sábado, 9 de fevereiro de 2008

USURA, PEDERASTIA E CLEMÊNCIA PARA OS NÉSCIOS...



Andava sempre metido em terno preto. Eram dois somente. Um puído e outro menos gasto do que o primeiro para seguir com seu intento. Deu sorte e herdou tudo que tinha. Foi esperto e conseguiu multiplicar tudo que obteve por direito. Contudo, e ao que parece, os meios de multiplicação do patrimônio não foram assim tão lícitos. Cresceu amiúde, vá lá. Mas desde o dia em que a mulher o abandonou com o filho pré-adolescente, dez, onze anos, e saiu dizendo a todos que vira um demônio gordo e fétido que o acompanhava comendo dinheiro. Ele tornou-se membro de uma igreja evangélica. Então começara a terapia sacerdotal e a caridade subjugada, tudo para recuperar a imagem.
_Não sou eu quem vai lhe dá a clemência, Senhor Belmiro... Pois não temos nada em comum, nenhuma discórdia ou alguma contenda travada para que eu lhe conceda clemência...
_Como não? Não é necessário contenda... Nesse caso você funcionará como funcionário divino, mandado por Deus e me descarregará, me tornara livre de tal influência...
_Que influência, Senhor?
_Ora, minha mulher me abandonou há dez anos dizendo a todos por aí que um demônio gordo me acompanhava comendo dinheiro... De lá para cá tenho feito caridades, mas ainda sinto o corpo pesado e sempre vejo vulto me seguindo...
_Senhor, compreenda, a errada em sua história foi a sua mulher que o abandonou, de mais a mais não existe demônio que come dinheiro, isso é invenção do candomblé... O demônio é um só e está em toda a parte...
_Isso não é meio contraditório? Como ele é um só e está em toda parte?
_Ele é o Deus do mal...
_Deus do mal?
_Sim...O que posso lhe sugerir como Pastor e estudante de psicologia é que fique atento aos seus sonhos, eles sempre dizem algo...
O seu trabalho era administrar os bens e os dotes. Era dono de uma vila de casas. Doze casas, todas alugadas num terreno grande e fértil. Muitas plantas medicinais no local: boldo, erva-cidreira, maria-preta entre tantas. Árvores frutíferas em um quintal barrento onde a terra e os animais domésticos viviam em uníssona harmonia. Os inquilinos sorviam-se das árvores, dando-lhes em troca carinho e cuidado.
_Quem ela pensa que é? Aquela terra e aquelas casas são minhas, eu as adquiri, eu as construí com os meus recursos, com as minhas mãos... E agora vem uma fulaninha não sei das quantas para colocar ordem em meu cortiço...Não, se preciso for, crio uma cláusula no contrato para quem usar a terra indevidamente...
_Mas o que é usar a terra indevidamente, meu pai?
_Menino! Se você não se ocupasse tanto em ler essas besteiras que lê, se me ajudasse, não faria uma pergunta dessa...
Discutia à porfia, durante o jantar. Na fala anterior quase se engasgou com o pedaço de abóbora que colocou goela abaixo para em seguida avançar sobre o naco de carne gordurosa e ensebada que boiava na tigela. Olhou raivoso e com usura para o filho que não notou a avareza carnívora do pai. Uma cena muito parecida com a de Perilo Ambrósio, personagem usurário e desumano de João Ubaldo, quando foi expulso de casa pelos pais portugueses em VIVA O POVO BRASILEIRO.
_Eu escolhi estudar literatura, meu pai... É isso que eu quero, faço e pago com o meu trabalho...
_Grande trabalho... Ficar arrumando livro numa biblioteca...
_É um trabalho tão digno quanto o do senhor...
_Não... Por que não quis arrumar os livros da biblioteca da nossa igreja? Além do mais o meu trabalho é cuidar o que vai ser seu um dia...
_Se vai ser meu um dia, então deixe que eu administro a vila...
_Ora, João Batista! Que piada! Você mal saberia lidar com aquela infame que fez uma horta no quintal... Plantou árvores sem o meu consentimento...
_Então é isso que o senhor chama de usar a terra indevidamente?
_Claro! A terra é um lugar sagrado que pertence a um dono… E esse dono sou eu... Eu sou o Moisés daquela terra...
_(em voz baixa) Ramsés, isso sim!
À noite e pela primeira vez o senhor Belmiro sonhou com o demônio comilão. Foi um sonho intercalado, dividido em partes. Como uma câmera cinematográfica alternando o Zoom. Ao mesmo tempo em que o demônio dava-lhe ordens e exigia usura e usurpação dos inquilinos. Na outra cena, ele, o espírito de porco, devorava ferozmente a carne da esposa que fugira num prato em que se misturavam pedaços de seio, joelho e cotovelo com notas de cem reais. Atrás do cérebro estava o Pastor Osório com o indicador o repreendendo e ao mesmo tempo querendo mais dinheiro. Numa nuance conturbada o mesmo Pastor dava-lhe a clemência e depois se transfigurava, convertia-se, no demônio comilão de dinheiro.
_Pastor Osório! Pastor Osório!
_O que foi homem? Está branco!
_O senhor disse para prestar atenção nos sonhos...
_Sim! E o que sonhou?
_Foi horrível, Pastor, foi horrível! O senhor estava lá!
_O Nosso Senhor?
_NÃO! Claro que não! Foi o senhor... Você, Pastor... Você e ele...
_Ele quem, senhor Belmiro?
_O demônio comilão...
_E o que ele queria?
_Ele quer que eu faça algo com os inquilinos e quer dinheiro...
_Senhor Belmiro, sugiro que o senhor faça comigo uma sessão de descarrego... Faço isso coletivamente as terças, mas como o caso do senhor já está explícito...
_Explícito? Como explícito?
