quarta-feira, 26 de novembro de 2008

O PÉRIPLO DO AMOR em "Vicky Cristina Barcelona"- texto crítico sobre o filme de Woody Allen-por Gustavo Dumas

Desde que abdicou do protagonismo cênico de suas histórias, Woody Allen parece ter desenvolvido ainda melhor uma capacidade que esteve sempre em evidência em toda a sua filmografia: a de operar ambigüidades em personagens que se apresentam assumidamente estereotipadas, enredando tramas que suportam (ou suportariam) quaisquer soluções. Estas, no entanto, parecem determinadas por uma espécie de visão ou, vá lá, intuição de mundo do autor – e assim evitamos tocar nesta palavrinha polêmica chamada “ideologia”.


Certo é que o Allen pós-ator parece ainda mais centrado em desqualificar bases sólidas da cultura do consumo made in USA, o que a própria mudança de cenário fílmico denuncia, por si. Na Londres de “Match Point” (Inglaterra/EUA/Luxemburgo, 2005) ou na Barcelona de “Vicky Cristina Barcelona” (EUA/Espanha, 2008), a nervura posta na frigideira é a do establishment e suas implicações na vida comezinha de cada um. Naquele, o tema era explícito: fazer o ponto (escalar socialmente) depende de “sorte”, isto seja relacionar-se com as pessoas “certas”, aceitar anular-se, tornar-se um débil mental produtivo, matar a mulher amada e por aí vai. No último, o toque na rede é sutil – Vicky, Cristina, Juan, Maria Elena, Doug, Judy, Mark trafegam pelas (im)possibilidades do amor contemporâneo que, olhadas da superfície, parecem tão vastas.


Vicky (Rebecca Hall) e Cristina (Scarlett Johansson) fazem as amigas do título, duas americanas em viagem de férias pela quente e bela Barcelona. Hospedam-se na casa de Judy (Patrícia Clarkson) e Mark (Kevin Dunn). Vicky é a noiva-padrão de Doug (Chris Messina). Vicky e Doug são os protótipos mais jovens de Judy e Mark. Judy chifra Mark. Mark (finge que) nada vê. Vicky e Doug vão se casar em breve, está tudo planejado. Os dois se amam conforme o estatuto do amor conveniente, sem arroubos nem riscos. Tudo em paz. Já Cristina encontra-se (sempre) em busca. Trata-se da personagem mais interessante do filme, dado depreciado pela interpretação pixulé de Johansson. Cristina só sabe o que não quer, nos conta um cínico narrador intruso (voz de Christopher Evan Weich): homens pré-fabricados, família pequeno-burguesa, universo nove-às-seis-com-happy-hour. Doug é o idiota moderno arquetípico, cujo tesão de “viver” se manifesta quando planeja adquirir uma tevê de plasma de “última” geração. À sua ignorância, característica da formação para boi de mercado, arte zero, Doug junta ainda uma carinha de pretensão de dar nojo, ou pena.


Era só bancarem as turistas, encarando o papel de homus digitalis que cabe aos que não precisam mais do cheiro das coisas, mas não. Cristina (e Vicky, diretamente do armário) parece(m) querer mais. Juan (Javier Bardem) é pintor. Acaba de se separar de Maria Elena (Penélope Cruz), sua musa, também pintora, figura ponta-de-faca e sua principal influência estética, de quem diz: “nasceram e não nasceram um para o outro”. Juan aborda-as em um restaurante, propondo levá-las para (a cama em) uma cidade vizinha. Declara-se interessado nas duas amigas. Vicky se irrita, gagueja. Cristina se oferece. Vão. Vicky vai sobrar, mas Cristina passa mal. Rola uma noite de viola, vinho e “outras intensidades” entre Vicky e Juan. Cristina melhora, eles voltam da viagem e Juan e Cristina continuam saindo. Vicky se casa com Doug, apaixonada por Juan. Cristina vai morar com Juan. Maria Elena volta. Juan e Maria Elena dão certo novamente... com Cristina.


A trama básica está dada, em seus ingredientes principais. Quando a resolve, Allen completa um périplo: as coisas voltam para onde (se) partiram. Doug e Vicky com seu relacionamento certinho, Juan e Maria Elena separados, Cristina buscando... (“Quem procura o que não perdeu quando encontra não conhece”, já dizia Mestre Marçal, apud Wilson das Neves em seu disco “O som sagrado de Wilson das Neves”, de 1996.) Judy não se separa de Mark: “Ele é muito bom, não consigo”. As férias, como uma concessão do racionalismo burocrático e mercadológico à vida, precisam terminar. Para que a normalidade produtiva possa se restaurar, até com mais força.


Ao conceber uma espécie de quinteto amoroso, em tese, nada ortodoxo, e ao desintegrá-lo, reconstituindo o status quo provisoriamente alterado por um súbito desrecalque de potencialidades amorosas, Allen acaba por reproduzir um mundo em que o amor, a arte, o nonsense, o criativo ocupam um espaço de intervalo, nota passageira diante de uma rotina de anulação, de automação dos sujeitos – quiçá para alimentar um lúdico sem o qual muitos não juntariam forças para trabalhar todo dia. No final, todos perdem de goleada para o sistema.


Em um tempo de sensações mornas, de estabilidade monocrítica e de carência de alternativas para fora do lugar de controle do biopoder, os intervalos para a intensidade são breves como o tempo cronológico supostamente inverossímil em que decorre toda a ação de “Vicky Cristina Barcelona”. Contudo, há pessoas pintando, pensando, escrevendo. E até amando. Tendo a “busca como medida/o encontro como chegada/e como ponto de partida”, conforme os versos sábios de Sérgio Ricardo em “Ponto de Partida”. Elas são raras, infelizmente; porém existem. Allen se inscreve, como autor, neste círculo, sensível aos dramas de sua época, e deixa uma possibilidade de superação entrevista. Difícil para nós é conseguir enxergá-la, com nossos olhos saturados.


Gustavo Dumas é escritor e revisor. Publicou, assinando com o heterônimo de Zeh Gustavo, os livros de poesias "A Perspectiva do Quase" (Arte Paubrasil, 2008) e "Idade do Zero" (Escrituras, 2005).
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