domingo, 9 de março de 2008

OLHO FRIO


Quando a professora Letícia brigou comigo na quarta série, ouvi pela primeira vez que tinha frieza no sangue. Realmente era um menino averso às brincadeirinhas das outras crianças. Naquela época achava-me velho ainda pequenino, tinha uma certeza que havia coisas mais importantes a fazer do que jogar futebol simplesmente, ou empinar pipas. Não gostava de doces e olhava as meninas com um estranhamento duro e perverso. Depois daquela bronca idiota e estúpida por não saber distinguir substantivo de adjetivo, comecei a nutrir um ódio gelado e ao mesmo tempo cheio de vapor dentro de mim. Tinha dez anos e a partir dali comecei a enxergar melhor a missão que me foi designada, não sei por quem. Descobri também que o meu olhar de Medusa, frio e malvado, passou a incomodar, ao longo do tempo, os colegas e, sobretudo a professora Letícia. Isso não me desgostava, pelo contrário, comecei a gostar do temor que via estampado nos semblantes alheios quando punham a visão sobre mim. Minha primeira vítima foi ela própria, a professora Letícia. Fora ela quem despertara em mim o apreço pelo mundo de Hades. Tinha quinze anos então e todos os dias esperava-a sair da escola, isso pela noite, e acompanhava-a sem ela saber até próximo da casa dela. Ouvia freqüentemente quando vadiava nas proximidades da venda ou do bar de seu Francisquinho que a professora Letícia ficava mais bela à proporção que envelhecia. Não via isso. Enxergava-a carrancuda e me constrangendo por causa de um tal substantivo adjetivado, ou qualquer coisa nesse sentido. Tempos depois da bronca que me deu nunca mais voltei à escola. Acho que por causa disso me mãe intensificou o desdém e desprezo que sentia por mim. Ouvia o resmungo toda noite:
_Desgraçado, foi embora e me deixou com esse entojo dos infernos...
Passei anos tecendo aquela alma. Quando passava escondido pelo quarto de minha mãe e ouvia suas rezingas praguerosas sentia um fel lotado de amargura ir até os confins de mim mesmo e lá instalar-se. Andava sete passos de costas, urinava no chão e cavava o lugar urinado. Lá deixava o nome da professora Letícia. Sentia um vulto por trás de mim, mas nunca cheguei a enxergá-lo tête-à-tête. Ficava arrepiado e ouvia um uivo sanguinolento seguido de uma risada diabólica. Entrava em transe e então ele me dizia.
_Arranque-lhe a cabeça e beba-lhe o sangue, depois que fizer isso serás imortal como eu...
E acordava na alta madrugada com frio e babado não sei de que, nem por quem. O fato é que segui a risca os ensinamentos do rei dos infernos. Quase estrago tudo num dia. Estava como de costume olhando a rua deserta e sem esperança dos pobres que moravam ao meu redor e escutei vadios beberrões, velhos aposentados, analfabetos e semi analfabetos como eu, além de o dono do bar falarem quase em uníssono:
_Por trás daquele riso puro e angelical há uma vontade de ferro, um desejo inoxidável de ser possuída... Aaah, Letícia!
Fui tomado de um impulso ciumento, esmurrei um analfabeto e agredi fortemente um dos velhos. O dono bar me deu uma paulada nas costas e só assim parei. Fiquei uma semana com o lombo dolorido. Soube que a professora me procurou para agradecer e saber como estava, mas não quis vê-la. E assim todos na rua começaram a pensar que eu nutria amor platônico pela professora Letícia. Eu ria por dentro sem esboçar nenhuma reação facial. Meu olhar continuou duro, fixo e frio. Acho que gelava dia após dia. A imagem da professora me dando bronca com o dedo em riste não saia da minha mente e então resolvi executá-la. Perto da meia-noite, como o rei me ensinou, me instalei no seu banheiro. Entrei me esgueirando e fiquei atrás da porta. O rei disse que não precisava tanta obscuridade, pois ela não me veria. Segundo ele, estava invisível e, ele mesmo, abria meus caminhos. Teria só que executá-la. Encharquei um pano com éter e esperei. O rei foi acordá-la para urinar. Assim que a porta abriu, segurei-a pelo pescoço e coloquei o lenço no nariz. A mulher desmaiou em segundos. Vi que realmente tratava-se de uma bela mulher, tinha as carnes duras e rígidas, não era pelancuda. E com um golpe só de machado separei a cabeça do corpo. O sangue jorrava abundante. Tomei banho de sangue da professora Letícia. Bebi a maior quantidade possível, até notar o corpo quase incolor. Ouvi a gargalhada ecoar por toda a casa e o uivo sanguinolento. Senti umas fuças sob meu corpo. Nos meus ouvidos, no meu nariz, nas minhas costelas, acho que havia uma infinidade de monstros a rondar o alimento do inferno. Em seguida ouvi também o rei dizer:
_Agora, coma o cérebro dela que nunca mais vai esquecer o que é um substantivo, ou um adjetivo...
E realmente como um passe de mágica aquele conhecimento se apoderou de mim. Passei mais da metade da minha vida procurando substantivos e adjetivos por todo lugar onde passava.
A professora abriu para mim o caminho da morte delineada, mataria qualquer ser arrogante e constrangedor. Em seguida foi o padre Teófilo, assisti ao sermão durante a missa e quando ele falou dos corintianos e Paulo de Tarso que tinha que haver amor. Que toda a sua riqueza era refugo. Que tinha que haver amor, que tinha que haver amor, que tinha que haver amor. Que o amor era paciente, que o amor era benigno, que o amor não trata de leviandade. Aaah! Desgraça! Me senti ultrajado, constrangido e sem amor. Olhei o padre Teófilo que lá no púlpito, pressagiou o fel lotado de amargor que emergia de mim e que derramaria sobre ele. Ali ele soube que seria degolado. Depois de dois anos de ter sugado todo o sangue que jorrava das entranhas da professora Letícia, comeria o coração do padre Teófilo para obter amor. O rei da legião não aprovou minha freqüência nas missas brancas. Toda vez que pisava numa igreja sentia dor de cabeça e náusea. Ele, o rei, queria que eu coordenasse as Blacks sabbaths assim ele referia-se ao ato de sua adoração. No entanto eu ia às duas. Quando saia de lá dos confins do inferno, sentia meu corpo mais teso, mais duro e mais saudável. Meu olhar mais frio e perverso. Percebia o medo estampado no rosto das pessoas ao cruzarem por mim. Trucidei o padre Teófilo enquanto ele lia na sacristia da igreja o salmo 91.
_”...não temerá o terror noturno, nem a seta que voa de dia... Nem peste que anda na escuridão nem praga que anda ao meio-dia...” Aaaaaaaahhhhhh...
Era meia-noite quando dei a primeira mordida no coração do padre. A professora Letícia veio imediatamente à minha memória. A imagem dela me repreendendo e me causando constrangimento bobo com aquela desgraça de substantivo. Pela primeira vez na minha vida bestial acho que algum sentimento misericordioso quase se apodera de mim. Não pelo padre e aquela igreja católica cheia de farsa e expiação medrosa da morte em si. Mas saudade da professora Letícia. Mesmo com esse sentimento infantil e asqueroso querendo me tomar, fiquei revigorado ao matar pela segunda vez alguém importante para a sociedade preconceituosa com doutrinas e falsos juízos. E então trilhei meu caminho ceifando e abreviando, como a morte em pessoa, a vida de quem seria descartável e nocivo à humanidade. Claro, de acordo com o que o rei da legião determinava. Comecei a sentir de maneira mais acentuada um orgasmo prazeroso quando passava pelas pessoas e elas punham o olhar delas cheio de fé e esperança no meu olho frio e decidido. Comecei a ter ódio da humanidade, menos da professora Letícia, coitada. Ao que me consta já matei motorista, psicólogos, estudantes de Letras e áreas afins, balconistas que se aproveitam da ausência do dono e patrão para exercer o poder torto, vagabundos ignorantes, adolescentes arrogantes que acham que sabem tudo, Xamã, funcionários públicos, escritor, vigia-segurança que também aproveitam de algo, no caso a farda e deturpam as ordens que lhes foi dada, dirigente de futebol, e mulheres. Muitas mulheres. Todos que matei eu absorvia uma competência de cada um assim que comia um órgão. Comi fígado, comi cérebro, comi clitóris, comi pênis, comi