi e ele me viu, além de ter me derrubado numa esquina. Atravessei a Rua do Tira Chapéu e finquei estática na ladeira do Pau da Bandeira. E nada. Olhei o mar e sua vastidão enigmática e nenhum sinal. Seriam vestígios da virgindade aos vinte e oito anos. Certamente. Nunca ouvira falar que era tão grave assim, a ponto de delirium tremens. Não posso considerar o tempo inimigo de mim mesma, eu que me esgotei em meu pudor e cerimônia exagerada. Quando pequena via imagens rondando a casa. Foi quando começou o meu medo de tirar a roupa mesmo que estivesse sozinha. Para mim nunca estava sozinha, havia alguém em algum lugar perto de mim espreitando todo o meu movimento. Por isso que quando Beto quis me fazer mulher eu não deixei e saí correndo. Sabia que além de nós dois tinha outro olhar a passear no quarto. Mas agora não, fervo por dentro toda a noite. Leio revistas eróticas e consumo o desejo comigo mesma. Mas naquela esquina, aquele homem... Eram reais, tenho certeza que ele me despiu dentro do olhar dele. Aquele sorriso brando e malicioso. Mesmo não sendo meu inimigo, o tempo, ele é muito apressado comigo. Uma vez li em algum lugar “temos o direito de ser diferente sempre que a igualdade nos descaracteriza...” poderia pensar sempre assim. Mas já estou muito descaracterizada e o tempo não pára. Hoje ao sair de casa depois que minha mãe diz, sempre diz, “que Deus ilumine seus caminhos, filha minha”, hoje e somente hoje senti depois da última palavra uma energia diferente tomando meu corpo feminino. Senti que exalava um êxtase diferente de todos os dias. E em seguida me esbarrei com o homem dos meus sonhos, eu acho. E ao mesmo tempo o perdi. Acho que vou comprar um livro de um poeta místico. Para rir e chorar ao mesmo tempo. De qualquer forma ouvi dizer que tudo é irreal em sua realidade direta, digamos. Então diante desse absurdo virgem que me deixei ser, paradoxalmente ao instante em que me senti finalmente possuída, resolvi seguir a voz que havia entrado em minha mente, mesmo contaminada pelos exageros de Rosauta, seguir em frente. Assim ao tomar a decisão que anos depois mudou a minha vida, vi num estalo de luz emergente da maré toda a cena novamente. Ele havia errado o caminho em um mundo paralelo e irreal, talvez. Passou por um portal de luz e virou a esquina no mesmo momento que eu. Era o carteiro do amor no outro mundo. Ao remexer minha bolsa vi uma correspondência estranha. Um envelope de bordas douradas. Dentro havia um poema e uma foto onde sempre estive nos meus sonhos.


Ao meu amor,
uma coroa de séculos,
um pedaço do céu,
um arco-íris de frêmitos
gozosos

Ao meu amor,
o tempo sem pressa
o ser do irreal,
as paisagens que vistes
nos sonhos

