domingo, 14 de setembro de 2008

CRIME E CASTIGO-de Renata Belmonte

MORRE A GRANDE DAMA. RODIA PORTEMAN IS DEAD. As manchetes de jornal foram suficientes para atrair a multidão para o grande funeral.

Naquela manhã, o sol sorria tão intensamente quanto os inimigos da defunta que estavam presentes. Era o acontecimento do ano. Uma mulher vestida estilo Jackie Onassis reclamava da falta de infra-estrutura do enterro enquanto o Governador arregaçava as mangas do paletó. Pastores de Igrejas diversas citavam passagens bíblicas em voz alta tentando disputar a atenção do público com o Bispo. A filha caçula de uma senhora suada de preto era a única pessoa que chorava. O irmão de seis anos não cansava de apertar suas bochechas.

Na porta do cemitério, um homem anunciava sutiãs de alça de silicone por cinco reais. Uma menina, enfiada numa blusa fechada, comentou que as alças em contato com a pele pareciam durex. Próxima ao caixão, uma senhora que se nomeava melhor amiga da defunta, contava como fora a sua trajetória de vida. Um rapaz, pensando estar próximo de alguém ilustre, puxou assunto e perguntou para a senhora qual era a data do aniversário da morta. Não, não se deve dar ouvidos para tudo que é dito. Nessa horas, até a prima do cunhado do irmão se acha pessoa próxima. Mas, sim, pelo benefício dúvida, não custa nada contar o que foi relatado.

Durante vinte anos, Ródia Porteman foi uma celebridade. O casamento com um judeu, dono de uma empresa de equipamentos para perfuração de petróleo, tinha a transformado na mulher mais rica e famosa do país. Em entrevista concedida a uma revista de ampla circulação, ela contou que detestava flores. Desde que tinha se transformado em alvo de flashes, sua casa se tornou um bosque. Todos os dias, recebia bouquets vindos de todas as partes do mundo e de pessoas que nunca tinha conhecido. Flores se tornaram sinônimo de favores. Preferia ganhar ratos mortos.

Foi uma mulher bonita. Quando adolescente, gostava de sentar no colo dos pais das amigas para sentir o quanto era desejada. Adorava ser bolinada, mas aprendeu a fingir que não. Os olhos de boneca contrastavam com a boca maquiada de intenções. Era o pecado no corpo de um anjo. Quando atingiu a maioridade, foi expulsa de casa por ter tido relações sexuais com o coroinha da Igreja. Virou a fofoca do momento. Onde estava o amor cristão que tudo aceita e perdoa? Arrumou as coisas e foi embora da cidade.

Na capital, resolveu esquecer seu passado. Seu nome, Rodiane, tinha sido criado a partir da união do de seus pais :Rodíres e Anete. Como os detestava, resolveu abolir qualquer lembrança que pudesse ter. Tornou-se apenas Ródia, com lacunas no sobrenome.

Era o tipo de pessoa que sabia fazer bem qualquer coisa. Podia ter sido cantora, médica ou engenheira. Tornou-se garçonete e amante fervorosa do dono da lanchonete. Era sensual até de avental. Qualquer um acreditaria que ela fosse modelo do catálogo da borracharia. Vestia roupas baratas, mas não era brega. Se imaginasse que alguém iria vender soutiens de alças de silicone, próximo ao seu funeral, teria morrido antes para não passar por tal situação.

O patrão concordou em pagar seus estudos, desde que ela continuasse tendo tempo para ele. Tinha dificuldades de ereção devido à idade e se considerava sortudo por transar com alguém tão atraente. Encontravam-se, constantemente, até que Ródia, no outro dia de sua formatura, foi trabalhar como secretária numa multinacional de ferro.

