quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

ESTA MOEDA NÃO VALE NADA- de Mayrant Gallo

Era o tempo em que as crianças paravam diante das vitrines das lojas e admiravam os brinquedos. As pobres, digo, pois às ricas bastava pensar neles, que na noite de Natal apareciam ao pé das árvores, no canto da sala, como num passe de mágica.
Naquela manhã, como se estivesse diante de uma autoridade, o menino tirou o boné e ficou olhando a vitrine. Não havia criança que não parasse ali. Mesmo que suas mães as puxassem com força e impaciência, uma olhadela ao menos elas destinavam àquele mundo de carrinhos, bonecas, casas, bichos, trens, soldados e bailarinas, tudo em miniatura, e de uma delicadeza ímpar e cores berrantes que atraíam as crianças desde o primeiro olhar, ainda longe, do outro lado da rua. E muito mais aquele menino, tão calado e tão só com sua mãe doente. Ele enfiou a mão no bolso e pescou uma moeda. Entrou na loja, ainda vazia.

“Moço”, disse, tímido, “de quantas moedas como essa preciso para comprar aquele caminhão de bombeiro?”

O homem recolheu a moeda de cima do balcão e a examinou.

“Esta moeda não vale nada. É dinheiro antigo.”

O homem foi à caixa registradora e voltou. Largou uma moeda no balcão, pesada e luminosa: “Você precisa de trinta desta aqui”. O menino a pegou, mal cabia em sua mãozinha. Jamais tinha visto aquela moeda. Seus olhinhos brilharam, e ele mordeu o lábio, certo de que jamais conseguiria juntar tantas daquela. Largou-a então sobre a madeira negra e foi saindo, sem se despedir do homem.

“Ei!”.

O menino se voltou, cabeça baixa, olhar de desânimo.

“Me traga vinte e nove iguais a essa, e o caminhão será seu”, disse o homem.

Naquela noite, quando levou o chá para a mãe, no quarto, o menino perguntou se ela não tinha uma moeda para lhe dar. Ela simplesmente disse que não, que todo o dinheiro que tinham era para comer, e nem poderia garantir que durasse até o Natal.
“Se pelo menos seu pai nos mandasse algum dinheiro...”

No dia seguinte, o menino foi à escola pegar seu boletim e avisar que sua mãe, porque estava doente, não ia comparecer à festa de Natal, e que ele também não iria, pois precisava cuidar da mãe. Depois, reuniu-se com alguns colegas no pátio da escola e tirou de dentro de um saco um dos seus tesouros pessoais, que mostrou a todos: o esqueleto de um gatinho. Um dos filhotes de Dália, a gata de sua mãe, que morrera atropelada no verão anterior. Desde os seis anos que ele guardava aquele esqueleto. Obteve três moedas com ele.

Até o fim do dia conseguiu reunir oito moedas. Mas parou por aí, e por vários dias não conseguiu mais nada. E o Natal estava próximo, e dos quatro caminhões de bombeiro que havia inicialmente na vitrine só restavam dois. Começou a sentir medo, tanto de perder as moedas como de não arrumar mais nenhuma. Felizmente conseguiu fazer alguns trabalhos na vizinhança, e a três dias do Natal seu bolso portava dezenove moedas. Com mais dez, e se o homem da loja cumprisse o que prometera, o caminhão era seu. Na véspera do Natal, a vizinha, dona Laura, o chamou por sobre a cerca e perguntou como ia sua mãe.

“Melhor”, ele disse, sem disfarçar o tom de tristeza.

Então a mulher, para que ele ficasse mais feliz, falou que, se ele fosse à mercearia comprar-lhe alguns mantimentos, ela lhe daria três moedas.

“Quatro”, o menino negociou.

A caminho da mercearia, parou diante da loja e viu que só restava um caminhão. O último. Ficou olhando, abatido. Nisso, um homem que vinha claudicando pela calçada, a varrer o ar com a bengala, parou ao lado do menino e também ficou olhando os brinquedos.

“O que você está olhando, menino?”

“O caminhãozinho.”

“Você gosta dele?”
“Claro!”

O homem ficou em silêncio, como se pensasse. Depois disse:
“Então fecha os olhos e me diga como ele é. Quero saber se você realmente gostou dele...”

O menino fez o que o homem pediu, como se fosse ele, e não outra pessoa, o criador daquele brinquedo. Mencionou, de olhos fechados, cada detalhe, dos mais importantes aos mais simples. Depois pediu desculpas ao homem e disse que precisava ir.
À tarde, faltavam apenas quatro moedas, mas a mãe o chamou no quarto e perguntou se ele tinha algum dinheiro:
“Soube por dona Laura que você andou fazendo alguns serviços para os vizinhos...”

O menino hesitou um momento, mas foi ao seu quarto e voltou com um saquinho de camurça, cheio de suas moedas. Deu-as todas à mãe, que afinal, depois de mais de um mês de cama, lavantou-se e se arrumou, ficando tão bonita quanto antes de adoecer, quase parecendo aquela bela jovem que ele sempre apreciava no álbum de fotografias ao lado de seu pai.
“Vamos ao Centro comprar alguma coisa para a nossa ceia de Natal. Não podemos mais esperar por seu pai.”

Na volta, o menino se desprendeu da mão da mãe e foi apreciar o caminhão de bombeiro, na vitrine. Todavia, o último que ele vira pela manhã não estava mais lá.

A noite de Natal foi tão melancólica quanto o dia em que seus avós morreram. O menino comia sem vontade, sua mãe também. E não havia árvore de Natal, nenhuma música, ninguém mais na escura sala de paredes sujas e móveis poeirentos. Até que perto da meia-noite bateram à porta. Não encontrou ninguém, mas na soleira tinham deixado uma caixa, embrulhada em papel colorido. Ele a abriu, ávido, já intuindo o que seria. A mãe, às suas costas, disse que ele não deveria aceitar presentes de estranhos. Então o menino olhou para o outro lado da rua e viu o homem, que, ao ser descoberto, começou a andar rápido, auxiliado por sua bengala.

“Foi ele!’, o menino disse e apontou o vulto que se esgueirava rente às paredes das casas.

“Não pode ser”, a mãe disse, “ele é cego e muito mais pobre que nós: veja as roupas maltrapilhas...”

“Cego?”, o menino se espantou.

“Sim, veja a bengala. Sem a bengala, ele não anda.”
Dentro da caixa, o menino ainda encontrou aquela primeira moeda, pesada e luminosa.


Mayrant Gallo publicou O inédito de Kafka (CosacNaify, 2003).
Conto publicado no Correio da Bahia, em 24/12/2006.

Um comentário:

Anônimo disse...

Olá Vilarinho!

Gostei sim do conto... inclusive gostaria que você trocasse uma ideia com uma pessoa que infelizmente não está mais entre nós.

Nao tenho o seu livro, mas o David ficou de emprestar-me.

Felicidades