Ao meu amor,

quinta-feira, 10 de julho de 2008

TUDO É IRREAL - de Carlos Vilarinho

Também acho que não há coincidência na vida. Quem disse que o fato de me esbarrar naquele homem na rua foi simultaneidade de acontecimentos? Longe disso. As coisas são sincrônicas. Sincronicidade. Aí sim. O meu cabelo tava todo desgrenhado, ele sempre foi assim mesmo. Por que haveria de arrumar meu cabelo só para me esbarrar, barriga a barriga, com aquele homem? E o salto? Não, não estava de salto alto. Uma vez um sedutor e deleitoso poeta disse que se eu andasse de sandálias ficaria muito mais sensual. Acreditei nele demais. Quase me come. Minha mãe de santo alertou para mim a verdadeira intenção daquelas metáforas poéticas que me deixavam embevecidas. Nunca mais olhei na cara do porco poeta. Quando saí do feitiço lexical, metafórico e semântico que ele me enredou, percebi a enorme barriga que puxava o corpanzil do letrado. No entanto acho que tinha razão na questão das sandálias. Pelo menos diminuíram as dores no ciático. Me senti mais próxima do chão também. O fato foi que aquele homem me derrubou na esquina do Comércio com a ladeira das putas. Ficou me olhando, certamente procurando algo de puta em mim. Naquele atmo de segundo sincrônico que fiquei no chão sob o olhar amarronzado daquele homem, lembrei e me senti a garotinha de quatorze anos que García Marquez queria traçar no puteiro de Rosa Cabarcas. Ele ou alguém dentro dele. Tão sincrônico também foi a aparição de não sei onde de Rosauta. Ela vivia me seguindo. Tenho certeza que estava pelas redondezas a me espionar. Às vezes sinto vergonha de ser mulher. Por causa dessas coisas. Não sei o que Rosauta tinha com o meu encalço que sempre aparecia risonha e falante. Falante até demais. O homem sumiu, as voltas da voz de Rosauta me deixaram zonza e perdi a criatura. Mas que raiva!
_O que você quer?
_Que secura! Você estava estatelada no chão parecendo um sapoti amassado e eu venho em seu socorro e me tratas assim? Que despautério!
Enquanto Rosauta falava aprendi a me desligar do mundo. Sobretudo naquele momento mágico de uma sincronia que não sabia de onde vinha ou se realmente existia. Mais uma vez ela falou da minha roupa, do meu cabelo, das minhas unhas e até do meu cenho franzido, mais franzido do que o de costume. Tinha a impressão que Rosauta queria ser eu. Por vezes a risada sem propósito de Rosauta me dava nos nervos. Arre! Ela não poderia atravessar a rua e um carro jogá-la para cima? Eu queria ficar dentro do meu silêncio sincrônico que aquele rapaz me colocou. Estatelada no chão, sim. Jamais um sapoti, mas a princesa de um sonho inesperado. Rosauta segurava meu braço pela rua do Comércio com uma força descomunal, parecia que queria me arrancar do braço. Que inferno! E falava, gesticulava, ria sem ser discreta. Que coisa, aquela