sábado, 9 de fevereiro de 2008

O HOMEM QUE NÃO QUERIA MORRER


Deitado em sua cama, enfermo e moribundo. Mais tarde em coma. Fausto declinava em sua mente a idéia da morte iminente. Fazia a eterna reflexão dos quase mortos e muxoxava a cada dez minutos. Entre os espaços dos muxoxos grunhia e falava para si mesmo e imperceptivelmente para a mulher que assustada e incrédula com a partida do marido rezava sem parar. Fausto reclamava das orações, não se entregava para extrema-unção. Havia ainda de escrever um livro sobre tudo que vira em sua vida e para isso demandava tempo, talvez mais um ano. Fausto lembrou-se como matara um comunista na alta ditadura. A sangue-frio, olhando nos olhos do miserável. Atirou primeiro no joelho estraçalhando-o e deteve-se observando a dor e o sofrimento do stalinista. Isso durante uns quarenta minutos, até o comuna se acostumar com a dor e dizer-lhe mais impropérios. Em seguida, colocou-o com a bunda para cima e fez quatro soldados seviciá-lo, para depois capá-lo. E derradeiramente, depois de horas de atrocidades em nome da pátria amada, dizimou-o despachando o militante revolucionário para o inferno das almas, segundo ele próprio. Talvez essa fosse a lembrança mais marcante de Fausto. Foi a sua primeira vítima, logo que foi alçado a condição de capitão. Não teve calafrios ou remorsos. Nem tampouco lembranças da face estarrecida de dor do sujeito que teimava em cantar a internacional até morrer. Em contrapartida quando a ditadura acabou o exército tirou-lhe todas as honrarias quando pela quinta vez insistiu em denegrir o general César, no quinto ano consecutivo durante o desfile de sete de setembro. Durante os cinco anos, Fausto bradava com todos pulmões e num paroxismo exagerado que o general César era um homossexual desclassificado e pedófilo. Durante a marcha em revista. Dessa forma, Fausto explicava a senhora Morte, dona de um perfil soturno, funesto e esquelético, que ela não poderia levá-lo a cabo naquele momento. Não que ele estivesse com medo ou receoso de encontrar o Cão dos infernos, não era nada disso. Até porque ele se considerava tão ruim quanto o desgraçado das sombras. Mas Fausto queria registrar sua vida para aqueles que ficavam.
_Basta de asneiras, Fausto! Você é agora nesse momento o homem que deve morrer e ponto final... São ordens.
_Ordens de quem? Posso saber? E por quê cantas?
_Você só saberá depois que fizer a passagem... Vamos logo com isso, vim te buscar e tenho pressa, mais tarde tenho outro encontro com um escritor lá na Bahia...
_Ora, a senhora bem sabe que não é assim que se trata o algoz da humanidade, eu vim ao mundo para matar e dar-lhe serviço, não para ser levado às pressas por quem propriamente me incumbiu da missão.
_Aquele trato nosso já faz muito tempo, você já morreu e já nasceu de novo e nunca me deu tanto trabalho para levá-lo como agora. Além do mais essa vida sua que agora se esgota foi lhe dada para a sua remissão o que de nada adiantou...
_Quem é ruim sempre será ruim, Morte, você sabe disso melhor que ninguém... Que música renitente!
_Ora, vamos, Fausto, lá você terá muito tempo para lenitivos e arrependimentos...
_Não, jamais me arrependerei, nem preciso de descanso ou alívio... Preciso de tempo para as minhas memórias...
_E para mim urge o tempo para vim buscar os meus, os do Cão... Você teve setenta e seis anos para se recuperar e não me ver mais, se isso acontecesse não seria eu que estaria aqui e sim um anjo torto.
_Se assunte, Morte desnaturada, por acaso eu tenho semblante ou perfil de quem precise de anjo? Ainda por cima torto. Não, Morte, mesmo que para você e para o cão aqui seja um mundinho besta e repetitivo, onde os homens afadigam-se por asneiras e coisas minúsculas, eu tenho cá comigo que esse mundo dos vivos ainda deseja o meu corpo e minha mente, principalmente a minha mente, permeando os caminhos verdes do universo em harmonia...
_Ora, Fausto, tanta bobagem e tolice sai de sua boca... Está dado à poesia agora na hora da morte? Você nunca foi sensível a verde, nem a universo algum, nem mesmo em harmonia como inventas... É bem verdade que o universo dá a chance, mas jamais ele está em harmonia... Deu-se agora para acreditar também em Deus, Fausto?
_Sabes que nunca fui dado a essas tolices, invenção dos fortes para colocar medo e enfraquecer mais os fracos... Crendices que não levam a nada... O Cão existe sim, ele está aqui comigo travestido de morte e quer se alimentar de tudo que eu sei... Mas não lhe dou miserável, não sem antes escrever ao mundo o grande homem que fui...
_Agora entrou no delírio. Você nunca foi um homem de letras, qual o motivo agora de juntar letrinhas para leituras? Vai colocar todo o sangue que derramou no seu livro?
_Não derramei sangue em vão, Morte, fizemos um pacto antes de eu nascer, combinamos que eu mataria os mais importantes e que lhe daria, talvez só bastasse um, mas como saber qual era aquele um que saciaria de uma vez só seu apetite sanguinário? Na primeira vez, quando matei aquele desgraçado comunista, senti um gosto amargo seguido de êxtase e clímax, quase que sexual, não consegui parar mais de matar.
_O combinado não foi nessa vida, Fausto. Você veio para cá dessa vez para se redimir como já disse... Esqueceu o choro que tiveste antes de nascer? Pedindo perdão ao seu universo em harmonia? Ele é generoso, eu e o Cão, não... Ele lhe deu a oportunidade, aliás, o universo é tão bobo que concede oportunidades a todos, mas você já estava arraigado no sangue alheio, onde sentia cheiro de tragédia, morte e traição, você se apresentava... Então de posse dessa certeza marginal e perversa que lhe absorvia, você próprio tinha conhecimento que jamais ia se recuperar para ser homem bom... Você já nasce, Fausto, pensando em perversidade, assim como você, talvez mais da metade da população não preste, de uma forma ou de outra, o homem vem ao mundo pensando em prejudicar seu semelhante e por isso o Cão não desaparece, porque o homem não quer...
_O Cão não desaparece porque é ele quem comanda as ações, mas a mim ele não vai comandar, eu não posso, e não quero morrer agora, simplesmente porque o Cão ordenou você vir me buscar, não foi dele as ordens? E, por gentileza, pare com essa sinfonia...
_Quanto mais você se espernear, mais a sua doença se agrava, você não tem saída, está todo podre por dentro e sob efeito de remédio para não sentir dor, contudo se você preferir, poderá ficar mais um pouco, mas saiba que os remédios não vão conseguir aplacar sua dor... Está escrito que você terá que sentir pelo menos a metade da dor de todas as pessoas que matou e fez sofrer... Isso não são ordens do Cão, foi você que assim quis quando nasceu e combinou com o seu universo em harmonia... Não lembra, não é? Claro que não, você prometeu uma coisa e se não seguisse o prometido com o universo morreria novamente na penúria e assim o fez, continuou fazendo o que sempre quis, fartando-se de sangue alheio e inocente... A sua índole, Fausto, é suja e você é desprezível.
_Ora, vejam só! Vejam só quem fala que sou desprezível.
_Achas então que é um homem de valores?
_Evidente que sim.
_Para o seu universo em harmonia, homem de valor não tira a vida de outro.
_Ora, matei quem devia morrer, só isso.
_Tem certeza?
_Claro.
_Por que então não matou o general César?
_Não tive oportunidade.
_Teve sim, não matou porque achava que ele era mais poderoso do que você. E ele é mesmo. Apesar da reles viadagem, o general César consumiu sua força e desde ali você começou a sentir dor, não foi?
_Que dor?
_A dor moral, Fausto.
_Que moral? Nunca tive moral, nem ética, nem nada... E agora você sai das trevas para vir me falar dessas asneiras...
_Achava que não tinha porque sempre passou por cima dos outros, desrespeitando-lhes, quando você passou a ser o perseguido e desrespeitado sentiu o que era isso... Sentiu tanto que foi definhando até ficar aí onde está agora se debatendo querendo sofrer mais... E vai sofrer, Fausto, seu ciclo de oportunidades finda-se aqui, suas próximas vidas serão de agruras, dissabores, aflições e sofrimentos e mesmo assim, ao que parece, você continuará ruim e perverso como sempre foi...