_Ora o senhor não está sonhando com a coisa ruim?
_Foi só uma vez...
_Vai sonhar outras e outras e outras... Então farei seu exorcismo particular, o senhor terá que adquirir em minha mão a água benta miraculosa para banhar-se...
_Eu compro.
As sessões de descarrego eram feitas nas manhãs de quarta, quando João Batista, filho de Belmiro, ia para a biblioteca. Ao término o Pastor recomendava sempre descanso ao endomoniado. Era o único dia que os inquilinos tinham folga dos pareceres ambientalista do proprietário e seu pequeno reino.
_E aqueles animais...
_Que animais, meu pai?
_Daquele desfavorecido... Ele cria um papagaio e dois cachorros, aquilo está um inferno, tenho que dar um jeito... O cachorro por pouco não me mordia hoje... Já disse para ele dar fim naqueles bichos...
_Meu pai, os bichos estão atrapalhando a vida na vila? A gente não mora lá e pelo que sei os moradores não se queixam da presença dos animais... Eles gostam...
_Ora, João Batista, não me venha com conceitos para se viver harmoniosamente... O mundo é dos homens...Já houve queixas daqueles animais, acordam, berram, gritam, latem de madrugada... Isso é verdade que já ouvi daqui... Amanhã entregarei os novos contratos, quem não assinar terá que ir embora...
_Isso não é certo...
_Quem sabe o certo sou eu... Ali, ninguém tem para onde ir e minhas cláusulas são essas...
_Isso é um absurdo, meu pai! Você quer acabar com a horta e as árvores que estão plantadas ali... As pessoas que cuidam do lugar, tem árvore ali de décadas... O que quer fazer? Cimentar tudo?
_Talvez coloque cimento, mas com árvore vai ser mais caro e ponto final...
Os momentos que antecediam e o ato do descarrego eram de total fatalidade e horror para Belmiro. Isso sem falar que o Pastor queria receber o pagamento antes da peleja demoníaca. Então toda quarta-feira ele desembrulhava uma caixa que ficava entre o colchão. Contava um bolo de dinheiro e amarrava no elástico. Claro e evidente que o restante voltava à caixa embrulhada e para dentro dos colchões. Um dia antes do início da sessão o Pastor Osório sentiu uma súbita dor de barriga. Correu ao vaso e voltou com uma expressão terrível e com uma vermelhidão pavorosa na face. Naquele dia o senhor Belmiro rezou muito pedindo clemência, mas mesmo assim nos seus sonhos à noite, ele veio. Trazia uma expressão firme, grotesca e de desprezo pela dor humana. Comia dinheiro e entrava num orgasmo prazeroso e fétido. Nessa parte o pavor que tomava o sono de Belmiro ia embora e ele também se refestelava na orgia da abastança. No dia seguinte levou o novo contrato de locação de imóveis aos inquilinos. A maioria assinou sem titubear. Outros não. Entre os que não assinaram, estavam: o dono do papagaio e dos cachorros e a moça da horta e dos arbustos.
_Misericórdia, senhor Belmiro, misericórdia...
_O senhor não pode fazer isso, essas pessoas que assumiram o compromisso não terão como cumprir, todos são pobres e mal tem o que comer, o que pagamos pela casa do senhor é o suficiente...
_Então se preparem, amanhã vou tirar todas as plantas que não foram plantadas por mim... Esse terreno é meu e quem faz as coisas nele sou eu... E ponto final...
_O senhor está nos negando a terra que pagamos para viver, senhor Belmiro?
_A terra me pertence, minha senhora... Não dei autorização a ninguém para plantar nada aqui... Nem cebolinha, nem mastruz, muito menos limoeiro... Também não dei autorização a criar cachorro no meu terreno... Eles cagam tudo, deixam tudo fedido, não quero cães aqui... Nem papagaio, já recebi reclamações a respeito desse bicho, acorda toda a vizinhança de madrugada, quando tudo ainda está escuro... E é verdade, porque eu escuto da minha casa os berros frenéticos desse papagaio...
_Mas os cachorros tomam conta das casas, e a horta e os arbustos novos, foram as crianças que plantaram... O limoeiro, aquele abacateiro que não tem nem um metro ainda... Foi minha filha e as amiguinhas dela que também mora aqui que plantaram...
_Problema... Arrancarei tudo... E não quero animais aqui... O contrato já está em suas mãos, assine ou vá embora...
_Senhor Belmiro, ninguém tem culpa da fuga da sua esposa... O senhor transfere a sua decepção, seu ódio incontido e enrustido pela mulher que lhe abandonou para gente...
_Se assunte, minha senhora... Nunca lhe dei deixa para comentar o que aconteceu ou deixou de acontecer comigo... Quem a senhora pensa que é? E quem é essa “perua do beco” aí ao seu lado? Quem a senhora pensa que é? Ministra do meio-ambiente ou militante do greenpeace
_Sou um inquilino que nunca atrasou nada do que devo, inclusive com relação ao senhor e a sua casa... Pago água e luz muito caro sem atraso... E agora o senhor vem em cima do seu pedestal de proprietário feudal fazer exigências fora de propósito... O que tem minhas plantas, minhas árvores? Elas valorizam seu terreno, enriquecem suas terras... Além de servir de quebra-galho medicinal e de tempero para comida...
Não houve acordo, no outro dia Belmiro arrancou a horta e os arbustos novos. Queimou tudo ao redor e mandou cimentar a terra batida. Dois dias depois do homicídio ambiental e particular, a atrocidade continuou. Acharam ao amanhecer os dois cachorros da vila mortos.




