terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

FESTA PAPA-LARES- de Luiz Britto

As festas populares, na Bahia, pelo seu gigantismo e absurdo, acabaram passando de festas populares para festas papa-lares. Importunam moradores, desrespeitam direitos constituídos, invadem propriedades, criam transtornos variados, tornam privadas as áreas públicas, tornam-se exemplos insuportáveis de poluição sonora e ambiental — e isso para gáudio de alguns, lucros astronômicos de uns poucos, e a ganância da Prefeitura, sempre falida e sempre pronta pra novos saques. Ao invés de se portar como o fiel da balança, um elemento confiável e regulador, justo, soberano, guardião da lei e da ordem, dos direitos dos seus súditos, mostra-se na sua face mais adversa e cruel. A de criadora e fomentadora de males, a permitir um verdadeiro exército de invasão, a ocupação maciça e atrabiliária de boa parte da cidade, com prejuízos e aborrecimentos para os mais fracos e indefesos.
De pequenas e limitadas festas de pescadores, ingênuas devoções populares, manifestações razoáveis de regozijo carnavalesco, chegamos aos mastodontes dos tempos atuais. Ainda há pouco tempo nada menos que 70 trios elétricos faziam fila para participar da Festa do Bonfim — ou seja, infernizar uma imensa área populacional em volta da igreja, doa a quem doer. E isso foi se repetindo na Pituba, Rio Vermelho, Itapoan. Todas as antigas e ingênuas devoções populares, católicas ou do candomblé, ganharam um vulto grotesco de festa profana, exploradas pela mídia, pelas agências de turismo, hotéis, distribuidoras de cerveja, donos de trios elétricos, bandas, chancelas oficiais, demagogia dos políticos & quejandos.
Nenhuma festa popular, porém, ganhou o gigantismo do Carnaval. Nunca os lucros foram maiores, e também nunca foi maior o incômodo a terceiros. Nem todo mundo é rico, tem casa de campo, parentes no interior, residências de veraneio. Nem todo mundo quer sair ou pode sair do seu canto. E, no entanto, tem que aturar — se mora na Barra — nada menos que 7 dias de folia, zoada, transtorno. Se há alguém doente, não há como sair de casa. Não há como uma ambulância chegar a certas ruas. A zoada ensurdecedora, de imensos Boeings levantando vôo, desses trios elétricos, está aí, a dois passos de sua casa, a dois passos do Hospital Espanhol.
Antes, já houve uns exames mentirosos, umas multinhas ridículas para os infratores, uma tentativa canhestra de se regular a altura do som dos trios elétricos. Depois, isso caiu por terra. O dinheiro, a ganância, sempre falam mais alto. Nossa Prefeitura nanica acabou desistindo do seu papel ridículo, deixou a água rolar. Seja o que Deus quiser. A velha lei da Bahia: os incomodados que se mudem. Quem não agüentar, fuja, vá pra longe.
Os passeios estão tomados, as ruas, avenidas, hotéis cheios, vem gente do interior, de todas as periferias, navios e aviões estão chegando, despejando mais e mais carnavalescos. A excitação vai ser grande. Segundo os cânones da Bahia, festa é sinônimo de zoada. Se não há zoada, bastante zoada, a maior zoada possível e imaginável, não há alegria e nem felicidade. E, então, tome zoada e tome bagunça — o nosso lema eterno, a “ordem e progresso” de nossa bandeira particular, a bandeira que rege esse pequeno burgo. Salvador ou, melhor, a Barra.
Mas, quem quer sambar, sambe — mas quem não quer? Não teria direito a uma indenização, por ser forçado a abandonar seu lar, contratar seguranças e caseiros? Isso não se pensa. E aí está o outro lado, e perverso, da moeda.
A irresponsabilidade civil da Prefeitura, dos que se locupletam com o esbulho dos direitos alheios, direitos sagrados de bem-estar, conforto e segurança, vilipendiados nesses 7 dias de guerra civil não-declarada, que é o Carnaval da Bahia.
Quem duvidar, venha assistir.