Rosauta! Lá dentro de mim ao volver a cabeça para o lado oposto via aquele homem da sincronicidade. A imagem dele estava andando e preocupada com algo nos outdoors ou nos andares sobre nossas cabeças da rua do Comércio. Tratei logo de me afastar da rua das putas, melhor, Rosauta direcionava meus passos garreada aos meus braços. Voltei novamente a cabeça e não o vi. Em instantes pensei estar louca. Louca de amor. Pensei alto e Rosauta retrucou:
_Ai, meu Deus! Mas que romântico enlouqueceu de amor por um fantasma que a derrubou...
De roldão se apoderou de mim um desejo de vomitar incrível depois daquela frase infame de Rosauta. Olhei novamente ao redor e não vi novamente. Mas meu eu sentia outros olhos em cima de mim. Olhos distantes e de bem querença. Não de atrativo sexual, mas algo enigmático e que compõe o universo em harmonia. No entanto eu sentia um desejo sexual, um frisson compreendido em minhas entranhas de mulher virgem. À proporção que Rosauta falava, mas zonza ficava e mais angustiada também. Finalmente consegui livrar-me daquela companhia desprezível, disse-lhe que tinha reunião de acertos de contas no escritório. Aí ela arrefeceu e me olhou piedosa.
_Oh, honey! What a Pitty!
Ri um riso sem querer e sem graça, olhei novamente ao redor e só vi o engraxate distraído sem clientes no outro lado da rua. Nesse instante, em meu pensamento de virgem, veio uma imagem ridícula do amor. Quem ama é ridículo em sua própria vida. Em seu próprio eu, em sua própria aldeia. Então passei a observar as pessoas do Comércio, todas as pessoas. E nenhuma delas trazia consigo o amor, por mais irrisório e insignificante que possa ser. Ao mesmo tempo um sopro do próprio universo em harmonia instalou-se em minha mente uma expressão em Línguas díspares. Acho que Rosauta contaminou com sua peruagem english a energia que me acompanha.
_Don´t give up, don´t give up… Não desista, não desista…
Como se tudo fosse uma trama já definida das vidas que compõem o mundo. Como se tudo fosse uma sincronicidade estagiária nos ciclos da vida.
Não sabia como não desistir. Quem deveria amar, então? Um homem fantasma, como disse Rosauta, que esbarrou em mim no centro da cidade? Teria sido um sonho desvirginador, daqueles que tenho no calor da noite depois que a menstruação vai embora. Aquele homem teria sido meu professor de espanhol, de voz caliente e trejeitos sensuais como o tango de Gardel. Nunca mais o vi. Na época pensei que seria o meu homem. Não foi meu, mas de todas as outras alunas dele. Raquel, Su, Eliana, Micheli, a irmã de Micheli... E até de Rosauta. Às vezes a misericórdia alheia me toma de roldão que fico a pensar depois se não sou eu a escolhida dessa vez para ser a virgem Maria. Dizem que tudo torna a acontecer. Sincronicamente. Acredito e não acredito... Seria um sonho do meu sonho?


