segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

PROVA DE AMOR- de Flamarion Silva

PROVA DE AMOR

Tudo aconteceu assim meio por brincadeira. Não pensei que o Lelé fosse levar a coisa a sério. Diziam umas coisas dele, que era matador de aluguel, que já tinha apagado até gente famosa, gente da política.

– Você me ama mesmo, Lelé? Perguntei.

– Pô, se amo! Amo você pra porra! respondeu zangado, uma forma de se mostrar ofendido, não gostava que duvidassem dele.

– Então quero uma prova. E fiz um dengo mentiroso. Por um momento não me dei conta que a coisa era mais grave do que eu pensava.

– O que é? Quer que atravesse Salvador/Mar Grande no braço? Quer que vá a pé daqui até Feira de Santana? Quer que faça uma declaração de amor em público? Porra, essa ia ser foda! ele disse, pra um homem se declarar a uma mulher já é difícil, imagine uma declaração em público... essa ia ser foda!

– Não é nada disso, Lelé, eu disse séria. Sabia da gravidade do que ia lhe falar, por isso fiquei séria pra que ele percebesse que eu não tava brincando.

– Porra, Neném, o que foi? Tá com algum problema? Peraí, disse se afastando um pouco de mim. Não tá prenha de novo, tá?

O Lelé era doido por mim, mas morria de medo que eu pegasse barriga. Ia ser aquele processo de novo. Tomar remédio pra perder. Se não perdesse, tinha de correr pra uma mulher lá de Mussurunga que faz aborto caseiro. Ela já me socorreu duas vezes. Só Cleidiane, minha melhor amiga, ficou sabendo. Isso da primeira vez, que escondi do Lelé. Da Segunda vez o serviço vazou e todo mundo ficou sabendo. O Lelé se retou comigo e disse:

– Não lhe dou uns tapas porque você está de resguardo.

O Lelé era burro nessas coisas. A moça do aborto me disse que tudo bem.

– Você já pode providenciar outro, minha filha, se não quiser ter, venha cá que tiro.

Ela ainda me falou outras coisas. Umas idéias bem legais a respeito da legalização do aborto. Disse que fora do Brasil, em muitos lugares, o aborto é legal. Até falou que na Holanda, se uma pessoa estiver muito doente e quiser morrer logo, pode, isso lá é legal. Ela disse o nome pra esse tipo de morte, mas esqueci. Da próxima vez que eu for lá, pergunto.

– Aqui no Brasil essa burocracia pra tudo, ela disse. Burocracia não sei o que é, mas todo mundo fala e eu também gosto de falar porque é uma palavra difícil. Eu pareço inteligente. Burocracia. Bu-ro-cra-cia. Burocracia.

– Que prenha o que, Lelé. Já não lhe disse que quando emprenhar você vai ser o primeiro a saber. Porra, você é rancoroso hein, não esquece.

– Isso não é ser rancoroso, sua burra, ele me disse. Rancor é quando alguém guarda raiva no coração. Você eu amo, sua besta, ele me disse, assim meio estranho. Não parecia ele, tava muito romântico. Falou com uma voz mansa. Até parecia uma moça falando. Fiquei depois repetindo o tempo todo, imitando ele: – Você eu amo, sua besta, você eu amo você sua besta.

Isso ficou martelando na minha cabeça o dia todo. Parecia música baiana. – Merda! O que é, então? ele perguntou.

– Ah, não sei se você vai topar.

– Topo, disse decidido.

– Mas você nem sabe o que é.


– Diga! disse retado, doido pra saber o que era.

– Você jura que jura que me ama? perguntei.

– Mais que a terra, o céu e o mar. E fez um xis cruzando os indicadores e depois beijou os dedos. Hesitei se devia falar. Talvez fosse só invenção do povo que ele tinha tantos crimes nas costas. Ele pareceu tão doce quando fez o juramento. Fiquei calada, só olhando nos olhos dele.

