sexta-feira, 20 de junho de 2008

VINTE E CINCO CARNEIROS de Heitor Brasileiro Filho

Há uma semana sem ver os meninos e sua Carolina que o esperavam em Senhor do Bonfim, destino da carga de carneiros. Os carneiros foram comprados com o que restou do frete dos cereais, naquele fim de mundo não havia carga de volta. Então trouxe os carneiros. Assim voltava mais cedo sem vir rodando o caminhão vazio. Tinha a chance de matar a saudade da família e de engordar o frete. Mas antes teria de negociar com os fiscais em Jacobina e passar pelas correntes. Havia chegado à primeira barreira. A temível pança do guarda Macário. Mas não era a única. Teria que passar por outra barreira ao sair da cidade. Mas ainda não sabia como vencer a próxima corrente. A corrente do guarda Lucena.
Tião subiu no estribo do caminhão, Vítor engatou a marcha e seguiu devagar. O guarda Macário roncava ao lado da sua bicicleta e um vistoso cano de revólver pendia na cartucheira de couro envelhecido. O quepe oscilava entre o nariz e a sobrancelha em obediência a lei da gravidade. Ao ver Tião comprimido no banco do carro, Vítor sorriu e se despediu do guanda com uma solene continência. Já havia engrenado a quarta marcha quando finalmente ouviu o maldito apito. Em seguida, o estampido. O guarda Macário havia despertado das profundezas do sono e atirado para cima, numa tentativa frustrada de deter o caminhão. Vítor sorria, mas conhecia os caprichos do guarda. Sabia que seria seguido implacavelmente nas ruelas de centenários paralelepípedos por fúria, pança e bicicleta.
O caminhão com os carneiros evitava as ruas principais, Vítor conhecia como ninguém aquelas ruas e acelerava para alcançar a São Salvador. De lá seguiu pela Rua da Conceição, atravessou a pequena Ponte do Convento em direção a Rua da Estrela. Esgueirando-se por pequenas ruas periféricas poderia alcançar com êxito, e sem ser identificado, a Rua da Bananeira. Após o pontilhão de aço, conhecia um caminho de terra paralelo à rodovia que iria dar nas Sete Portas. Local onde poderia desembarcar vinte carneiros com segurança até o dia seguinte. A Sete Portas nada mais era que uma casa antiga com exatas sete portas. Em outro tempo talvez tenha servido de pouso de tropeiro, ou armazém de secos & molhados para atender aos garimpeiros de ouro. Ficou abandonada do outro lado do rio, próxima à cabana do canoeiro Manezinho. Os meninos areieiros contavam pra todo mundo que a Sete Portas era mal assombrada.
O Rio Itapicuru-Mirim separa a rodovia e a estradinha que passa diante da Sete Portas. Em tempos de chuva nenhum carro se atreve a passar no rio. Nas Sete Portas a carga excedente ficou sobre a guarda do compadre Manezinho, que o recebeu com a satisfação de sempre. Vítor manobrou o caminhão de volta, em direção ao centro de Jacobina, e aliviado estacionou adiante do quintal de Glorinha, uma alameda de cumplicidade e discrição. E distendeu os músculos - Ah, Glorinha... Pouso tranqüilo, bebida generosa e xodó sem compromisso. Logo depois Tião voltou pra boléia, tranqüilo, com um sono de vinte e cinco carneiros.
Ao amanhecer, Vítor saiu da casa de Glorinha já sabendo o que iria encontrar pela frente. Um posto de fiscalização em alvoroço. O guarda Macário em cólera, com os olhos injetados de sangue, espumando nos cantos da boca e cuspindo na cara dos interrogados.

- Boleiros!
- São todos uns boleiros! Vociferava inconformado.
- Se deixou passar os bichos, então por que não guardou o meu?

O guarda Macário, na sua fúria, foi além das conveniências. Sequer percebeu que havia tocado nos brios do guarda Lucena. Mais conhecido como Brioso, Lucena sempre que tomava umas jurubebas a mais não agüentava desaforo, ficava valente. Lucena (ou Brioso) só sentia remorso quando lembrava da prima que tirou de casa e largou de barriga aos quatorze anos em Mossoró. Saiu jurado do Norte. Daí então cumpria ser homem sério. Virou fiscal por ordem do Coronel Chico Rocha. Somente ao Coronel devia serventia. Há vinte e três anos é casado com Jurema, cabocla da terra, já têm filhos no ginásio. Não podia admitir os impropérios do guarda Macário. Esperou juntar mais uma meia dúzia de curiosos e devolveu a provocação.
- Já disse e afirmo, num passou nenhum caminhão de bicho. Meu conseio é mudar o rumo dessa conversa, mode acordei cum dedo coçano... P'a pocar uma bala no meio dos chifre de um fi-duma-égua abasta um cisco.
O guarda Macário, sem tirar os olhos gordos de Brioso, apalpou o cabo de madeira do Taurus 38, cano longo, e o fulminou com um olhar raivoso e correspondido. Os precavidos já tinham tomado posição pra ver o espetáculo com segurança. O guarda Macário então deu um pinote e apontou com o dedo em riste na direção do caminhão enlameado que acabara de estacionar diante da corrente esticada.

- É... É esse. O cabra!

Final domingo - 22/06

Nenhum comentário: