terça-feira, 23 de dezembro de 2008

PAPAI NOEL PEDÓFILO- DE Elieser César

1

A menina foi a primeira a ver a cena. Fora com os pais ao shopping center, decorado com uma grande árvore de natal e outros motivos natalinos, comprar, não uma boneca, como faziam as meninas da geração de sua mãe, mas um aparelho celular bacana, desses de última geração que muita gente, mais acostumada ao telefone fixo, não sabe usar direito. Tão logo entrou no shopping, onde planejava comer um desses hambúrgueres duplos, com batatas fritas e refrigerante, se deparou com a confusão formada.

_Painho!Olhe, painho! Tão batendo em Papai Noel.

De fato, o bom velhinho estava caído no chão e recebia pontapés de alguns homens indignados e incentivados por duas mulheres que repetiam: “cachorro”, “safado”. Já sem o gorro vermelho e branco, com a barba postiça pendurada ao pescoço por um elástico e um filete de sangue a escorrer-lhe pelo canto da boca, o homem vestido de Papai Noel tentava proteger a cabeça com as mãos, enquanto recebia uma saraivada de chutes, na barriga, nas costelas, nas pernas e nos braços.

_Filho da puta! – vociferava um agressor.
_Canalha! - rugia outro.
_Tarado! - emendava uma das mulheres que estimulavam à sova.

Uma pequena multidão, entre indiferente e cúmplice, acompanhava o início de um ato que poderia terminar em linchamento. Um ladrão, que entrara no shopping na esperança de engordar o seu Natal, aproveitou a confusão para surrupiar a carteira de cédulas de um senhor de paletó e gravata. No chão, o homem tentava se defender como podia, enquanto suplicava:

_Parem! Eu não fiz nada. Pelo amor de Deus, parem!

Os pontapés prosseguiam. Um homem, espadaúdo e de cabelos grisalhos, espumava:

- Como não fez nada?! Como não fez nada, animal?!

Um rapaz e uma moça tentaram intervir, dizendo que não se devia bater num homem idoso e ainda mais caído e indefeso.

- Bater é pouco – disse um homem calvo, de mãos dadas com uma mulher mais pintada do que uma aquarela - Deviam matar. É pedófilo!

Temendo o tumulto, os pais da menina resolveram voltar para a casa, levando a criança que chorava lamentando o celular adiado.

Devido aos maus-tratos e a idade avançada, Papai Noel poderia ter morrido, não fossem os seguranças do shopping que o salvaram dos agressores e o entregaram à polícia.
_Dizem que é pedófilo e que tentava abusar de uma menininha – informou um dos
seguranças.
_Pedófilo, hein? Deixe com a gente – respondeu um dos policiais.

Foi, então, que o jovem casal que tentou intervir a favor do homem espancado ficou sabendo que um dos agressores, justamente o que espumava pelos cantos da boca, começará a confusão. Chegara ao shopping com a mulher, uma das mulheres que incentivavam as porradas e a filha pequena. A menina ficou encantada com a decoração que remetia à uma lugar distante e frio que vira num desenho animado da televisão. Ao ver o Papai Noel, gordo, bonachão e rodeado de crianças sorridentes, deu uns passinhos indecisos em direção ao bom velhinho. O homem idoso de vermelho estendeu-lhe os braços, soltando um gutural “hohohôôôôô...” . A mãe da menina tirou uma câmera digital da bolsa e colocou a filha no colo de Papai Noel. O velhinho, que até aquele momento era um bom velhinho, alisava, sorridente, a cabeça da garotinha, que batia palmas de contentamento.

Então, sobreveio o desastre.
_Animal! Filho da puta! - gritou o pai da menina e em seguida a tirou do colo de um
Papai Noel atônito.
- O que foi? O que foi, meu bem? - perguntou a mãe da menina.

Já com os olhos injetados de cólera, o pai da criança levantou o bom velhinho do trenó puxado por dois alces de fibra sintética e deu-lhe uma bofetada no rosto, que se contraiu num espasmo.

- Ele estava bolinando minha filhinha. Este corno descarado estava bolinando minha
filhinha. Acusou.
- Tem certeza ? - perguntou a outra mulher que iria estimular a agressão.
- Se tenho? Eu vi. Veja o volume na calça do safado.
- Mas, ele está de bombacha – apontou a funcionária de uma ótica.
_Bombacha é outra bolacha na venta deste miserável. Aliás, bolacha, não, porque, em homem, a gente dá é murro, mesmo - respondeu o papai da menina.

E, de pronto, desferiu um soco no homem que segurava pela gola da casaca vermelha, derrubando-o no chão.
_Tarado!
_Pedófilo!
_Velho safado!
_Depravado!

