sábado, 12 de abril de 2008

CARTAS DE AMOR



Só percebi realmente como deveria se sentir uma Reginae quando cheguei a origem do meu sonho. Desde então meu nome era para mim uma simples derivação latina. Originada de uma língua morta e sem brilho nenhum. Quando escrevia e mostrava meus poemas às pessoas que me rodeavam, não sentia tesão literário ou dialético emergindo delas. Ficava triste pela indiferença poética e ao mesmo tempo imune da mesmice que eu entendia e não me contagiava. Comecei a escrever cartas para um escritor de lá do outro lado do país que nem conhecia. Isso há muito tempo. Escrevi uma, duas, três, dezenas. Até que um dia o carteiro Joélio gritou meu nome no portão. Desconfiei, tinha certeza de que nunca falara com aquele carteiro magricela. Ele sabia quem eu era, pois depois de chamar por mim, esgueirou-se na janela. Minha irmã sempre recebia as correspondências, mas ele olhou para mim. E dessa forma recebi a correspondência do tal escritor já desconfiada e descrente que ele também se tratava de um senso comum. Ao contrário do que todos pensam de uma adolescente cheia de curvas como sou, sempre levei as coisas do meu pensamento a sério. Mesmo sabendo que dadas as seguintes relevâncias apáticas, contraditórias e díspares da grande maioria, às minhas idéias, à minha linguagem e às minhas peculiaridades idiossincráticas, tinha conhecimento que, em relação a esses meus adjetivos, jamais haveria valor e mérito, além de desvelo. Simplesmente por tratar as metáforas que emergiam do fazer poético com grande eloqüência e sinceridade. Então me chamava Regina.
Ao abrir a carta que o escritor mandou para mim, numa ânsia demente, já não achava que o mundo poderia ser transformado. E continuo achando, só que de uma maneira mais atrevida e irônica. Para mim a palavra não é unidade livre e separada, ou às vezes é. E foi isso que o escritor tratava na carta. O sentido e importância da palavra. No entanto, como sempre soube de minha diferença desde o início, aliás, lembro-me de que uma vez quando estudava na sexta série, uma professora mandou que fizéssemos um diário a respeito de um reality show que um canal de televisão exibia mostrando seus dentes e garras afiadas de besta-fera a capturar o telespectador em busca de audiência. Eu tinha doze e sabia que aquilo era além de estupidez, falta de respeito com a população que grogue não conseguia raciocinar como devia em frente à qualidade das imagens técnicas ostentadas. Então diante daquela professora de Língua portuguesa insana, resolvi não mais pronunciar palavra alguma. Iria ser muda. Queria criar um mundo de mudos. Como o escritor, outro escritor, criou o mundo dos cegos. Mas de imediato percebi que não seria um bom caminho, essa mudez político-filosófico-social. Ao contrário, aí, caí em mim que quanto mais falasse e revelasse o que pensava incomodaria muito mais, sobretudo a quem não tem significado próprio. Dessa forma pus-me a falar até renitentemente. Até que descobri a poesia como forma de comunicar, sobretudo para os mais sensíveis. E de chamar a atenção, mesmo que todos me achassem louca, para o mundo inteiro. Chamar a atenção dos sensíveis, dos insensíveis, dos que desconhecem, dos que não pensam, e fazê-los de uma forma ou de outra pensar, dos másculos, das females, dos cegos, dos surdos, dos especiais, dos professores, dos jornalistas que cuidam de distorcer, ou criar, as notícias, dos políticos, também dos perus dos políticos que acham que são políticos, mas são perus. E os poetas acima de mim. Digamos assim.

Comecei a ler a carta de um desses poetas. O escritor que me desdenhou durante anos, mas depois, ao ler, percebi e senti que não foi desprezo ou escárnio do escritor comigo, simples ex-muda. Vou ler para vocês algumas passagens dessa missiva.

Prezada Regina

Depois de ler todas as cartas que me mandara ao longo desses anos, acho que chegou a hora de retribuir sinceros reconhecimentos que tens por mim. Acho, no entanto que não sou merecedor de tantos adjetivos que me impões de maneira tão docente. Sou um cidadão que ainda não sei quem sou. Vivo preso nas teias de palavras que só são palavras. Não adianta muito se as palavras estão nas bocas sendo pronunciadas sem real significado e sem reverência a mesma palavra (...) No entanto em resposta à sua ultima carta, onde me falou de uma noite sem estrelas e do amor sem ser sentido. Ora, querida Reginae, todo poeta ou quem labuta com as palavras deve sempre levar consigo o amor dentro de si mesmo. Não se assuste ou se retraia se algum dia receberes uma declaração de amor inusitada, de alguém que talvez não conheça direito. Não desdenhe daquela declaração, porque ali está uma semente de transformação do mundo (...). Estou a lhe dizer essas unidades mínimas da comunicação, pois percebo que a dúvida balança seu coração e sua mente. Continue querida Reginae, a colocar no papel toda a sua essência política, sua sensibilidade de poeta. Nunca pare de interagir com outros poetas e escritores. Não andes em desavindo, pelo motivo nobre de alguém lhe ter dito que te amas. Mesmo que esse alguém, como já disse lá em cima, seja um meio desconhecido, por assim dizer...
Aguardo novas letras
Um abraço,

