quinta-feira, 20 de março de 2008

O HOMEM PIMENTA




Antes de me tornar escritor famoso e bem sucedido financeiramente, detentor de dezenas de prêmios literários e artísticos de toda ordem, aos quais revelo aqui em primeira mão, o Nobel e o Pulitzer, ganhos com o pseudônimo de Ogro Quiromaníaco, andava perambulando pelos becos, largos e feiras de Salvador. Sempre muito doido, em busca de uma ou outra aventura dialética filosófica. Era professor de Filosofia e pensava no mundo como uma gigantesca penitenciária religiosa. Lia, no entanto, Carl Jung e Eva Pieharkos e achava que havia muita metafísica no mundo. Por incrível que pareça e paradoxalmente não pensava no amor. Não acreditava no amor. Sabia que existia uma catarse quando estava dentro de uma mulher, e só. Entretanto andando um dia nos arredores da feira das Sete Portas, claro, em Salvador, conheci Dirceu e meu pensamento a respeito do amor humano mudou naquele instante. Dirceu me provara durante as nuances da vida em nossas conversas que o amor é inusitado. E me contou uma história amorosa que deixava Rei Artur, Lancelot e Guinevere no chinelo. Segundo ele, a paixão quando surge e arrebata trás consigo uma disposição de fazer o inesperado, o raro, o que ninguém faz, a menos que seja para agradar o objeto de desejo. Então do alto da sabedoria de Dirceu que me disse para passar dias na feira das Sete Portas observando três personagens e que escrevesse a mais latente história de amor dos tempos picantes. Ele mesmo, Quércia e Laudelino.
Dirceu era viúvo há mais de vinte. Era um senhor alto que só comia feijão farinha e banana. Não havia quem o fizesse comer um bife, uma costelinha ou uma sobrecoxa de frango. Vivia de biscates na feira, além da magra aposentadoria. Chegava sempre às quatro da manhã, mesmo quando atrasava por algum motivo fútil, fazia de tudo para ver o sol nascer na feira das Sete Portas. Caminhava malevolente, com muita calma, ultimamente não tinha mais pressa para nada. Aliás, era dono de uma azáfama só para ver Quércia. Estar ao seu lado e ser detentor dos beijos quentes da negrinha. Tinha sempre um ditado pronto para dizer.
_Quem não morreu novo, de velho não escapa...
Esse entre outros dizeres que habitavam sua mente criativa sem conhecimento pedagógico, digamos, mas com sabedoria vital.
Laudelino por sua vez, também banguela, era um negro forte, de meia-idade, mais jovem que Dirceu. Carregava frutas e legumes na feira e da mesma forma que Dirceu era louco de paixão por Quércia. Contudo Laudelino, ao contrário de Dirceu, era pedante, afetado. Muitas vezes até com clientes que faziam compras na feira ele zombava cinicamente. Tão cínico quanto Antístenes e descrente quanto Zaratrusta, claro dentro de uma comparação burlesca e infame. Debochava e fazia troça de Dirceu na frente de quem quer que fosse, principalmente quando se recolhiam para comer.
_É vai ele, ó... Um velho desses só come bananinha, procure comer um mocotó, Velho, para tentar dar conta de dona Quércia...
Laudelino sem dúvida era um camarada mundano, que só acreditava nos prazeres da carne. Prazeres da carne em todos os sentidos falando. Sua virtude era fazer pouco caso. Falava daqui e de acolá, desse e daquele. Só parava e estancava a língua ferina quando em sua frente surgia Quércia.
_Não entendo, sinceramente, não entendo como Quércia dá trela para um camarada desse... Pobre e preto desavergonhado, não tem nada e ainda desfaz dos outros...
_Criatura mais sem graça, eu hein? Ele que não se engrace para o meu lado... Já disse ao Jailton, meu marido, que eu não gosto dele... O que a Quércia viu nesse homem, pelo amor de Deus?
_E ainda por cima é fouveiro, não tem banho, não tem água que molhe aquela fouveirice dele, pode gastar toda a água do rio das Tripas que vai continuar preto e fouveiro...
_Por isso ele vive se cuspindo, o nojento...
Era geralmente esse comentário que se ouvia em toda a feira.
Quércia era uma mulher escura, negra e cabocla. Cozinhava na feira das Sete Portas, num quiosque mantido pela mãe de santo Nega Sabina. Era magrinha, esguia, parecia um lanceiro africano. Orgulhava-se dos dentes e deixava encabulados tanto Dirceu quanto Laudelino. Nenhum dos dois tinham. Dirceu não mastigava nada muito sólido, quando queria comer cocada, que ele gostava muito, só aí ele colocava a chapa dentária, e Laudelino poupou somente o dente carniceiro. Como toda mulher, Quércia envaidecia-se do seu jeito. Vangloriava-se entre as amigas da feira de ter dois homens aos seus pés e flertava com um e saía com o outro. Flertava com o outro e saía com o um. Aquela relação apimentada causou frisson na feira. Todos queriam saber de quem era Quércia efetivamente.