metatarsos e até cotovelo. Aliás, lembrei-me de um caso peculiar. Não faz muito tempo estava sentado num bar descansando as idéias e o sangue que ajudava a fazer a digestão de um xinxim de bofe. Comecei a ouvir uma conversa de duas mulheres. Duas assistentes sociais, uma delas era morena tinha o cabelo enrolado, confuso e em parafernália, parecia uma tralha desarrumada, uma pinta no seio esquerdo, um ar bestial com uma careta sestrosa cheia de horror toda vez que prestava atenção na fala dos outros e, pasmei, tinha também um olhar frio. Dizia essa criatura como ela humilhou e constrangeu um homem que havia confiado nela e, segundo ela, o apedeuta caíra de amores. Difamou o beócio e nunca mais olhou na cara do estúpido. Aquilo me ferveu as entranhas. Senti um fel diferente na ponta do esôfago subindo pela garganta. Lembrei da professora Letícia. Pobre Letícia, tinha remorsos agora, queria que ela fosse minha mulher, masturbava-me pensando naquele defunto de carnes duras e brancas. Olhei novamente a de cabelos de Medusa e desde aquele dia passei a segui-la. Tinha um carro preto, a cor preferida do rei da legião, meu pai demônio. Morava nos confins da desgraça do subúrbio da cidade. Mesmo assim segui-a. E num domingo que não fui à missa branca executei. Disfarçado de homem do gás subi ao prédio. Ela abriu e então com um facão para descascar cana escondido no roupão com um cabo de 35 cm rendi a desgraçada constrangedora de homens imbecis. Pus-lhe uma amarra na boca, tirei-lhe toda a roupa e me satisfiz sexualmente pela primeira vez na minha vida. Amarei os braços na cama e cortei-lhe os dois pulsos com o facão. Um corte profundo e bem feito. Assisti com satisfação moral e sexual o sangue jorrar e deixar o lençol todo vermelho. Nesse instante ouvi o rei da legião, meu pai demônio, dizer que os acompanhantes dela, sete eguns que abriam espaço para uma tal Yansã, queria lambuzar-se no sangue que esvaía-se como cachoeira. Contemplei gélido, como sempre, a miserável desfalecer, tossir e suplicar por oxigênio. Tive mais nojo do que o habitual e não comi nenhuma parte daquela infame deplorável. Antes de ela partir para o mundo de Hades, disse-lhe que nunca mais ela difamasse um homem bom. Vi o desespero da morte nos olhos frios da Medusa. E morreu. Depois da morte daquela mulher senti um alívio. Ouvi o rei dizer que já era o bastante, ele me daria dinheiro suficiente para minha aposentadoria demoníaca. Foi assim que uma semana depois um homem vindo do tormento e do martírio bateu à minha porta, todo vestido de preto e com os caninos à mostra me entregou a encomenda de satanás. Uma mala com muito dinheiro, quatro passaportes e cinco identidades diferentes. Pus-me a pensar na professora Letícia. Invoquei o rei da legião e perguntei-lhe por ela. Pela primeira vez desde que mundo é mundo o Cão condoeu-se. Fez algumas recomendações e me levou para um passeio no mundo dos mortos. Tive que levar uma moeda para o barqueiro Caronte. Passei pelos anéis dos corruptos, dos ladrões, dos invejosos, dos mentirosos e difamadores, onde vi a tal cabelo de Medusa sofrendo atolada num tonel de merda. Cheguei ao paraíso e fui conduzido por Dante. Lá a professora Letícia conversava tranqüila e absorta com Beatriz. Tinha um olhar que nunca tive, nem nunca quis ter. Não disse nada, olhei com meu olho frio, mas com uma quentura dentro do coração. Só assim me dei conta que havia absorvida a oração do padre Teófilo e senti o gosto de uma gota salgada a passear nos meus lábios. Virei as costas e voltei por um atalho sem passar pelo inferno novamente. Assumi nova identidade e comecei a conhecer o mundo de satã, cheio de riqueza, tecnologia, luxúria, falsidade e sem amizade. Aqui fiquei bem, aqui é o meu lugar...

Carlos Vilarinho 09/03/08


Um comentário:

Letícia Losekann Coelho disse...

Vilarinho...
Não sei nem o que falar...Está perfeito! Li sem parar sabe, esse misto de sentimentos que existe no teu texto é muito bom! Pardei a fala rsrsrs sério! adorei!
beijos