_Ora, veja lá com quem você fala, Morte dos infernos, sou o capitão Fausto do sétimo regimento de cavalaria do exército da república do Brasil, veja lá, Morte e alto lá...
_Você tem poucos minutos, Fausto, é melhor acordar e se despedir daquela pobre mulher orando desesperada por você, mas em vão, o universo não irá ouvi-la... Você ainda tem quem ore por você, miserável, ainda que seja só uma pessoa, porque o resto do mundo lhe odeia, até seus filhos...
_Meus filhos?
_Sim, seus filhos.
_Você deve estar enganada, Morte, só tenho um filho...
_Você é que está enganado.
_Tenho um filho chamado Dante, em homenagem ao poeta italiano criador do inferno humano, tá vendo? Dizes que não conheço as letras, mas conheço os autores, sim senhor...
_E Paulo?
_Não tenho filho chamado Paulo.
_Você me disse há pouco que matou quem deveria morrer...
_Isso mesmo...
_Seu filho então devia morrer?
_Meu filho é um desnaturado, chama-se Dante, já lhe disse... Me abandonou quando soube que eu fazia aqueles servicinhos para o exército, você sabe...
_Para o exército e para sua alma enlameada...
_Que seja, mas para mim ele morreu mesmo, não mora mais comigo e sequer vem ver a mãe, queria levá-la com ele, eu não deixei.
_Você não conhece Paulo?
_Nunca conheci um Paulo na minha vida.
_Disse-lhe há pouco, Fausto, que bastaria uma morte para cumprir a sua missão, você não lembra mas você fez um acerto com o universo em harmonia e logo em seguida antes de nascer fez outro acerto comigo e com o Cão. Disse-lhe na oportunidade que você não teria coragem de nos mandar seu próprio filho, você retrucou e garantiu que nos mandaria e com requintes de perversidade. Confesso que nem eu, nem o Cão acreditamos muito, mas como se tratava de uma alma de natureza enfumaçada e baixa, ficamos à espera... Para nossa surpresa você cumpriu com o combinado, estávamos quites, você matou todas essas pessoas que agora aparecem atrás de mim e que estão lhe esperando, por conta própria. Bastava aquela primeira morte, Fausto, lembra? Aqui está ele, seu filho Paulo... O filho que você deixou a mingua por que a mãe dele era uma empregada doméstica... Marlene, assim ela chamava-se... Marlene encantou-se por você ao vê-lo pela primeira vez na casa de sua vó, desde então você passou a cortejá-la, quando seu pai descobriu e deu uma surra nela acusando-a de sedução... Mas foi você quem a seduziu, Fausto... Antes de ser abandonada, Marlene revelou que esperava um filho seu, você deu as costas, chamando-a de puta-mentirosa para ganhar créditos com seu pai... Ela pariu Paulo, o filho que você estraçalhou o joelho e mandou que os soldados o currassem, Lembra? Claro que lembra... Este é seu filho, Fausto, que você nos presenteou com requintes de perversidade, prepare-se porque ele também vai acertar as contas com você...
A morte levantou-se da cadeira e numa espécie de respiração inflada passou de um semblante esquelético e frágil para um musculoso e terrificante degolador cortando-o ao meio. O intestino, os miúdos e outros órgãos podres e fétidos voaram pelos cantos do quarto. A mulher que orava sentiu o último suspiro do algoz da humanidade, não chorou, não disse nada. Respirou aliviada.
Paradoxalmente à vontade do miserável, a Morte percebia regozijada e zombeteira num quase gozo devasso ao alívio da mulher que orava numa insistência misericordiosa. Junto ao alívio, veio a perplexidade e um cheiro de enxofre. De repente, admirada e irresoluta, adquiriu um riso irônico e perverso agora a contornar-lhe o rosto. Gargalhou ao ouvir a sinfonia que invadia a atmosfera fúnebre.
“TODOS OS HOMENS DEVEM MORRER” de Bach.

Carlos Vilarinho
Autor de "AS SETE FACES DE SEVERINA CAOLHA & OUTRAS HISTÓRIAS" (funceb 2005), "A RESTITUIÇÃO DOS ZACHEUS" entre ourtros.

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