quarta-feira, 18 de junho de 2008

VINTE E CINCO CARNEIROS - de Heitor Brasileiro Filho

Os faróis do antigo chevrolet iluminaram a corrente de ferro. A corrente esticada de um lado a outro da rua marcava a fronteira entre o possível e o impossível. Além de regular o trânsito de passageiros e mercadorias. Ninguém passava impune aos olhos do guarda Macário e sua incorruptível autoridade de fiscal fazendário. Coletor de impostos. Macário era o Guarda da Corrente. Um nome conhecido. Não apenas naquela cidadezinha encravada a noroeste na chapada diamantina da Bahia. Mas entre os transeuntes do lugar seu nome em algum momento fora mencionado. Para roceiros, feirantes, carroceiros e principalmente os caminhoneiros que transitavam por aquele sertão ornado de serras, tabuleiros e caatingas, Macário era um nome temido, mais pelo gênio irascível - ou bruto, como se diz por ali - do que pela autoridade de fiscal.
Vítor estacionou seu caminhão diante da corrente. Não escondia o cansaço. Era madrugada e chovia devagar. Trazia uma carga de carneiros no seu caminhão chevrolet, ano 1964, com algumas prestações a pagar. Foi o que sobrou da sua Bomba de Gasolina que pegou fogo. Vítor tentava não lembrar, mas teve um Posto de Combustível com bar, lanchonete e casa de autopeças. Virou cinzas. Descuido de um bêbado. Cochilou tentando acender uma bituca de cigarro. O fogo consumiu em horas o sonho de uma vida. O homem em chamas foi salvo por um cobertor úmido. Enquanto o sonho ardia. Os amigos sumiram. Sobraram as dívidas e a metade de um caminhão. A outra metade é paga através de Letras, Títulos de Crédito como dizem a moça sorridente e o garoto engomado por trás do balcão. O gerente do Banco, babando um gordo charuto, chamava-as Notas Promissórias. O chauffer assinou os papéis e traçou as léguas de promissão. O fato é que Vítor recusou ajuda do pai, pecuarista, que o queria fazendeiro. Jurou para si que venceria sozinho. Sequer foi cobrar aos falsos amigos o fiado do combustível, das peças de reposição e da farra cotidiana. Restaram cinzas. Agora estava ali, diante da corrente sob uma fina chuva esperando o apito do guarda Macário para poder avançar. O apito custava a soar. Seus ombros doíam. Os olhos ardiam. O guarda não se levantava. Sacudiu o ombro de Tião, ajudante e companheiro de viagens que roncava ao lado. Entregou ao Tião a nota que declarava compra de vinte e cinco carneiros dos quarenta e cinco que se encolhiam sobre o caminhão. Tião retornou, ainda sonolento.

- O guarda tá é durmino!

Vítor acionou o limpador do pára-brisa, mas a distância o impedia de ver algo além da neblina.

- Abaixa a corrente. Ordenou Vítor.

Tião arregalou os olhos, mas obedeceu sem titubear. Sabia da determinação do parceiro. Conhecia como ninguém o efeito dessas frases curtas. O prosador de causos hilariantes na boléia ou na roda de caminhoneiros sob estresse era monossilábico e fulminante. Estava no limite de suas forças. Enfrentou o perigo, lama, fome, frio e a solidão nessas estradas infames. Havia saído há uma semana e se embrenhado no sertão para levar uma carga de cereais na cidade de Lençóis. Subiu vagarosamente a Serra do Tombador margeando o abismo com os pneus deslizando em pedras soltas. O temível despenhadeiro impunha respeito. A paisagem deslumbrante do grande cânion também provocava calafrios. Do lado esquerdo, uma imensa parede de pedras sobrepostas ostentando acima da cabeça uma marquise natural que escondia o céu. No meio, a estradinha antiga de pedras soltas que o caminhão vencia como um lagarto vagaroso e obstinado. Na margem direita, a imensidão. Era o abismo. Sob aquele imenso vale florido havia um sem número de almas abraçadas com as ferragens e a vegetação. Almas antigas. Muitos companheiros de estrada havia se perdido por ali, e agora dormiam para sempre o sono dos descuidados, bêbados, dos traídos pelo cansaço. Um sentimento de admiração e melancolia envolvia o coração de Vítor sempre que passava naquele trecho da Serra do Tombador.

Continuação de "VINTE E CINCO CARNEIROS" e "SEGREDOS E MEMÓRIAS DE UMA MULHER ATRAENTE E DESPUDORADA" Sábado 21/06

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