Demais crônicas de Luiz Britto no arquivo Crônicas do site http://www.bahiapress.com.br/

sábado, 21 de fevereiro de 2009

CARNAVAL-2009 de Carlos Vilarinho

Podexá que eu vou,
Subir a ladeira aos empurrão, dotô.
Podexá.
Dêxa que sirvo
Corda, cuspe, indiferença e aluá.
Ah, eu vou sim,
Rasgar abadá de cetim
Murro embaixo, murro em cima,
Zanzando, pulando, exu querubim.
De antemão lhe digo
Venha cassetete, cuzão, fardado chinfrim.
Ah, eu vou fudê sem fim.
Loura, trançado enganado,
Cabocla de beijo molhado,
Enfezado.
Neguinha quente, beiço, cabelo
Volta em branco tostado.
Tomaram minha avenida,
Tem nada não,
Choque de nariz na mão.
Festa de povo, não.
Festa de homem quebrão.
O jegue, o povo, o cartaz...
Foda-se, foda-se, foda-se”
Nu em cima do caminhão,
Se fosse Zé. O camburão.
Venha e medite no Farol,
A orixá turvará seu sol.
Ou o asfalto negro
E as águas revoltas
Salgadas em brumas
Vão corroer seu sorriso, sua alma,
Seu bolso corrupto...

sábado de carnaval 21/02/09
Carlos Vilarinho

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

TODOS OS ANIMAIS SÃO IGUAIS- Jackson Vasconcelos

“Agora vou mudar minha conduta. Eu vou pra luta, pois eu quero me aprumar (...). Pois esta vida não está sopa. E eu pergunto, com que roupa, eu vou. Com que roupa, eu vou. Pro samba que você me convidou? Agora eu não ando mais fagueiro, pois o dinheiro não é fácil de ganhar. Mesmo eu sendo um cabra trapaceiro, não consigo ter nem pra gastar (...). Já estou coberto de farrapo. Eu vou acabar ficando nu. Meu paletó virou estopa e eu nem sei mais com que roupa...” Quando vi as cenas do encontro que houve entre o Presidente da República e os prefeitos no início da semana, pensei se o samba de Noel não teria feito boa presença. Pelo menos teria quebrado um pouco o clima deprimente. Gente eleita para dirigir com dignidade os seus municípios foi colocada como gado em estábulos apertados, para ouvir e, obrigatoriamente aplaudir, a produção sempre trôpega do presidente da república, com a única intenção de obter dele um pequeno quinhão do botim presidencial. O Presidente, como sempre, não fez por menos. Desancou a imprensa, o Ministério Público, o Poder Judiciário, enfim, todas as instituições e pessoas que não gostam que ele faça do dinheiro público o uso que faz do papel que tem em seus banheiros. Lula , quase sempre me lembra o porco Major e, por isso, senti falta em suas palavras aos prefeitos de pelo menos dois dos sete mandamentos proferidos pelo líder da Revolução dos Bichos: “Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo... “Todos os animais são iguais”.



*Jackson Vasconcelos é editor do site www.estrategiaeconsultoria.com.br e cronista político desse blog

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

ANGÚSTIA de Manuel Jorge

Ensinamentos.

De que me servem?

Nada me dizem.

Apenas aprendizados de alguém.

Não me dizem respeito.

Nem me serve

a erudição:

enciclopédia de letras douradas,

que não conhece o chão duro que piso.

Não. Não preciso da ostentação beletrista.

Nem do texto enxuto,

nem da consciência da forma.

Não, não preciso.

Nem preciso escrever.

Nem preciso viver.

Não. Deixem-me em paz.

Eu não preciso de nada.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

FODA-SE A UNIVERSIDADE- de Geraldo Maia

Odeio a universidade pós pó
Com maçanetas quânticas e quasars caretas
Parece um museu de títulos abastecido de abismos
Odeio a universidade corta mente
Com suas salas de tortura mergulhadas
Em formol indigente
Parecem pocilgas numa escuridão
Privada
Ou latas de pântano aos gritos
Morte à universidade e seu cabelo de pátina
Sua fieira de miolos castrados
Asas em conta-gotas
e professores de moscas
Confessos réus de uma fornada de inválidos
Banidos dos processos de universo
professam uma moto-serra de cátedra
A universidade é um tiro no anacoluto
com seus escravinhos orientandos
empalhados por um sodomita
graduado em GEDs
que curte fraque de anis e
toga de alcaçuz
Foda-se a universidade com seus
carcereiros titulados
Suas orgias de parvos
Sua sede de pascácios
Foda-se o doutor de ausências
O phd ilha
O mestre de repetição e obediência
Odeio vocês incapazes de beijos desnudos
Com seus inúteis diplomas de plasma
Suas placas de náusea
com genomas mecatrônicos
Odeio a universidade e sua aridez atômica
Sua preguiça atávica
de pensar em cima do muro
Odeio sua crônica descerebrada
de copiar o fracasso obsoleto
e defasado dos doutos
desimportados
Odeio sua estúpida mania de odiar
tudo que não lhe é rastro exato
É preciso odiar essa fábrica de
universiotários de plástico
Sob as tentações cristantans
do barato saco
E que depois de muita
muita aposta
no co-sexo curto
Prepara mais um surto
De ignorância chapada


grato,
abraço,
Geraldo Maia, poeta da praça das antigas...

domingo, 8 de fevereiro de 2009

DESVIVÊNCIA- de Adanilde Duarte

Eu preciso aprender que as grandes coisas nascem do silêncio.

