sexta-feira, 14 de novembro de 2008

CAJUEIRO-de Carlos Vilarinho

Lembro perfeitamente das três salas geminadas que compunham a pequena escola que minha mãe dirigia. Uma era da primeira, outra da segunda e a última ao canto próximo ao campinho de barro onde jogávamos “golzinho”, da terceira série primário. Eu e Jorge estávamos com nove para dez anos e assim como todos os outros que brincavam, éramos, sobretudo ali, alunos de minha mãe. Não era só comigo o regrado rigoroso de minha mãe com relação aos livros. Todos tinham que ter a lição prontinha na ponta da língua para a sabatina geral no fim de tarde, quando então éramos liberados para o “baba”. Eu propriamente nunca tive problemas em ler e absorver o lido, quer dizer, às vezes me distraía criando imagens saídas dos próprios livros de História, Geografia e até Matemática. Imaginava um mundo em que os números tivessem uma relação mais humana e não tão radicalmente exata. E assim, nas carteiras duplicadas criava histórias com números, inventava países nos mapas de Geografia e contava ao colega que sentava comigo naquelas carteiras antigas para dois alunos, que era o Jorge. Foi quando comecei a perceber levemente que cada um ser humano tem uma visão diferente das coisas que se apresentam. Claro, isso hoje é óbvio, mas um menino de dez anos acha naturalmente que todos pensam iguais. E provavelmente todos pensam iguais mesmo. Não só o colega de carteira, mas os outros meninos não entendiam a minha criatividade e diziam que eu era meio doidinho, pois vivia lendo Reinações de Narizinho. E só obtinha um pouco de respeito e respaldo nas brincadeiras, porque dava conta da bola e a tratava com carinho e destreza quando ela chegava aos meus pés. Então, tempos depois percebi de fato um hiato, ou um abismo, entre eu e os outros meninos quando descobri durante os babas que me puseram o apelido de Tistu, o menino do dedo verde. Tratava-se de um personagem diferente e hoje não lembro a história direito, li o livro à época exigido pela professora de Português, mas recordo-me que o menino, o Tistu, tinha uma ligação muito forte com a natureza. Ele enfiava o dedo na terra e nascia uma planta, era mais ou menos isso. Ganhei esse apelido, que ainda bem fora efêmero, depois de mais uma visão perceptiva que tive e quis partilhar com todos. Novamente ninguém entendera a beleza e originalidade que o Universo oferece gratuitamente. Mostrei a todos um cajueiro brotando da castanha. Tivéramos aula de Ciências, germinação, e durante a aula lembrei-me de ter visto o nascimento do cajueiro. No recreio levei Jorge e outros quatro ou cinco colegas para mostrar a generosidade e beleza da natureza. Estava bem pequeno, o talo verdinho ainda não tinha força para se manter em pé e a castanha aberta como se estivesse parindo não estava totalmente sob a terra. Eis que num rompante estúpido e de natureza vilipendiada, um dos meninos, se não me engano de nome George, arrancou brutalmente a planta bebê. Talvez mais estúpido e grosseiro, tanto quanto e tanto, foi a gargalhada maciça que os outros deram depois do assassinato da plantinha. Tive ódio, vontade de chorar também, mas não chorei. Depois ouvia sempre que passava que era o livro do menino do dedo verde que estava me deixando doidinho. Cheguei a ouvir comentário até dos pais dos meninos. O que, agora eu sei, não era de se estranhar.

O tempo passou e fui aos poucos renegado das brincadeiras, também não fazia mais questão de interagir. Menos Jorge que apesar de ter sido também um homicida da flora, continuou vindo a minha casa e brincar comigo. Jogávamos bola só nós dois, um contra o outro, e líamos Tex Willer e Zagor juntos. Quer dizer eu tinha que ler em voz alta, pois ele tinha preguiça de ler além de ser lento e vacilante no trato com as letras. Passou a vida me dizendo que não sabia, não entendia, como eu agüentava ficar parado diante de um livro durante horas. Aquilo de ler definitivamente não era para ele. Dizia. Apesar de todos os esforços da nova professora em fazê-lo leitor, como eu era, foram inúteis. Jorge ainda hoje critica a minha leitura e continua sem entender o porque de tantos livros em minha casa. Tornou-se pedreiro e mesmo ele sem entender a razão da presença dos livros, diz paradoxalmente ao seu comentário iletrado que somente agora nesses tempos de hoje veio a compreender minha brincadeira quando criança de um mundo diferente dos números. Pois assim que constatou seu próprio espaço, me disse que vive no mundo dos algarismos e não entende muita coisa quando um engenheiro explica.

Dia desses ao subir num ônibus para ir dar aulas, ouvi uma voz vinda da cadeira do cobrador.
_Ainda não desistiu dos livros, não é?
Era George, o assassino de plantas bebê.
_Ô que jeito! Jamais tive outra escolha...

3 comentários:

Anônimo disse...

Muito bacana, a memória é fascinante. O texto, de primeira.

Anônimo disse...

Muito bacana, a memória é fascinante. O texto, de primeira.

Anônimo disse...

Muito bacana, a memória é fascinante. O texto, de primeira.