segunda-feira, 8 de setembro de 2008

C.C. de Edinara Leão

Cristiene conheceu Gervásio. Foi amor poucos minutos depois da primeira vista. De soslaio. Gervásio com sua tez morena acordou a veia do amor de Cristiene (aliás, cá entre nós, ela não gostava desse nome, não era nome para ela, era nome de mulheres dengosas e meigas, ele não era nada disso, a mãe havia feito a predestinação errada, mas agora que se haveria de fazer?). Depois desses momentos mágicos, Cristiene parecia encantada. Havia encontrado o seu Romeu, o homem de sua vida. Sentira-o no olhar, no corpo, mais – sentira-o em cada poro de sua pele. Mais! Sentira-o em sua alma. Então, sua vida em linha reta e bem sucedida, passou a ser invadida por uma dose de intranqüilidade. As horas custavam a passar. Ela esperava sempre um telefonema e quando vinha, acreditava em tudo o que seu doce amado Gervásio dizia. Ele era maravilhoso, era tudo o que ela um dia pedira a deus. Parecia nem existir...

Alguns amigos de Cristiene desconfiaram e, sem conhecer a doçura de Gervásio, tentaram alertá-la de um perigo. Afinal, Gervásio poderia... Mas era tarde. Ela estava irremediavelmente infestada pela terrível doença. Ao amanhecer, qual era o primeiro pensamento de C.? G. Ela perdera as contas de quantas vezes ligara para o celular de G., digo, para a secretária eletrônica de G., porque, a bem da verdade, o celular estava sempre desligado. Essa foi a primeira estranheza da apaixonada C. Por quê? Por que ele fazia isso? Aliás, esta foi a segunda estranheza. A primeira foi ele não ter dado endereço “residencial”, só comercial. Bom, mas aí, G., muito sério, explicou-lhe que estava se separando (ah! esses homens que estão se separando! – disse uma amiga, mas C. entendeu perfeitamente a explicação do sério G., ele não queria ser importunado, a amiga é que não o conhecia).

E assim foi. Uma vez combinaram uma viagem – G. era um viageiro de primeira linha, estava em muitos lugares em um curto intervalo de tempo. Falava com cada pessoa famosa e chique! Isso C. tinha um certo receio, “tantas viagens”, ele nunca tinha tempo para vê-la, mas amando-o como só ela o amava, acreditava que ele voltaria, um dia! – e C. se programou para a vigem, mas nunca aconteceu. E C. entendeu que ela se precipitara, não era a hora, ou teria sido porque ela não dera a resposta no dia e depois não houvera tempo para agendar. Essas coisas de viagens são complicadas mesmo. E C. compreendeu, e esqueceu esta história de viagens. Depois vieram as promessas – “vou na tua casa sábado”, “não, não vai dar, segunda eu passo com certeza!”, depois, “não prometo nada, vou ver se dá para passar na volta”, “na sexta, nem que seja dez minutos”. E C. já não vivia, arrastava-se pela casa à espera das ligações de G., cada vez mais espaçadas.

Mas o consolo da ingênua C. (agora ela tornara-se ingênua, desconsiderava a inteligência que tinha, porque a inteligência lhe dizia coisas que não era importante saber, agora C. era só coração) era de que ele viria. E veio. Duas vezes. C. passou, então, por curtos momentos de encanto, felicidade e poesia. C. renovou-se, tornou-se falante, saltitante... ante, e tudo o mais. E ele a convidou para ir embora com ele, por telefone. Ela já estava lá. Tanto queria ir que passou a achar sua vida sem graça, seria “vidinha” perto da que teria lá, e seus projetos agora só tinham um destino: o lixo; e sua vida só tinha um destino: G.. Onde quer que ele estivesse, para onde quer que ele fosse. Faria outros ao lado de G.. C. cada vez mais queria ir embora e começar sua vida “verdadeira” ao lado de seu doce amado G. agora tinha certeza de que ele a amava. Imagina! Morar com G. – o príncipe que jamais viraria sapo!

Uma vez ele ligou, cansado. G. sempre estava cansado, mas C. sempre perdoava. Eram as longas viagens... As vezes, o tom de voz mudava, e ele magoava o meigo coração de C. (agora ela tornara-se meiga). Mas ela o perdoava, era o cansaço, ninguém pode estar sempre feliz. Uma vez ela desconfiou que ele poderia estar mentindo, aliás, uma das vezes, ele o confessou. Uma luz vermelha acenou perigo ao coração de C.. E se ele tivesse mentindo o todo? Sobre as audiências da separação? (mas ele dizia até o lugar onde haviam sentado, o que ela alegou, que havia trocado de advogado – será que dizia isso porque o anterior C. conhecia?) sobre o atentado? (mas ele descreveu que os caras estavam encapuzados, a rua, o horário, a reação, o susto, o medo... não, não poderia ter inventado tudo aquilo!) sobre o enfarto? (até justificou-se que não ligava por aqueles tempos porque estivera hospitalizado, muito trabalho e stress, uma vez até ligou do hospital...? sobre a viagem? (ou as viagens, quem sabe nem teria saído de casa e dizia estar em Brasília, até nos Estados Unidos ele foi, eram muitos Congressos...) sobre o seu amor? (não, isso não, não era possível, ele dizia-lhe poesia ao telefone, criadas na hora, especialmente para ela, ela era uma privilegiada, ainda que tivesse mentido tudo, mas o amor era verdadeiro, ah! isso era!)...