_Você nem sabe, Querido, o velho só pensa em clemência de Deus... Ele mesmo me disse que a mulher o abandonou, fugiu tempos atrás dizendo que via demônios em cima do cara, imagina... Morre de medo, o anciãozinho... Então, Querido, é assim que temos que trabalhar... Em cima do medo de quem tem medo...
_Eu ouvi essa história, tem muito tempo, desde então ele vive assim pedindo clemência, já freqüentou tudo quanto é igreja, e veio parar na nossa...
_Para mim tanto faz, Querido Aderaldo, eu quero é que ele pague a clemência dele em Real bem vivo... Só quero isso, por enquanto vou e mando ele rezar trinta, quarenta orações, depois pego o dinheiro e digo que é para o sacerdócio... Disse a ele que tenho Consentimento Expresso para o Exercício Sacerdotal, disse isso logo quando ele chegou aqui... Aliás, digo isso para todo mundo que chega aqui no desespero querendo clemência e misericórdia de Deus, se colar, colou...
_Ele acreditou, Osório?
_Claro, toda quarta-feira vou fazer o descarrego... Levo a água da torneira lá de casa e digo que está benta pelo Supremo Pastor...
_E você já contou a ele?
_Ao Supremo Pastor? Claro, ele sabe de tudo, cada um defende o seu, não é esse o lema? Se houver demônio ele que se arranje...
_E se houver demônio realmente?
_Ele está acreditando nisso piamente... Veja, teve um dia que eu forjei uma dor de barriga e fui ao banheiro, lá eu me maquiei todo com um pó vermelho, daqueles que o Supremo Pastor usa para impressionar quando finge estar tirando demônio do corpo de um de nós, voltei com horror na face e comecei a sessão, apavorei o homem... Outro dia me disse que sonhou comigo junto com o tal demônio, disse-lhe que isso fazia parte do exorcismo... Quer saber? Ele merece mais do que isso... O que ele faz com os inquilinos dele, é pouco para o que ele sofre em minha mão, se depender de mim ele nunca terá clemência... Nunca. Agora vamos deixar de conversa fiada e me beija, vai, amor...




