sábado, 27 de dezembro de 2008

O BOÇAL- de Carlos Vilarinho

Desde menino me achava cretino. A rima não é proposital, mesmo sendo eu um poeta de largas proporções. Quando adolescente li num livro de filosofia que o homem é preguiçoso porque não tem vontade de potência. E que tinha que se render às massas. Acho as massas repugnantes, a não ser que seja um macarrão italiano à bolognesa. No entanto e como de roldão dentro de mim e dos meus sonhos, aprendi por osmose, como já disse, a fazer as coisas sem muito afinco e honestidade. Não sei por que, mas isso me direcionava às outras pessoas que empiricamente, eu acho, solicitavam meu trabalho. Percebi de imediato com a minha cretinice que poderia levar vantagem sobre quem quisesse simplesmente investigando para depois devassar o discurso alheio. Como já disse me achava um poeta em largas proporções. Então me orgulhava de devorar os livros e os textos que eu mesmo procurava. Ou caíam em minha mão. Ou ouvia alguém culto e inteligente comentar num banco da praça.

Resolvi então que seria o homem mais culto e inteligente de toda a eternidade. Um sonho no reboco de outros sonhos. Fui aprovado num curso de Filosofia. Dessa forma então segui a vida, lendo o rosto das pessoas. Uma vez li no rosto de uma colega de curso o seu desespero por causa de uma prova de um professor maldito e tirano. Havia eu então o flagrado em atitude homossexual com um colega rival meu de conhecimento. Dele, do colega rival, já desconfiava, mas do professor não. Chantageei, sobretudo o professor pederasta. Para se ver livre de mim, deixou-se ser usurpado vorazmente por toda a obra de Shakespeare. Além da prova do semestre. O pederasta era casado com outra professora sargenta do curso de Filosofia. Não tinha necessidade daquilo, mas lembrei-me da colega desesperada e seu corpo tremendo sob o meu em minha imaginação tratante e velhaca. Dei a prova em troca de sexo oral nos fundos da faculdade onde se reunia a turma da maconha, dentre eles o namorado dela, claro ele não estava lá. Depois de formado corrompi meia-dúzia de pessoas estancando-lhes a ferida com o meu dedo. E assim fui ensinar na faculdade onde estudei e por si só era um antro de permissividade ambulante. Depois do professor pederasta, teve a diretora do campus universitário e chefa de departamento de estudos Kantianos. Num juízo puramente analítico e, note-se a ironia, kantiano. Descobri que a tal professora emprenhava urnas de eleições departamentais e assim continuava no poder após dezoito anos. O meu faro e minha facilidade em descobrir falhas e falcatruas alheias, sem titubear na dúvida me levou a espioná-la e levantar dados para conseguir o meu intento. As urnas já vinham emprenhadas. Consegui essa informação de um agente mercenário que não estava nem aí para o desenvolvimento da ciência, muito menos para o bom andamento de um processo político e eleitoral de uma Universidade, tinha no entanto uma demência súbita estampada no rosto. Aquele venal agente não sei de que, vendeu a informação por uns míseros mil e quinhentos reais, meu computador de tela LCD e a impressora. Topei porque sabia que meu lucro seria bem maior do que aquele. E em três meses fui nomeado professor titular de Filosofia Socrática. Para mim foi muito bom, tinha afinidades com os sofistas e nunca entendi porque o idiota do Sócrates não pegou suas tralhas e foi embora de Atenas. Mesmo vivendo assim num pré-fatalismo quase que absoluto, não achava a vida uma porcaria. Queria viver e para isso tinha que contar com os meu dotes cretinos, devassos e desprezíveis. Essa era minha condição e meu pensamento sobre a humanidade. Dessa forma jamais vivi aferroado ao cristo redentor ou a qualquer virgem. Nem a santo, nem orixá. Uma vez me apareceu na frente um homem de chapéu, lá pela madrugada. Estava curtindo o dinheiro que havia extorquido de um adúltero vizinho. Quem mantinha a casa e os vícios do desgraçado era a mulher que com ele se casou. Não teve o que fazer e arranjou um rapariga na rua. Tirava de casa, da mulher que sustentava seus vícios imundos, e dava à cadela. Mudei o itinerário do dinheiro uma vez só, quando o vi e fiz questão de flagrar dentro do carro da esposa fazendo sexo anal com a empresária da volúpia. Então o homem do chapéu disse:

_Isso são horas de passear rapaz?

_Interessa?

_Sabe quem eu sou?

_Não sei e não quero saber...

_Um dia venho buscar sua tripas.

Virou as costas e sumiu andando na treva da madrugada. Eu continuei minha farra. Senti um calafrio, mas logo em seguida tomado pelo prazer do álcool, segui em frente enamorando-me com uma mulher que repentinamente apareceu ao meu lado de braços e abraços.

Nunca deixei de pensar em reviver novamente Cervantes, haveria de ser um ser pensante que revolucionaria o mundo com o meu pensamento prático e metafórico ao mesmo tempo. De vez em quando sentia um pequenino remorso, mas mente fraca não toma conta de mim. Às vezes também vinha em minha mente uma questão de Rainer Maria Rilke “Que farás tu, meu Deus? O medo me domina”.

_Que foi? Tá assustado?

_Claro que não, minha filha.