Amanhã publico o que falta...

terça-feira, 8 de julho de 2008

O ÚLTIMO VESTIDO DA SENHORITA B. -de Renata Belmonte

Eu não a vi partir. Mas se tivesse que arriscar quandos e porquês, diria que ela me deixou em um abril qualquer. Deve ter aguardado março se despedir e aproveitou para me abandonar junto com ele. Eu, de olhos fechados, ainda soprava com inocência as velinhas do meu bolo de aniversário. Mal sabia que, enquanto estava distraída com novos pedidos, ela aproveitava tal oportunidade para ir embora para sempre. Seus motivos ainda ignoro, por isso, como as outras pessoas sofridas, atribuo culpa ao mundo. Blasfemo a condição humana, me recuso a falar com pessoas desconhecidas. Ajo desta forma na tentativa de chamar sua atenção, preciso de alguma resposta. Certamente, se estivesse presente, ela reprovaria minha postura. Sempre foi dessas que enxergam beleza em tudo, costumava dizer que era entre estranhos que se sentia verdadeiramente familiar.
Recentemente, após uma de minhas longas buscas, acabei achando um de seus vestígios. Um velho vestido preto, o único que o tempo não levou. Mas, ao contrário do que se pode pensar, não me senti feliz com tal descoberta. Porque, ontem, ao tentar experimentá-lo pela última vez, acabei constatando: ele e suas promessas de felicidade não cabem mais em mim.

Renata Belmonte nasceu em 13/03/1982, em Salvador. Estreou em 2002, com a publicação do seu primeiro conto, Em cima da estante de vidro, na revista eletrônica Blocos on Line. Desde então, acumula colaborações em suplementos e jornais literários como Iararana, Província da Bahia, Cronópios e Bestiário. Seu primeiro livro de contos, Femininamente, ganhou o Prêmio Braskem Cultura e Arte de 2003. Em 2006, publicou O que não pode ser, livro vencedor do Prêmio Arte e Cultura Banco Capital.
Blog da autora: http://www.vestigiosdasenhoritab.blogspot.com/

segunda-feira, 7 de julho de 2008

VIA MARIA- de Edinara Leão

Maria sacolejava os ecos da vida quando a mão de um animal cravou-lhe a agonia de um sonho. Maria passou a ver a alma – dos outros e a sua. A sua, particularmente a interessava, era branca. Ela era anda-luz virgem, virgem de alma. Inabitada. Seu corpo já havia sido abanado pelas mãos dos homens. Os homens – pobres-coitados!, Mentem amar e a vida corre-lhes pelas mãos. Maria não! Entregava-se inteira (inteiro corpo). A alma não. Tinha dó. Dó de entregar a alma, parece ninguém merecia.

O animal enxertou-lhe um sonho de homem na alma, e Maria sem corpo ansiava. Homem sem nome do sonho do animal de unhas lancinantes. Algoz, ele deu alma, “animus” e construiu-lhe um corpo alma. Confundiu Maria que seria o corpo e o sonho fez Maria ceder, sem saber que ele era alma.

A composição se refazia: o homem atava panos brancos em volta do corpo de Maria – e desatava os pés. Então o corpo virava leite e o homem bebia. Novamente bebia. Bebia todos os dias. E assim roubou-lhe a alma travestida de corpo.