– Porra, Neném, diga logo de uma vez o que quer que eu faça para provar o meu amor.
Então eu disse de uma vez:

– Quero que mate uma pessoa. O Osvaldo, marido de minha mãe. Ele bate nela, toma o dinheiro dela e, ainda por cima... ainda por cima ele quer me comer.

– Aquele filho da puta! Lelé disse, triturando os dentes de raiva. Mato de graça! Nem precisava jurar nada. Filho da puta!

– Calma, Lelé, calma. A gente tem de pensar bem como fazer. Minha mãe não pode ficar sabendo. O que vai lhe parecer um mal, só vai ser um bem.

– Claro! Claro! Aquele corno! Querer comer mulher minha... Sacripanta!

– E então, tem alguma idéia de como fazer? perguntei.

– É na bala! Na bala! O Osvaldo é muito forte, encarar de peito aberto não vai dar.

Primeiro dou um tiro na perna, e, depois, já pau-a-pau comigo, dou umas porradas; por fim descarrego meu 38 naquela cabeça de merda.

– E se você errar o tiro e ele conseguir tirar o revólver de sua mão?

– Porra, é uma hipótese, é uma hipótese. Vou Ter de atirar no peito e, depois, então, descarrego na cabeça. Tomara que ele fique acordado para sentir a mijada que vou dar na cara dele.

Depois de tudo acertado, a gente se beijou. O Lelé disse que queria me comer. Me comeu ali mesmo, no meio da rua. Levantou um pouco minha saia, rasgou minha calcinha com raiva e me comeu, ali mesmo, no meio da rua, encostados numa Parati verde.
Dois dias depois encontraram um corpo na ribanceira da Estrada Velha do Aeroporto. Era o corpo de Osvaldo. Só identificaram que era ele por causa do anel com pedra vermelha no dedo médio. Minha mãe já havia informado do sumiço na 13ª DP. Os policiais foram lá em casa buscar mainha para reconhecer o corpo. A coitada desmaiou quando viu o anel. A cara do Osvaldo esfacelada.

– A cara esfacelada, disse o delegado mostrando o corpo.

Mainha olhou e não reconheceu o Osvaldo, mas logo viu o anel e desmaiou. Quando acordou fez aquele drama. Minha mãe era louca por Osvaldo. Chorou, gritou, e na hora do enterro no cemitério da Baixa de Quintas, berrou para que todo mundo ouvisse que ela queria ser enterrada com ele.

Uma histeria. Deu vontade de dar uns tapas na cara dela, só para se acalmar. Até hoje, um ano e dois meses depois, fala do Osvaldo com saudade. Lamenta e chora pela sorte do meu irmão recém-nascido.

– Tão novinho e já órfão, diz ela colocando Osvaldo Júnior pra mamar no peito. Ele nem sabia que ia ser pai. Ia amar tanto se soubesse, ela fica dizendo com uns olhos perdidos.

Minha opinião, você já sabe, é outra. Dependesse de mim, ela ia lá em Mussurunga e tirava o menino. Pra que deixar vir ao mundo mais um pra passar fome, pra ficar na rua cheirando cola, roubando, matando? Melhor não vir. O Lelé é que tá certo quando diz:

– Neném, pobre parir é igual a epidemia: quanto mais pare mais a doença aumenta.”

Mas tudo isso não me importa agora, importa é que o Lelé provou que me ama de verdade. Daqui a pouco ele vem me buscar, a gente vai no cinema, no shopping. Ele disse que tá passando um filme porreta. Tomara que seja de amor. Ando tão romântica esses dias... até pareço uma besta.

Um comentário:

Gerana Damulakis disse...

Como sempre o talento narrativo de Flamarion, evidente nos diálogos com ritmo e peso certos, na objetividade de quem quer contar uma história e conta essa história e, enfim,evidente também na maturidade com a qual ele escolhe a linguagem de acordo com o que vai ser contado.