Ainda na faculdade, decorou frases famosas e aprendeu a linguagem dos ricos. Falava sobre vinhos como se fosse uma autêntica sommelier. Indicava pratos de restaurantes que nunca tinha conhecido. Criou o hábito de andar sempre com unhas bem feitas. Preocupar-se com os detalhes das extremidades era coisa de gente fina, pois só estas podiam dar-se ao luxo de todas as semanas, gastar com manicure.

Por ser extremamente perfeccionista, conviver com ela era um pesadelo. Não que fosse exatamente má. Certa vez, pagou todo o tratamento da dama de companhia que sofria de câncer. Seu problema era que era egoísta. O inferno são os outros, aprendera isso com Sartre. Achava que todos tinham que estar sempre disponíveis. Certa vez, acordou a empregada, às três da manhã, para que preparasse seu chá. Não, não suportava gente preguiçosa.

Teodoro Porteman a conheceu na sala de espera da multinacional. Ficou impressionado com a cultura da bonita secretária. Ela sabia tudo sobre o mundo petrolífero e lhe ofereceu um capuccino com Godiva. Conversaram mais alguns instantes e foi convidada para jantar. Na semana anterior, Ródia tinha ouvido o chefe falar sobre a visita do ilustre fabricante de sondas e informou-se sobre a atividade. Em um mês, ele abandonou a esposa e se casaram.

Era Vargas. A lei 2004 cria a Petrobrás. Teodoro Porteman foi o pioneiro da fabricação de equipamentos de perfuração. Tornou-se fornecedor exclusivo da grande empresa. Em 1974, quando descobriram a bacia do litoral fluminense, Ródia é nomeada vice-presidente. Era uma exímia empresária. Em pouco tempo, estavam exportando para todas as grandes companhias mundiais.

Na manhã seguinte à morte do marido, sentou-se na cadeira presidencial e se sentiu poderosa. Tinha se tornado o que queria. Sua primeira providência foi a demissão da secretária de origem cigana. Quando criança, pedira para que um desses tipos lesse sua mão e foi alertada sobre as armadilhas da ambição. Tinha feito uma previsão errada e todas suas futuras gerações mereciam castigos por tal erro.

Os negócios continuavam indo bem. Conseguiu quebrar quatro empresas concorrentes. Olhou-se no espelho. Nem a crise do petróleo, em 73, a deixou tão desesperada. Sua geografia não era mais a mesma. Os seios tinham se tornado montanhas de terra frouxa. A boca não era mais maldita. Ele também não era mais o mesmo. Quebrou todas as taças de cristais Baccarat que viu na frente.

Não se sabe dizer quem foi o seu assassino. Os poucos amigos dizem que a depressão foi a culpada pelo suicídio. As más línguas ainda insistem na tese do vice-presidente amante que, ao perceber que iria ser demitido, dissolveu duas caixas de tranqüilizantes no vinho da dama. Cada pessoa conta a versão que lhe é conveniente.

O caixão estava sendo fechado e ela tinha se tornado uma defunta comum. A morte iguala todas as pessoas. Não, ela não foi vestida com a melhor das roupas. Alguém a enrolou em um conjunto de algodão azul marinho. A pretensa melhor amiga olhou para a lápide e respondeu ao rapaz deslumbrado o ano do nascimento. O túmulo estava tão florido quanto o Jardim de Éden. A criança parou de chorar e a mãe, que já tinha matado a curiosidade, foi embora. Sobrou um pesado silêncio, até a ex-dama de companhia chegar.

Tinha nas mãos um isopor de tamanho médio e o lançou com toda a sua força no buraco do caixão. Estava envelhecida, muitos anos tinham se passado. Mesmo assim, soltaram lágrimas dos olhos, quando os corpos dos ratos se misturam entre as folhas e pétalas.

Conto escrito aos dezoito anos pela autora Renata Belmonte. Escritora reconhecida e consagrada, vencedora do prêmio Banco Capital, autora baiana contemporânea de Carlos Vilarinho, Flamarion Silva, Heitor Brasileiro Filho, Edinara Leão, Andréia Donadon, Clevane Pessoa...

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