_Simples, pessoal! Ela é de quem chegar primeiro e agradar a moça.
Tão simples quanto a própria vida era o pensamento e a sabedoria do gari Venceslau.
Toda a feira criou então um torneio para saber com quem ficaria Quércia de uma vez por todas. As regras foram escritas sob a observação, empenho, curiosidade e cobiça dos envolvidos. Dirceu, Laudelino e Quércia. Tanto Dirceu quanto Laudelino teriam que usar dentadura para a prova. Essa era a primeira cláusula para agradar aquela que seria o premio. E a segunda era tão simples quanto a primeira. Somente um pouco estranho e inusitado, como pude observar desde que Dirceu veio com uma conversa pra cima de mim de pimenta mexicana. Quem comesse o maior número de pimenta seria o vencedor e levaria o amor de Quércia, note-se que as pimentas teriam que ser mastigadas. Poderiam comer banana, mas não era permitido beber água enquanto estivessem na disputa. Colheram-se então pela feira os seguintes tipos: Pimenta-apuã, pimenta-cumarim, pimenta-da-áfrica, pimenta-da-jamaica, pimenta-da–guiné, pimenta-de-bugre, pimenta-de-cheiro, pimenta-de-fruto-ganchoso, pimenta-de-galinha, pimenta-do-mato, pimenta-dos-índios, pimenta-do-reino, pimenta-de-macaco, pimenta-malagueta, pimenta-negra e por último para dar um refresco, pimentão verde, vermelho e amarelo.
E começou a peleja. Dirceu com a mão cheia saiu na frente com trinta e oito pimentas misturadas. Laudelino cauteloso comeu o pimentão amarelo, segundo ele para sentir primeiro um docinho. Dirceu comeu mais uma mão cheia de pimenta-negra e pimenta-da-jamaica, davam mais quarenta e seis pimentas. Laudelino contou oitenta e quatro e mastigou, empatando a contenda. Como cada pimentão valia meia-pimenta. O pernóstico tinha meia pimenta de frente. Dirceu contou mais quarenta e mastigou. A platéia em delírio torcia mais abertamente para Dirceu.
_Vai que é sua, Dirceu!
Laudelino empatou mais uma vez e esperou a reação de Dirceu. Como não respondia, o negro comeu mais um pimentão, ficando a frente com mais meia pimenta. Cento e vinte e quatro pimentas tinham sido comidas por cada um.
_Quero ver na hora de botar isso para fora...
_E se um dos dois tiver hemorróidas?
_Eu ouvi dizer que Dirceu tem umas pregas soltas...
O velho Dirceu não agüentou e sentiu dores de barriga. Desistiu e foi levado para o Hospital Geral. Laudelino foi homologado como o homem-pimenta e vencedor do combate. Contudo ao procurarem pelo prêmio, este havia sumido. Todos conclamavam:
_HOMEM-PIMENTA! HOMEM-PIMENTA! HOMEM-PIMENTA!
O próprio Laudelino fazia coro...
_EU SOU O HOMEM-PIMENTA e dono da mulata mais linda desse país...
De repente...
_Olhem, lá está a Quércia!
Quércia estava sentada no colo do gari Venceslau ao canto do bar, pendurada nos beiços do lixeiro.
_QUÉRCIA? QUÉRCIA! EU SOU O HOMEM-PIMENTA E NÃO O HOMEM-CHIFRUDO...QUÉRCIA EU SOU O HOMEM-PIMENTA, QUÉRCIA...
E caiu num choro decepcionado. A platéia ainda extasiada voltou com o som em estribilho.
_HOMEM-PIMENTA! HOMEM-CHIFRUDO! HOMEM-PIMENTA! HOMEM-CHIFRUDO!
Daquele dia em diante, antes de ser o que sou agora, dono de um dos melhores textos do mundo. Agraciado publicamente por ninguém menos que o escritor colombiano, também Nobel. Tive que rever meus conceitos e sentimentos sobre o amor. Aquela batalha picante dos tempos modernos serviu para me alertar sobre o que seria verdadeiramente o amor. O que um homem pode fazer pelo beijo caliente da mulher amada. Por outro lado, e depois ao observar Quércia e o gari Venceslau os dois rindo e curtindo-se um ao outro, tive convicção que a simplicidade dos atos e a sabedoria das palavras são o que realmente importa a um ser humano. Anos depois do homem-pimenta, homem-chifrudo, comecei a minha escalada para o sucesso, tendo em mente a parcimônia e astúcia do gari Venceslau e a obstinação do amigo Dirceu. O homem-pimenta desapareceu da feira, levou com ele próprio a decepção e o cinismo que lhe cobriam a carcaça picante...


Carlos Vilarinho 12/09/06

2 comentários:

Anônimo disse...

Está muito interessante. Valeu!

Anônimo disse...

Seu blog está lá nos favoritos do Leitura crítica.Ligação feita.