Era?

Foi aí que C. caiu em si, parece. E foi caindo, caindo, cada dia uma coisa, parece que montava um quebra-cabeça, juntava peças e sofria. E C. ficou depressiva. Depressão era pouco. C. deixou de viver. Ficou obsessiva com o telefone, Entrou em pânico. E ele que não ligava. Nem ligava para seu tormento. Não ligava. Não ligava! Não ligava!!! C. escondeu de si o telefone, tapou com uma toalha, para não enxergar, mas ele continuava ali, e ela o imaginava e o barulho, o esperado barulho... Nada. C. já não agüentava o peso dos dias, do tempo que não passava. O doce G. a fizera conhecer o amargo da vida. C. já não lembrava como era sua vida antes, diziam que ela era uma guerreira (da onde? – perguntava-se). C. já não tinha vontade de fazer mais nada, sequer de viver... Uma amiga, desconhecendo-a, por nunca tê-la visto assim, receitou-lhe ler a mão. Começou, então, um verdadeiro arsenal de guerra. Ela, C., que detestava (antigamente) essas coisas para pessoas de cabeça fraca (porque antes, você não vai acreditar, mas C. era inteligente, tinha ares da lida, andava de taco alto, cabeça erguida, dona de si, ativa. É... você não acreditaria, mas ela andava maquiada, elegante, de vestido vermelho, agora, apagada, já sem a cor da nova estação, velhos panos cobriam sua nudez). Foi ler a mão. Depois búzios. Depois cartomante – ela que rira do conto “A cartomante” de Machado (quem bem poderia se chamar “A cartomente”). Todos diziam coisas diferentes e C., não sabendo em quem acreditar, beirava a loucura. Alguns diziam que ele voltaria, outros que eles os dois (C. e G.) haviam sido vítimas de um feitiço (mas quem? a ex, e era ex mesmo? a essa altura estava tudo tão embarulhado... alguém da sua família? quem?). Mas a frase que não lhe saía da cabeça era: “intrigas, traições e mentiras na calada da noite”. Nem sabia de onde viera essa frase, mas era cruel! Agora C. já não sabia se (ainda) acreditava, apesar de todas as controvérsias, no seu (já não tão) doce G.

A derradeira frase ia e vinha na mente de C., que virara balanço em redes de miçangas – brilho fátuo. Já não havia espaço para sonhos no coração de C.. Nem o consolo dos amigos adiantava. Quando reuniu forças, saiu, viajou, foi à praia. Viu maravilhas e...nada. Celular fora de área. Sempre. C. saiu de casa para não enlouquecer definitivamente. Um dia, ele ligara, mas ela não estava... (adivinhara?)

Mas um dia C. enxergou a si, pela lente do translúcido espelho. Viu que não era mais a mesma, e lá do fundo, do mais fundo de todos os túneis, foi saindo. Ela agora era comum. Como todas as gentes. Quem não sofreu de amor? Aprendeu que sofrer é tão somente mais uma forma de viver. Aprendeu que toda mulher inteligente, dona de si, essas coisas, um dia vira trapo nas mãos de um irresponsável coração. Hoje, faltam dois dias para um ano que C. Comum conheceu G. Encantador. Havia esperança em C., outra esperança – a de voltar à comum vida maravilhosa de antes. C. sofrida tem saudade de C. ativa e elegante. Nada como o tempo. Os amigos disseram que C. merecia coisa melhor. Eu mesma o disse um dia. Hoje, a velha C. cheia de vida, que G. matou, começa a ressuscitar.

Maria, amiga de C. C.


P. S. Um dia, C. arrumou as malas e foi à cidade dele. Não era para fazer escândalos, C. não era disso. Foi descobrir a verdade. A verdadeira verdade que as cartomantes não disseram. E a verdade foi vindo, não das pessoas (porque seus amigos não conheciam G.), foi vindo no dobrar de cada esquina, no descortinar de cada nova manhã. A verdade foi vindo e detonando o sonho, os cacos de sonho de C. cheiravam as cinzas do World Trade Center. Se virasse manchete, o título da história seria: “Sonho vira fumaça”, se poesia: “Cinzas de sonho”. Se crônica: “Dias dormentes”, se conto... (eu não sei se poderia a história de C. C. virar conto, pode?)
EDINARA LEÃO

inveja

Menina de trança,
o tempo vem
encostar-se em ti
para roubar um pouco
da tua graça.


Edinara Leão

mitologia

pobres parcas,
enrolavam fios
para atar destinos

– elas não sabiam fiar.

Edinara leao escritora gaúcha esteve recentemente na BAÍA DE TODOS OS SANTOS

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