Eu preciso ganhar batalhas porém meu exército tem sido fraco.

Eu preciso acreditar que a primavera existe e que o sol resplandece após dias de chuva.

Eu ainda não sei viver, preciso aprender como se vive.

Preciso aprender a respirar e creio que respirar seja mais do que um ato inconsciente.

Eu que fui forte, desaprendi como se vive.

Ainda procuro entender mesmo sabendo que não é preciso entender para viver.

Acontece que desvivi. Se respirar é viver então desvivi.

Desvivi e prossigo desvivendo até eu lembrar como se vive novamente.

Parece loucura mas ainda escrevo algumas palavras. Elas juntam-se num fim de tarde ou numa noite mal dormida. Ainda escrevo. Se escrevo tenho esperança.

Os dias voam e sinto uma doce alegria ao fim de cada um deles porém a desvivência permanece.

Talvez seja necessário desviver para viver. É como as grandes coisas que nascem do silêncio.

É como passar um dia cinza ao lado de quem se ama.

A desvivência é necessária. Viver a desvivência é procurar todo o tempo. Procurando tento viver. Pena que ainda não achei. Mas como vou achar sendo que nem sei o que procuro? Procuro viver. Mas desviver não é deixar de viver, afinal eu não morri. Não compreendo, somente sigo.



Adanilde Duarte de Lima escritora mineira– 16-11-2008

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

LOUCURA- de Bruno Resende Ramos

Loucura é esperar a procura
Acreditar governos
Beber água de chuva
Gritar por silêncio
Chorar durante uma novelas ou filme
Crer a morte do ator,
Não ver a morte nas ruas.
É o duplo sentido das urnas
Pedir que te peçam desculpas
Pesar o feijão e não medir a fome
Ser patriota por um discurso
Gritar direitos
Esperar esperanças
Crer no amanhã de sempre
Ou no estatuto da criança e do adolescente.
Loucura é o futuro que vira presente
Quem o explica achar que o entende.
Loucura é não se achar louco