_Você soube o que houve na vila do pai de João Batista?
_Os cachorros comeram veneno, não foi?
_Não foi só isso não, houve um princípio de incêndio... O pai dele, o velho Belmiro, tocou fogo nas árvores... Menina! Parece que o velho está maluco, depois de tudo, com o fogo e as labaredas querendo engolir a vila inteira, ele se ajoelhou implorando clemência... Foram chamar o Pastor que dizem que fazia descarrego na casa dele e o desgraçado pulou fora... Dizem que o velho paga uma fortuna para ele...
_Aquele Pastor? O Osório? Aquilo é uma bicha, Menina...
_O Pastor?
_Por que o espanto? Ouvi dizer que aquilo é uma orgia só... Ele tenta se esconder dentro da doutrina e dos dogmas religiosos, estuda psicologia e todo mundo na faculdade sabe da viadagem dele...Bichona enrustida, isso sim! Aliás, nem sei mais como se conceitua “igreja”... É um jogo de poder sórdido e hipócrita... Um absurdo, mas a religião é usada, manipulada por vaidade, para aparecer bem no conceito público e por trás daquele véu negro e fedorento estão as piores coisas... Preconceito, pederastia, desejo e vontade da carne... Há casos em que a tal caridade cristã é escolhida, sabia? Eles escolhem quem deve receber as caridades, as doações... O lugar que seria para purificar, renovar energia, serve até para lavagem de dinheiro, além de crimes que não se deve falar...
_Eu também já ouvi dizer... Inclusive tem até homicídio no meio... Uma história mal-contada, segundo dizem, que um garoto flagrou dois pastores em sexo oral e saiu desesperado gritando assustado...
_O tal garoto que encontraram morto um dia depois..._Isso mesmo! Eu só acredito em Deus... Faço minhas orações em casa sozinha, peço e mesmo assim me conformo com o que tenho... Igreja? São todas da mesma laia...
_Pois é! Com tudo isso só tenho pena do pobre do João Batista...
_Que pena! Perdeu o emprego por causa da arrogância e tirania do pai...
_O que o pai dele tem a ver com isso?
_O dono dos cachorros que amanheceram envenenados e mortos é irmão da diretora daqui, da biblioteca... Ele, o João Batista, tinha indicado a casa da vila para o rapaz, um favor que fez à diretora... Mas o que se sabe é que o pai, o velho Belmiro, não gostou que o filho intercedesse quando soube de que se tratava de alguém daqui da biblioteca, em favor da diretora... O velho nunca gostou da biblioteca, nem de livros, nem de leituras... João Batista deve ter saído à mãe, então... O velho vivia criticando até mesmo o curso de literatura do João Batista e segundo soube, antes do iminente incêndio, houve uma discussão e a diretora estava lá, pois tinha ido visitar o irmão e ao que me consta o velho a desrespeitou chamando-a de “perua do beco”...
_ Menina, que barraco, hein? Quem não tinha nada a ver com o peixe, foi quem pagou o pato! Misericórdia, Pai... Clemência para esse povo!



Alternadamente.
Uma quarta-feira o Pastor Osório faz o descarrego de Belmiro. Na outra quarta quem vai é o Pastor Aderaldo...

Carlos Vilarinho

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