Era impossível disputar. Já não havia solidão, já não havia alma. E Maria também não havia. Maria sentia saudade de ser Maria. Resolveu tecer nova vida. Contudo, os fios eram de ilusão, quanto mais Maria tecia, mais desfiava. Nada acontecia. E Maria passou a outra dimensão. Mente sem alma. Só esqueceram de apagar o coração de Maria, que ainda tinha ganas de amar, só já não podia a alma entregar. E, na outra dimensão que passava a habitar não havia corpo. Só imagens. Ideoplásticos do nada. Fragmentos perdidos em estágio de sonho. Não havia mais nem corpo nem lençol, nem leite, nem nada. Nem Maria. Que agora havia atingido o estágio de sopro. Surrealismo talvez. Maria inventou...

EDINARA LEÃO é escritora do Rio Grande do Sul. Mestra em Literatura e dona de uma sensibilidade onírica e transcendental.
Mais uma grande escritora da literatura contemporânea.
Escreveu Minhas faces (1990), (a)mostragem (2000) Fragmentos e Quando sopram os trigais (2005) e Estética e transcendência em O estudante empírico, de Cecília Meireles (2007). Nasceu em 30 de outubro de 1968. Escreve desde os 12 anos, participa de mais de oitenta coletâneas. Possui doze troféus literários. Foi “Escritora do ano” três vezes em São Luiz Gonzaga. Mestra pela UPF e doutoranda em Estudos Literários pela UFSM. Reside em Santa Maria. É mãe de Mirela, Pablo, Pâmela e Pedro. Vó de Bernardo. Recebeu o 2º lugar no concurso “Com a palavra, os professores do Brasil” em 2008, no Rio de Janeiro. Idealizou e coordena o Movimento virArte.
e-mail: edinaraleao@yahoo.com.br

blog: http://edinaraleao.blogspot.com/

site: http://br.geocities.com/ruidosdegarca/

domingo, 6 de julho de 2008

FRAGMENTOS - de Andreia Donadon Leal

Andréia Donadon Leal

Dia de domingo é enfado enfadante, ou mesmo, redundante. Sem nenhuma inspiração intelectual ou mesmo artística, esbaldar de comida engordativa, neologismos sem neo, não interessa se a palavra ofende os olhos do leitor repleto de academicismo. Esta maldita segunda-feira infernal está com pé quase no dia de descanso. Amanhã, tristemente, segunda-feira, chefe de cara amarrada, autoritário, nervoso, mais calvo e burro com o perdão dos animais. Segunda-feira deduz que o chefe é mais desprovido de conhecimentos que você. É mais desprovido de bom-senso, é mais desprovido de humanidade; é mais desprovido de vocabulário, é mais desprovido de idéias, é mais desprovido que todos os seres desprovidos. Será que você é o ser mais desprovido de chefe desprovido?
Engole o tédio ácido que corrói lentamente os acordes estridentes vindos da televisão e showzinho patético de domingo: os terríveis e massacrantes programas de auditório. Se bem que dia de semana, a programação muda de roupagem, entretanto não ganha muito conteúdo, talvez mais descarrego de desgraças. Vê a cara de satisfação do repórter ao frisar: diversas pessoas foram assassinadas em chacina! Roubaram, mataram! Não precisa ser pobre para roubar, descobre? Miserável, abandonado à própria sorte e desesperado. Rico e engravatado rouba e rouba descaradamente, inteligentemente. Não fica preso. Se safa, na boa. Quanto mais sangue e escândalos, mais lucros. Tem medo de ligar o aparelho de televisão e se deprimir. Depressão fica sarada com psicanalistas, psicólogos e psiquiatras... Tem medo de chegar perto da janela e tomar uma bala “perdida” propositalmente de alguém que atira bala de chumbo por todos os lados. Tem medo de tudo e de todos, até da sombra.
Com pote de sorvete na mão, os pensamentos voam para além da tela de plasma. Pasmo de aflição não dicionarizada da verborragia inefável de querer dizer nada, fazer nada, sentir nada, tirar o time de campo. Uma expiração, ajuda? Um suspiro enfastiado limpa o pulmão colorido pela fumaça de nicotina. Se bem que parou de fumar há algum tempo: um punhado de abstinência. O aroma da comida atraí mais. Entreter a boca com alguma coisa ao invés de soltar ares de poluição.
Os moleques não brincam com a bicicleta na rua. Não sentam no passeio com mais molecada e ficam a toa ou soltam pipas ou jogam bola ou ficam na rua mesmo jogando conversa fora. Estão encarcerados dentro do quarto, com olhos vermelhos de mirar a tela, com dedos teclando com ditos amigos virtuais. Informatização, globalização, flexibilização, on line, automatização, site, telemarketing. Internet-vídeo-celular-tele-pizza-fax-email... Nem um chio, sussurro, miado do gato que ninguém mais olha... De lado, abandonado, depressivo. O cachorro jogado no quintal olhando a lua. Perplexamente, o cachorro olha a lua, talvez converse com ela ou namore-a. Sonha? Quem sabe dizer se cachorro sonha, medita? Mais racional? Mais zen? Na dele, na boa; de namoro com a lua.
Dia de domingo é enfadante? De novo? Se bem que começamos todo dia numa ciranda sem música, ou com música lancinante. Os ouvidos não têm noventa anos, e é obra de Duchamp. Percebe que faltam algumas horas para o domingo findar e o calendário virar, com nostalgia. Domingo é chato, medita?
Domingo é dia de abandono de pensamentos e ações mecanizadas, voltar para dentro de seu mais íntimo eu. O corpo despejado de qualquer jeito em frente à televisão, os pensamentos ganhando sentimento e o cachorro do lado de fora namorando a lua.