Fernando Calderón

Depois de ler, lembrei-me de outro escritor que andava comentando os meus comentários, as minhas poesias publicadas em periódicos urbanos, on line, e dizendo que me amava. Fiquei fula da vida, para mim só havia amor entre pessoas presentes. Jamais passaria pela minha cabeça de poeta que dessa forma o amor poderia ser disseminado. Realmente acho que se as pessoas dissessem uma para as outras o quanto as amam, muita coisa mudaria. E não seria uma mudança tênue ou sutil, seria uma mudança substancial nas relações e nos sentimentos. Me deu uma vontade danada de escrever ao escritor que dizia que me amava e que morava em outra cidade distante milhares de quilômetros. Veio em minha mente a epístola dos Coríntios e senti o amor dentro de mim. Entendi então aquela razão de postar sempre “eu te amo” nos meus textos e em minhas opiniões. Aquele afeto natural e dionisíaco advindo do escritor virtual e on line. Comecei então a escrever, ou talvez, fazer um esboço de uma carta contemplativa para mandar ao escritor, foi aí que me dei conta que escrever uma carta de amor não é tão fácil quanto parece. Principalmente pela condição e responsabilidade de usar a linguagem simples, objetiva, qualificada e cheia de signos lingüísticos do tamanho do amor condizente e não inundar de catacreses o tema mais belo e puro do universo. Um pensamento então me invadiu por inteira. Se estava galgando escaladas no mundo das Letras, buscando cada vez mais melhorar o estilo do meu trabalho, teria que saber como o amor se apresentava em mim e também nas outras pessoas. A visão das outras pessoas em mim mesma. Isso causou uma enorme confusão dentro do meu eu criativo. E a partir daí que comecei minha carta ao escritor on line que dizia que me amava.

Prezado escritor on line,

Devo dizer-lhe de imediato nessa missiva o quanto fiquei magoada e enraivada com suas palavras de amor instantâneo. Confesso que achei aquilo um absurdo. Nunca concebi que o amor pudesse ser longínquo e imaginativo como o senhor propôs em meus textos e comentários na nave internet. Tive acesso de ódio literato ao ler suas palavras que julgava mentirosas. Garanto-lhe que se fossem no papel aquelas palavras doces e suaves que remeteste para mim, rasgaria no mesmo atmo de segundo com que oxigena seu cérebro para em seguida e com ímpeto de Dom Juan, ou de Dorian Gray, redigir os seus encantos amorosos. Rasgaria com certeza. Contudo ao receber uma carta de outro escritor-pensador e este ao me dizer que o amor tem que ser declarado, disseminado e contagiado como vírus benevolente, mudei subitamente de idéia. Entretanto fiquei reticente para lhe escrever, pois nem mesmo sabia quais vocábulos usar para ratificar e agradecer seu pensamento amoroso. Então confusa e com diversas vertentes amorosas em ebulição dentro de mim. Lembrei-me da minha infância e da minha tentativa em só me comunicar através do pensamento em mudez revolucionária. Percebi então que a mudez não levaria, nem transformaria o que eu precisava transformar. Só com palavras bem ditas ou muito bem escritas que as coisas se aprumam e dessa forma, senhor escritor on line, confesso minha admiração pela sua ousadia e pelo start que dá ao falar de amor para a humanidade...

Reginae

Trocamos cartas durante um ano inteiro, sempre falávamos de amor e ele sempre que achava espaço entre um e outro período sintático dos nossos pensamentos colocava uma expressão amorosa que dizia respeito só a mim, mesmo que os textos caíssem em outras mãos não saberiam o real significado dessas expressões. Uma delas ele colocou ironicamente e ao mesmo tempo para me chamar a refletir. Não direi, pois tenho vergonha de ter criado uma expressão tão nula e que embranquece mais ainda o papel. Por outro lado, quando lhe disse que me envergonhava, ele despertou a expressão como criação minha e que eu não poderia desprezá-la. Relutei e depois percebi que tinha razão. Se eu criara a expressão, tinha mais que fazer uso dela, até porque não seria eu o juiz do meu próprio texto e sim o leitor amigo. Com o tempo passei a imaginar a imagem do escritor on line. Não entendia o motivo de não haver uma foto dele na rede. Sendo ele do outro lado do país, o lado mais pobre, pensei então num sujeito de cabeça grande, feições rudes e voz fanhosa. E ri dele, melhor, da imagem dele que eu mesma criara, e de mim também. Pensei no povo que o rodeava, faminto, sem esperança, cegos de razão e sem conhecimento prévio para reivindicar melhoras. Um escritor daquele quilate sem público leitor e guerreando sozinho para transformar sua gente. Quem o entendia, provavelmente não fazia questão de deixá-lo usar a oralidade das letras. Ele então escrevia, mas quase ninguém lia, ou lia e não entendia, ou lia, entendia e abafava. Como deve sofrer o escritor on line. Dessa forma então, condoída e cheia de amor dentro de mim fiz uma declaração ao escritor pelas linhas da internet. Disse-lhe, entre outras coisas, que o amava também e que havia entendido a função do amor entre os homens. Só que estava triste, sem brios e me sentindo indigna, pois o próprio homem que reclama somente o amor de uma mulher não se volta para o lado para amar o seu semelhante. Pior, às vezes escarnece a palavra de amor que alguém ousa pronunciar sinceramente, como eu fiz com ele mesmo ao ler “eu te amo” em suas mensagens on line. E ele respondeu minha declaração através de uma carta não on line, mas em papel A4 escritas em linhas tortas.