Os xingamentos vinham de todos os lados. Em seguida, começaram as agressões, só contidas pelos seguranças do shopping.

2

Ainda com os trajes de Papai Noel, ensagüentado, gemendo e mancando, o homem chegou à delegacia de polícia. No trajeto levara umas bordoadas extras, no camburão da PM e ouvira a ameaça de que de madrugada, na cadeia, os policiais lhe arrancariam os ovos para pendurá-los na árvore de Natal clandestina mantida num porão da Casa de Detenção.

O delegado, um jovem advogado recém-nomeado, se recusou a receber um preso com marcas de espancamento, e ordenou que ele fosse submetido ao exame de corpo de delito e, sob escolta policial, encaminhado ao Hospital Geral do Estado.

De posse do nome e endereço do homem, determinou uma diligência policial na casa do suspeito; uma casa simples, em Plataforma, mas muito bem cuidada, para quem mora sozinho e sobrevive de uma pequena aposentadoria, como descobriria mais tarde o delegado. Que, logo, também ficaria sabendo que o Papai Noel do Anti-Cristo, como o chefe do Serviço de Investigação Policial apelidara o homem idoso, era pintor. Não pintor de paredes, como à primeira vista se poderia supor de um homem pobre, mas pintor de quadros, que expunha numa pequena galeria do Pelourinho, para chamar a atenção dos turistas. Entre as pinturas, de um estilo apressado, amadorístico e repetitivo, havia marinas, mulatas de ancas avantajadas, seios fartos e bunda majestosa, sobrados, igrejas e naturezas mortas, uma panorâmica da Feira de São Joaquim, as antigas lavadeiras da Lagoa do Abaeté, os orixás do Dique do Tororó e um quadro que convenceu alguns policiais da culpa do Papai Noel: a estampa de um Menino Jesus pelado e com o pinto celestial à mostra, fazendo pipi nas vestes de Santo Antônio que, impassível, mantém o semblante voltado para o céu. Pronto! Era a prova cabal contra o degenerado, que nem a religião respeitava e passava por cima da mais cara tradição cristã, para se vestir de Papai Noel e satisfazer seus instintos mais baixos. Foi o que pensou a escrivã de polícia, católica praticante que não perdia a missa do domingo.

Não foi o que pensou o delegado, inclinado a acreditar que não havia má fé na pintura sacro-profana,mas, a inequívoca expressão de licença poética manifestada por um artista do povo. Considerou a gravura até realista, pois, não seria bem plausível que, naquela época longínqua, na Galiléia ou em outras paragens bíblicas, muitas crianças andassem peladas, por falta do que vestir, como muitos meninos e meninas do sertão? Também o Menino Jesus não nascera pobre, numa manjedoura e, ainda por cima, com os pais fugindo do infanticídio determinado pelo Rei Herodes?

Após essas elucubrações e, como ninguém, sequer o pai da menina (quem sabe satisfeito com a surra aplicada?) se apresentou para registrar queixa, o delegado decidiu não instaurar inquérito policial. Inocente ou culpado, o homem já tomara as cacetadas dele e porrada dada ninguém tira. Que ficasse em paz e nunca mais fosse se vestir de Papai Noel.

3

Três semanas depois de chegar ao hospital, ele recebeu alta. Neste período, apenas uma pessoa foi visitá-lo. Queria comprar o quadro do Menino Jesus fazendo xixi em Santo Antônio. Acertaram o preço – quatro vezes o valor da aposentadoria do convalescente – e fecharam negócio. Logo em seguida, o paciente foi mandado para casa. Como chegara apenas com os trajes de Papai Noel e, por ora, vestia o camisolão do hospital, pediu à uma enfermeira por quem se afeiçoara e era retribuído na afeição, que comprasse uma calça, uma camisa e sapatos.

Ainda mancando, com a respiração ofegante, em decorrência dos pontapés que levara à altura dos pulmões; o braço direito engessado e um olho com a visão comprometida, deixou o leito hospitalar. Ninguém foi buscá-lo, até porque não tinha ninguém mesmo. Caminhando trôpego pelos corredores do hospital, passou pela sala de enfermagem, com os olhos voltados para o chão. A enfermeira amiga o chamou pelo nome. Ele se virou, prestativo. Muito ocupada com as anotações de um prontuário médico, ela acenou-lhe um adeus. Ele tentou forçar um sorriso, mesmo sabendo que havia perdido alguns dentes frontais. E ela disse, por fim:
_Feliz natal!


*Elieser César é Jornalista, escritor e mestre em Letras pela UFBa, autor de “O Azar do Goleiro” (Contexto, 1989) e “A Garota do outdoor e outros contos (Funceb-EGBA, 2006), dentre outros livros.

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