Andréia Donadon Leal é escritora mineira e amiga muito querida, além de ter a alma artística dentro de si mesma. É também artista plástica.
Governadora do Instituto Brasileiro Culturas Internacionais -MG
Diretora do Jornal Aldrava Cultural
Membro da Academia de Letras Rio - CM
Membro da AVSPE e da Academia Maceioense de Letras

sábado, 5 de julho de 2008

A ARMA DE CADA UM- de Flamarion Silva

– Eu andava solteiro, aí conheci a Diva, mulher bonita, loura, os homens endoideciam ao vê-la passar pelas ruas de Cruz das Almas. Mas Diva era uma dessas mulheres, como se diz, perdidas. Ganhava a vida assim, indo com um e com outro. Contudo, não se gastava, conservava o charme, a altivez, a postura. Sabe aquela atriz do cinema americano, a Marilyn Monroe? A Diva parecia-se com ela. Mulher bonita!
– Quem? A Marilyn?
– Também, também, mas a Diva... ah, bonita igual a ela, nunca vi.
– E o que aconteceu com a Diva?
– Tirei-a da rua. Levei-a para morar comigo.
– Casou-se com uma mulher da vida?!
– Casei-me. Ficamos juntos um ano e seis meses. Pensei que a Diva endireitava, mas... sei lá... talvez o destino de certas mulheres seja levar essa vida mesmo. A Diva me traiu com o Nestor. Peguei-os na minha cama. Dupla infeliz.
– E você, o que fez? Matou-os?
– Nada! Ia lá me sujar com dois perdidos!
– E então?
– “Vistam-se,” disse-lhes, firme. “Vamos, rapaz, não tenha medo. Não vou te matar.” O cabra ficou assustado, tremia igual vara verde. “Venha tomar café, você deve...”
– Convidou-o para tomar café?!
– Foi o que eu disse.
– “Venha tomar café. Você deve estar muito cansado, precisa alimentar-se. Venha, vamos à mesa. Você também, Diva.”
– Foram à mesa comigo. Botei-os na minha frente. Não se pode confiar, gente que trai é um perigo. Botei-os na minha frente. Apontava o revólver para os dois.
– Revólver?! Você tinha um revólver? Por que não os matou?
– Ah, menino, você ainda é muito novo, não sabe onde reside a sabedoria do homem.
– Eu não sabia que existia a sabedoria do... do...
– Vai, diz. Acostume-se logo com essa palavra. Todo homem tem de estar preparado.
– Eu, hein. Bem, o que fez com os dois?
– Nada.
– Nada?! Você não fez nada?
– Não. Tomaram café. Disse a ele, apenas: “Olhe, rapaz, a Diva vai com você, ela vai ser a sua mulher, e ai de você se fizer algum mal a ela.” Falei isso só para meter medo nele, a Diva era uma pobre coitada. “Levantem-se” disse-lhes. “Tome”, e passei meu revólver a ele.
– Endoideceu!
– Nada. Eu sabia o que fazia. Disse-lhe: “Tome, leve este revólver, você pode precisar. Tem dinheiro para o transporte? Não? Então tome aqui dez contos.” E se foram.
– E aí?
– Aí eu continuei levando minha vida. Até que, um dia, quando eu passava em frente à cadeia de Santo Antônio, alguém chama meu nome.
– “Seu Manuel Jorge, seu Manuel Jorge, lembra-se de mim? O senhor tem um cigarro para me dar?”
– Era o Nestor. Espiava a rua através de uma grade de ferro, retangular e minúscula. Lá estava Nestor, preso. Tirei um maço de Hollywood do bolso, aproximei-me da grade e passei-lhe o cigarro. Perguntei:
– “O que lhe aconteceu, Nestor?”
– “A Diva, seu Manuel, a infeliz fez comigo o que fez com o senhor. Peguei-a na cama com outro; matei os dois com aquele revólver que o senhor me deu. Estou vingado. Estamos vingados.”
– “É, Nestor, estamos vingados”, disse-lhe. E saí andando, livremente.


