quinta-feira, 30 de outubro de 2008

CRÔNICA DA MINHA CIDADE- Edinara Leão

Há uma cidade no véu do meu sonho. Nem pequena nem grande. Nem alegre nem triste. Humana. Suficientemente humana. Acolhedora. Com gente de bom coração. Artistas do canto, da dança e da poesia, a terra verte aos borbulhões. Há um universo mágico tocando o lastro da história. Nesta cidade, há brisa e ventania.

As pessoas jovens vão embora. Os que já se aposentaram voltam. Aqueles porque tem a vida por fazer e, nesta cidade não há lugar para pobre que ouse sonhar dias melhores. Estes, porque viver aqui tem gosto de mate doce em dia de chuva, deixa uma tessitura de calores nos corações. Nascer aqui é uma dádiva, são trezentos anos de história. Povo com memória e tradição. Sair daqui é preciso, para ver outras cabeças, sorver outras fontes, adquirir entendimento, até do que aqui acontece. Muito tempo em um aquário, o aquário vira o mundo possível e perde-se a dimensão do mar.

Há mentes fechadas. A arte é jogada nas calçadas, e... continua a jorrar, nos cantos, nos bares, nos galpões, no entanto, para certas cabeças, o que importa é estar na ‘Série Ouro’, mesmo que precise importar craques (e pagar bem!). É apenas uma bola que vem e vai, mas lota o ginasião, tira o povo da realidade e vem a RBS! Tem mulheres muito bonitas, plasticamente perfeitas, a coluna social é tão vasta que sufoca o cantinho do poeta, ele some por uns dias... Mas a arte, esta que sempre dá novas nuanças ao cotidiano, que encanta sem artifício, que estremece e faz verter a lágrima do mais duro coração – essa sobrevive com moedas, com sobras de banquetes. Artista é mesmo bicho teimoso e sobrevive, cata, junta e faz um cofrinho, quando vê dá um livro, acontece um encontro, uma mateada, uma oficina, um recital, um festival. E, que tal se todas as pessoas que têm moedas para circular, descobrissem que o pote de ouro deste chão é a arte.

Nasceria uma nova dinastia!

E, ao invés de matearmos entre vinte, oito, ou até duas pessoas, reuniríamos mil. E essas mil, ao sorver o mate em rodadas de poesia, voltariam para suas casas mais verdes, e ficariam um tantico de tempo olhando o ar, sem nada olhar, e, quem sabe, enxergariam estrelas cadentes, cometas no céu, satélites... – quando eu era pequena, gostava que chegasse a noite para contar satélites com o vô, ele sempre olhava o céu!

As pessoas buscam tanto a maturidade, mas eu, que gosto de ser eu mesma, acho que a maturidade, às vezes, faz esquecer coisas tão elementares, como rir à toa. Esses dias cheguei em casa e presenciei um show, as filhas cantando “Amigos para sempre” muito alto, o microfone era um velho tchaco, dava para as duas, não resisti, e cantei com gosto, com vontade, desafinada, cantaríamos e ríamos, ríamos tanto que quase não saía o canto, ríamos tanto que ficamos mais leves que o ar, encantadas...

Ah! essa tal maturidade. Confere-nos peso, tira o encanto da vida. Mas voltando a esta cidade, um dia – sei, terei de partir, será preciso para completar minha jornada, ela nasce aqui, mas não termina aqui. Há uma chama em mim que me devora e consome, preciso ir, até para voltar melhorada – não sei.

Mas esta cidade com cabeças grandes e pequenas, altas e rasantes, é hoje a minha cidade. Aqui eu sou a professora, a poeta, a artista, a louca – tudo são lentes, e sou um pouco de tudo. Aqui se vou ao centro, distribuo tantos sorrisos que a boca cansa, paro e converso tantas vezes que é até difícil lembrar o que mesmo que eu ia fazer. Como é bom matear, prosear e poetar na praça. Só é difícil crescer, é uma cidade para vidas feitas. Não vidas por construir. É isso que nos faz partir, se houver trabalho, a paz se faz e a felicidade se tece com as mãos na teia do olhar. Esta é a minha cidade!

2 comentários:

Carlos Vilarinho disse...

Sua cidade é grande como o seu pensamento, suas idéias e sua escrita.
Edinara Leão, grande escritora!

Anônimo disse...

Muito bom. Na cidade da gente circula um pouco d mesmo sangue que vivifica as artérias dos que ali nasceram. E não há lugar mais bonito, mais acolhedor, mais nosso.