Querida Rainha Regina

Não desdenhe seu próprio eu pelo tempo que passou e não conseguiu então naquele momento entender a razão do meu “eu te amo”. Amo principalmente todos que amam as Letras. Pois sem elas não poderíamos trabalhar ou guerrear como formiguinhas se preparando para o rigoroso inverno. Li uma vez um texto escrito por você mesma em que fazias uma relação metafórica de uma noite sem estrelas e os anacolutos e prosódias, digamos assim, que rodam nossos ouvidos. Ou na descrença que tinhas em amar um desconhecido presencial. Acredito que agora sabes que não é necessária a presença de Sócrates, ou Gandhi para amá-los. Não que eu seja um desses dois. Talvez, pois há muita metafísica no mundo, segundo Alberto. Mas acredito que não sou nenhum dos dois. Soube num terreiro de candomblé que fui degolado por escrever cartas de amor numa comunidade, ou condado lá na alta Idade Média. Escrevia para uma princesa de um castelo, cartas de amigo, amantes que só a nossa cumplicidade distante sabia. E desde então essa passou a ser minha missão toda vez (?) que estivesse vivo aqui na Terra (a interrogação é proposital para as inferências literárias e filosóficas a respeito de nós mesmos e do mundo inteiro). Evidente que você tem uma relação muito próxima das palavras e sei que chega a ouvi-las diferentemente do senso comum, por assim dizer, não que o resto do mundo também nãos as ouça, mas você, eu, whoever (digamos) que trabalhe as Letras de modo sensível e artístico sem ser meramente literatim, transcrição de outrem. Certamente percebe-as como um elemento físico que descobre o metafísico. Portanto Reginae é bom saber que minhas letras de amor estão chegando a você melodiosamente como deveriam ser todas as letras entre todos os povos. Infelizmente sabemos que a guerra é o indício mais forte e presente de incomunicabilidade entre os pares. No entanto longe de nós está a incomunicabilidade.

Do seu prezado escritor on line
Soube depois que mais uma vez que o escritor que me ensinou a amar diretamente com as palavras, sofria de mais um desgaste confuso e político causado pela distorção interpretativa de suas palavras. De alguma forma a imagem da princesa no castelo chegou até a mim desesperada dentro de um inconsciente coletivo. Coletivo e ao mesmo tempo singular e pessoal. Não sabia o que eu tinha a ver com aquele escritor, de repente as coisas começaram a clarear dentro de mim mesma. Me vi num estábulo medieval de gado vacum, eu acho, cobrindo de feno um homem com papeis na mão. Ele ria e chorava ao mesmo tempo. Jurou-me agradecimento ao resto da vida. Na mesma imagem um pouco mais tarde vi alguns soldados o levarem. Acordei subitamente com uma algaravia de urros pré-históricos de prazer sanguinário. E ouvi bem distante... “Sanguinarium!!!”.
Era ele, o escritor on line indignado com sua morte estúpida...

Carlos Vilarinho 05/04/08

Carlos Vilarinho é autor de “A RESTITUIÇÃO DOS ZACHEUS” prêmio CLÉBER ONIAS GUIMARÃES- São Paulo 2006, “O OGRO QUIROMANÍACO” prêmio LETRAS DA BAHIA-UESC-2007, “A GUERRA DE FORMIGAS” autor destaque nacional ALPAS XXI-2007 Cruz Alta-RS. Além de o livro “AS SETE FACES DE SEVERINA CAOLHA & OUTRAS HISTÓRIAS” EGBA-2005.

Um comentário:

Letícia Losekann Coelho disse...

Muito legal, faz pensar! Não gosto de escutar eu te amo, ou ler eu te amo... Prefiro entender o "eu te amo"! Não se entende o eu te amo somente com o olhar... Mas com atitudes, ações...
Mas não considero nem certo nem errado dizer "eu te amo", existem os que gostam de falar outros não! Bom, cada um cada um! kkkkkk
Teu texto está perfeito, vou continuar com minhas leituras atrasadas!
beijos