(Flamarion Silva é contista. Mais um grande autor na Literatura da Bahia contemporânea.)

quinta-feira, 3 de julho de 2008

A DANAÇÃO DE CHICO FERRO DOIDO- de Heitor Brasileiro Filho

Apesar da extravagância do nome, Chico Ferro Doido é um sujeito decente. Atualmente, só tem um defeito: é quando pega a beber. Depois de uma vida pregressa Chico agora trabalha de segunda a sexta fazendo uns biscates para manter o status de amante fiel de Tetê, Rosinha e Nair, as três mulheres da sua vida. O desassossego só começa na sexta feira, quando dana a beber. De sexta a domingo sua diversão é beber cachaça, passar a mão na bunda da mulher dos outros e procurar confusão. Por causa do vício perdeu dezenove dentes e meio dos trinta e dois que possuiu na boca, mas também perdeu a conta de quantas queixadas teve que desfigurar para manter a honra de caceteiro fixe. Sua mãe, Dona Bebé, fez promessa, subiu a Serra do Cruzeiro de Jacobina carregando pedras na cabeça dentro de um bocapio, e nada. Foi visitar a gruta do Bom Jesus da Lapa, de pés, e nada. Dona Bebé não sabe mais o que fazer com Chico. Outro dia, ele quebrou dezesseis barracas na feira do Caém, porque cismou com a cara de um cigano. Chico buliu com uma ciganinha, e um feirante da tribo tomou as dores aplicando-lhe um pescoção, mas com tanto zelo, que Chico atravessou a única praça pavimentada de Caém tropicando nos paralelepípedos. Fez meia volta, entrou no bar de Eliezer, pediu duas doses de rabo-de-galo e uma talagada de cambuí. Na volta, passou por dezenove feirantes distribuindo simpatias de chapas, martelos, godemes, bênçãos, e rabos-de-arraia, e se lançou numa avenida de casas onde moram os ciganos só pra tirar satisfação, no dizer de Chico Ferro Doido. Saiu de lá na garupa de uma motocicleta, muito contra a vontade do moto-taxista que ia passando, com o assoviu perfurante das balas queimando as orelhas. Desejando mudar de vida, Chico tentou entrar na lei de crente, mas foi obrigado aplicar um corretivo no pastor para preservar os dez por cento dos biscates. Agora não pode passar na porta do templo sem enfrentar a fúria dos obreiros. O pastor passou um mês desacordado na Santa Casa de Misericórdia de Itabuna, de onde é natural, e ficou maneta e capenga de uma só vez. Basta dizer que Chico virou modelo de anticristo. Mas isso não significa nada diante do amor incondicional de Rosinha, Nair e Tetê, as principais mulheres de sua vida, depois de sua santa mãe. Rosinha, Nair e Tetê amam Chico, perdidamente, e Chico corresponde ao amor das três. Que em matéria de raparigagem Chico Ferro Doido é imbatível, de fazer inveja a Zeca Moreira, dos Moreiras lá de Caém. Rosinha a mais humilde e limpa de coração é fateira estabelecida na feira de Jacobina. Dia sim, dia não, Ferro Doido não passa sem comer o fato de Rosinha. Tetê, a mais fogosa, é casada com o Dr. Perfídio Pereira, que começou humildezinho como advogado de porta de cadeia, chegou a edil, mas, tornou-se inelegível, foi expulso de três legendas por infidelidade até arrumar uma boquinha na Municipalidade para concretizar negócios escusos e perseguir desafetos. Arrogante e presunçoso - bruto mesmo -, se dobra, porém, aos caprichos de dona Tetê. Num arroubo de valentia, ameaçou jogar ácido nos olhos de Tetê. Dona Tetê esperneou e o escândalo saiu das frestas da delegacia e ganhou os jornais, mas, com aviso bem remunerado, Dr.Pereira comprou todas as edições. Agora, quando Ferro Doido chega, Tetê tira Pereira da cama e manda esperar lá no sofá. O coração duro de Pereira nunca chora. Dr. Pereira enche uma caneca de uísque doze anos, atira na caneca sua dentadura postiça e fica girando o dedo entre as pedras de gelo. Depois, puxa a poltrona para a porta do quarto e fica ouvindo as safadezas que Tetê faz com Ferro Doido. É o único momento em que Perfídio Pereira esquece a disfunção erétil que o acompanha há treze anos, quando perdeu o mandato de vereador. E Pereirão se satisfaz ali mesmo, com uma caneca na mão e a saudade na outra. Nair, noiva há vinte e três anos de um gerente bancário, é professora concursada do Estado, e dar banca de história, geografia, física, química, matemática, português e etiqueta, para complementar a renda. Apaixonou-se loucamente por Chico Ferro Doido após um curso de alfabetização para adultos. Até hoje Chico não sabe fazer o nome completo. Nair teme que depois do abc Chico tome asas de independência e não desfaz o noivado com o gerente por garantias. É por isso que Nair, a intelectual das três, ex-feminista de rasgar a calçola na manifestação, inaugurou o diálogo e estabeleceu um rodízio de prazeres para não haver desavenças entre as bravas mulheres de Chico Ferro Doido. E, finalmente, a paz reinou naquele coração. Pelo menos, até chegar sexta-feira.
Heitor Brasileiro Fº

quarta-feira, 2 de julho de 2008

CURRÍCULO INÚTIL (ode ao desmpregado)