Tive vontade de perguntar quem era aquela mulher ali, mas algo penetrava em minha mente vadia que simplesmente começava a beijar-lhe. E ela retribuía os beijos num frisson delicioso. Mesmo assim dava-me náuseas cada vez que me beijava e volvia a cabeça de um lado a outro, tornando-se assim uma beijoqueira deliciosa e estúpida. Claro que eu merecia coisa melhor. De qualquer sexo. Mas ali curtindo aquele júbilo indecente, conseguido com a extorsão de alma alheia sentia uma felicidade breve e clandestina, com a licença do arremedo de um livro clariceano. No outro dia a ressaca era miserável e uma angústia infernal e diabólica que se apoderava de mim a cada minuto, como se a minha vida estivesse sendo guardada para um momento explosivo que jamais chegaria.

Alinhei-me às tendências que apareciam na Universidade. Os estudantes sempre trazem coisas novas e a minha mente vorticista, veloz e lépida como a de um grande pensador e senhor da comoção, mesmo que seja a comoção alheia e sofrida, colocou-me em voga dentro de um mundo de intelectuais, aliás, pseudo intelectuais, todos abaixo de mim e assim cravei meus fundilhos na cadeira de estilo vitoriana que compunha a diretoria. Em tempos conheci um rapaz. Magro e macilento. Tinha as mãos grandes e rígidas, contornadas por veias aparentes. Trazia no rosto o desconforto do desconhecimento e avidez pelo mundo acadêmico. Vi de longe durante a matrícula. Tive compaixão pelo semblante pueril e miserável, então um sopro maledicente roçou minha nuca. Fiz questão de ser o professor orientador daquela turma, assim tinha espasmos de superioridade que não me aquietavam, pelo contrário deixavam-me sempre em elevação e em contato com algo inatingível.

Quando Pedro vinha a minha sala dizia-lhe verdades doces. Escondia a minha violência natural e entrelinhas. Maltratava-o fazendo acreditar que eu era o Deus que o faria levitar entre conhecimentos proibidos. De qualquer forma e com o passar dos tempos fui sentindo algo de gigantesco em Pedro. Algo familiar que já houvera passado por mim. Perguntei-lhe once more se ele me amava como Jesus amava Pedro. E então, na resposta senti pela primeira vez um certo pavor.

_Claro que sim. Vou amá-lo até sua última gota...

Havia passado dois anos desde que o vi ingênuo, fútil e frívolo na fila da matrícula. Percebi com o tempo a sua evolução. Muito maior do que os outros. Concedi parabéns a mim mesmo, sabia que aquela genialidade infante, crescente e diabólica devia a mim e a minha natureza perversa e boçal. No entanto e com esses tempos o olhar de Pedro, sobretudo quando punha sobre mim mesmo, tinha algo de visceral e sanguinolento. Durante esses mesmos tempos pus-me a recolher-me mais cedo em casa. Uma vez ou outra Pedro aparecia, fitava-me de cima e baixo com uma fome carnal que me deixava encabulado. Mas eu era superior, ao menos achava isso, e mesmo com uma apreensão a um malogro que não sabia nem tinha idéia de onde vinha me impunha e perguntava-lhe.

_O que deseja, Pedro?

_Nada professor... Estava de passagem aqui por perto e vim te ver... O senhor mesmo
disse para que eu sempre aparecesse...

_Claro, claro... Vou passar um café.

Pedro então se sentava na poltrona e com ar aborrecido, sorvia o pretume sem açúcar.

_Ai, ai, meu bom professor...

_O que Pedro...

Sentia o olhar dele pousado em minhas costas, sentia arrepio voluptuoso e deitava. Pedro terminava o café, roubava meus cigarros e ia embora. Instalava-se em meus sonhos e em minha cama. Furtava minha alma. Foi então, depois de mais alguns meses que vi Pedro com a mesma garota que divertiu-se comigo quando extorqui o adúltero. Jamais entendi como ela apareceu repentinamente aos meus braços. Reconheci imediatamente. A imagem daquela garota não havia sumido do meu inconsciente conscientemente coletivo. Talvez tenha trazido de lá mesmo, das entranhas da memória pré-histórica e cíclica. Um psicológico cheio de anima. As idéias e as imagens convergiram-se e ao mesmo tempo outras línguas vieram para dentro de mim. Em instantes minha alma saiu e de fora em forma de energia cósmica, mas turva, vi o escarnecimento de um boçal. Sua gargalhada infernal escorrendo e ecoando no rio Letes. Era a mesma garota, o mesmo cabelo, não havia passado o tempo para ela. Os dois num romance arrogante e altivo. Aquele amor presente, perverso e carnal, condenado e abençoado por Satanás é que me acentuava a dúvida. Já não cria em Pedro, ao contrário de Jesus. Tinha medo. Eles sorriam como Antístenes e meu estomago embrulhava. Eles dançavam numa noite vazia, como eu dancei com ela mesma. Eles riam embriagados como eu estava naquele dia. No instante em que se virou de costas para dançar a valsa dos mortos eu ouvi...

“Ergam todos os copos
Vamos brindar
Aos mortos
Um brinde aos mortos!
Um brinde a você

Tragam todos os corpos
Vamos ressuscitar
Os mortos
Pra beber com os tortos
Beber até vomitar”

...e vi o sujeito da noite... E ele perguntou novamente;

_Isso são horas de passear, rapaz?

Uma dor lancinante estraçalhou minhas tripas e sangrei até a última gota. Quando o pingo rubro em três segundos juntou-se ao mar de vômito vermelho, Pedro e a garota algemaram minha alma e fecharam a porta da escuridão.

Conto do livro VELHO que será lançado em 2009.

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