Estava me sentindo muito mal. Não sabia em que usar tanto conhecimento acumulado ao longo dos meus trinta e sete anos. Fora humilhado e escorraçado por uma pessoa que nem graduada era. E agora estava ali na fila do seguro-desemprego ouvindo piadinhas, constrangido e indignado. Foram oito anos de total dedicação àquela escola, para de uma hora para outra ceder à vaidade e aos aforismos fora de propósito e conotando escárnio de um déspota balofo e antiquado. Impotente, sem ter o que fazer contra uma decisão pessoal e arbitrária, vítima de perseguição e inveja dos inábeis. Lembrei de meu pai, ele sempre dizia que a nossa família devia abrir nossa própria escola, e era verdade. Eu, meu irmão e minha prima, todos professores, ávidos leitores de Paulo Freire e Piaget, tínhamos competência de sobra para servir a nós mesmos e a quem nos procurasse em busca de socorro educacional. Mas as coisas no mundo prático geralmente tomam rumos inesperados, sempre contrários aos nossos sonhos. Engana-se quem pensa que a vida torna-se mais fácil para aquele que lê e estuda. A vida sempre vai ser difícil para todos, o conhecimento só fornece as armas para a luta na beligerância do cotidiano. O rapaz ao lado disfarçava sua indignação fazendo piadas dele próprio. Diz-se que quando conseguimos rir de nós mesmos estamos preparados para todo tipo de vicissitude, para nunca nos acomodarmos. Como acreditar nisso, se os caminhos fecham-se para poucos? Os que detêm o poder são sempre os mesmos e estão lá porque nós os colocamos. Desalento e desânimo. Um pouco mais a minha esquerda há um rapaz com ar desesperador, estava falando sozinho há instantes, será que ele tem o currículo que tenho? Provavelmente não. Voltei-me para Zaratrusta “... Sou o advogado de Deus ante o diabo, e o diabo é o espírito da gravidade...” não adiantou nada Zaratrusta e seu advocatório, o diabo me demitiu permeado por intrigas que ele mesmo teceu. A fila andava lentamente, havia uma atendente que todos queriam distância. Era conhecida pelo seu descaso e maus-tratos com os trabalhadores. Houve casos de omissão e iminente prejuízo e depreciação do valor a receber por causa dela. Um dia ela mudaria de lado e sentiria na pele o desemprego.
_E você?
_Eu?
_Sim e você?
_Eu, o que?
_O que acha disso?
_O que tenho de achar?
_Sei lá... Estou lhe perguntando para ter idéia do que as pessoas pensam quando estão aqui...
_Não sei... É humilhante...
_O que mais?
_O que mais? Você quer mais do que se humilhar?
_Acho pouco...
_Você acha pouco a humilhação que a gente passa aqui?
_Acho... Acho que é muito mais do que humilhação...
De uma forma ou de outra entendi o que ele quis dizer. E ele tinha razão. Mesmo ele que se auto-patetizava.
_Então me diga, o que pode ser mais do que isso?
_Zombaria...
_(?).
_Tá vendo aquela ali? Todos já sabem que se cair na mão dela é prejuízo, ela zomba da cara dos outros, diz que somos incompetentes, que não queremos nada...
_Não vi, por enquanto, ela dizer isso...
_Ela olha a cara primeiro... Se o cara for assim meio “cabrito entregue”, ela descasca no cara...
_Cabrito entregue?
_É, quando está indo para o abate ele não fica assim, de cabeça baixa?
_É verdade...
_Tem que chegar falando, rindo, mostrando que não tá nem aí, que vai um vem outro, é igual a biscoito, vai um, vem dezoito, sabe? É assim... Por isso que eu digo que é mais do que humilhação...
_Tem razão...
_Você também estava com cara de “cabrito entregue...”...
_Você acha?
_Claro... Ânimo, rapaz, ânimo... Olhe eu já estou com outro trabalho engatilhado para o fim do ano...
_Para o fim do ano ainda?
_É, é que eu tenho que terminar meu primeiro grau...
_Você ainda não tem o primeiro grau?
_Não, você tem?
_Tenho... Sou formado, tenho especialização, e cursos em Educação...
_Aaaah, bom! Fez faculdade, não foi? E tem algo em vista?
_Não...
_Ainda bem que a gente sempre encontra alguém que está pior do que a gente, não é?
_Pior?Por que eu estou pior do que você?
_Você estudou tanto, tem tanto curso e está aqui, igual a mim... E eu só tenho a sétima série, mas já tenho algo em vista, mesmo que seja para o fim do ano... Tá vendo? Tanto esforço para nada...
Naquele momento a dúvida e a incerteza preencheram o meu eu. Talvez aquele rapaz estivesse certo, para que tanta correria para estudar e se formar? Ali estava eu num banco de condenados. Ao mesmo tempo e subitamente, além de paradoxal à minha dúvida, tive certeza que o esquema social converge para poucos. Não basta ser competente e sabedor da profissão. O sistema exige um gatilho informal, evidentemente longe das formalidades e da praxe convencional.
Só ao ouvir meu nome ser pronunciado e me dirigir ao atendente, percebi a zombaria que a tal moça fazia com os desempregados. Olhava de esconso... Um olho no computador e outro no “Cabrito entregue”. Analisava-o friamente, longe de uma anamnese psico-profissional, mas pelo simples prazer sádico, estúpido e atávico, portanto distante do real poder que não lhe é inerente, de satisfazer-se assistindo à desgraça alheia.

Carlos Vilarinho -15/04/2006