Fonte: Momentos Diversos. Editora UFV 2006


Bruno Resende Ramos é escritor de Viçosa-Minas Gerais

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

O SEGREDO DA FÉ- de Carlos Soares

Quando criança, havia lá no bairro um senhor chamado Bemvindo. Mentirooooso! Dizia que já tinha lutado com onça e ainda mostrava os arranhões. Que já havia segurado uma sucuri na mão. Eu nem sabia o que era sucuri direito, sabia que era uma cobra perigosa, nada mais. Que rolou num barranco com uma criatura que nem sabia o que era. Ele tinha certeza que acertou o tiro quando a fera corria, pois jamais errara um tiro, mas a bala não lhe fez nada. Um dia contou que tinha visto um objeto estranho brilhando no céu quando se barbeava no quintal. Eu falei: “Será que não era sua careca refletindo no espelho?”. A molecada riu. Ele, brincando, me deu um cascudo de leve: “Me respeita, menino”. Hoje penso que ele só gostava mesmo de ficar fantasiando essas coisas para as crianças e se divertia, e nós também. Mesmo sabendo que eram mentiras, dávamos o tema indiretamente só pra ele começar. Ele pegava no ar. Era normal alguém dizer: “Vamos lá no Bemvindo ouvir umas mentirinhas?”. Quando ele morreu um menino disse: “Você sabia que o Bemvindo morreu?”. Alguém respondeu: “Mentira!”. Mas gostava de contar casos também, bem à mineira. Um dia ele contou esse... sobre a fé.
Um viajante, exausto por cavalgar por vários dias, avistou uma belíssima fazenda e resolveu pedir pousada. Chegou à porteira, bateu palmas várias vezes, até que um senhor que parecia ser o dono, não só pelos trajes, mas também pelo mau humor, foi atender. Sim, pelo mau humor, porque só os chefes têm direito de ter mau humor. “Pois não”, disse com cara de poucos amigos. Ele tirou o chapéu. “Boa tarde. Senhor, estou cansado, cavalgando por mais de uma semana, tenho fome e sede. Preciso de um banho, um prato de comida e umas horas de sono. Não agüento mais um minuto em cima desse cavalo. Prometo que amanhã parto cedo”. O fazendeiro respondeu: “Sinto muito. Acho que não posso ajudar. O senhor não veio num bom momento. Minha melhor vaca está para parir... e vai morrer. Já recusei proposta alta por ela e hoje pagaria o que recusei, para salvá-la. O estranho perguntou: “O senhor tem fé?”. “Como assim? Claro que tenho fé. E o que tem a ver uma coisa com a outra?”. Ele respondeu: “É que sou um rezador, conheço orações poderosas e estou certo de que posso salvar sua vaca”. O fazendeiro se enfureceu: “Olha aqui, forasteiro. Se pensa que tem bobo aqui e quer me enrolar em troca de pernoite, o senhor pode dar meia volta”. Meio assustado, segurou as rédeas, mas insistiu: “Calma, vou embora. Mas pense bem... o senhor tem escolha? O que custa me deixar tentar? Se a vaca morrer, além dela, só vai perder um prato de comida, o que não é nada para quem tem uma fazenda tão grande”. O fazendeiro coçou o queixo, a cabeça e disse: “O senhor espere um pouco aí”. Foi lá dentro, falou com a mulher e filhos e voltou cinco minutos depois. “O senhor tem razão. Não tenho muita escolha e resolvi lhe dar um crédito de confiança. O senhor pode apear e entrar”. Descendo do cavalo, foi logo falando: “Mas é preciso ter fé”. Passando a porteira, pediu: “Se não se incomoda poderia arrumar um pouco de feno e água pro cavalo?”. O empregado que ouvia, providenciou logo. Chegando na sala, cumprimentou a todos, discretamente é claro, pelo clima de velório. Depois de tomar água perguntou: “Onde está a vaca?”. “Me acompanhe”, disse o dono. Toda a família foi junto. Chegando no celeiro, lá estava a pobre vaca agonizando. Não tinha mesmo muitas horas de vida. Ele pediu: “Preciso de um pedaço de pano, tesoura, agulha e linha. E também um pedaço de papel e uma caneta”. De imediato o homem falou: “Vamos logo, mulher. O que está esperando?”. Rapidinho ela foi e voltou com o material. O estranho sentou, escreveu algumas linhas, dobrou o papel, colocou num saquinho que fez com o pano, e costurou a boca do mesmo. Depois de pendurar o tal saquinho no pescoço da vaca, pediu licença: “Agora gostaria que saíssem, pois tenho uns rituais e preciso ficar sozinho”. Prontamente atendido. Ficou lá dentro uns dez minutos e saiu: “Bem, agora é esperar. Mas é preciso ter fé. Se não se importa gostaria de tomar um banho, comer um pouco e dormir, pois parto antes que o galo cante. Atendido. Tomou um longo banho, comeu como um rei e dormiu. Partiu tão cedo que ninguém o viu.
No raiar do dia, ouviu-se um grito: “Pai, pai. A Estrela pariu e está salva. Ela está boa. Corre pai”. Todos se levantaram às pressas, mal vestiram as roupas, se acotovelaram para entrar no celeiro. Lá estava Estrela. Bela e imponente como sempre, branquinha, cheia de manchas pretas, sendo uma no meio da testa, lambendo, dando os primeiros tratos de carinho ao seu bebê. “Que maravilha”, um falou. “É um milagre”, exclamou outro. O fazendeiro abraçou a vaca: “Como eu gostaria de pagar àquele moço pelo que fez, mas como não posso, que Deus o acompanhe sempre”.
A partir dali, todas as mulheres grávidas da região, principalmente as que tinham complicações, pendurava o saquinho no pescoço e os partos corriam normais. Até mesmo quem não tinha complicações, usava, só de precaução. O saquinho milagroso ganhou fama mais e mais. “Engravidou? Manda buscar o saquinho”. Andavam léguas e léguas com ele. Porém saquinho pra lá, saquinho pra cá, saquinho viaja, saquinho volta, saquinho ganha beijo... com o tempo foi estragando, abrindo, rasgando, até começar a aparecer a ponta do papel. Pois um curioso, sempre tem que ter um curioso, quis ler a poderosa oração.
E leu. Eis a milagrosa oração: “Tendo água e capim pro meu cavalo. Cama e comida para mim, quem pariu, pariu. Quem não pariu, vá pra puta que pariu”. Ou seja. Era a fé daquelas pessoas que salvavam suas vacas, suas cabritas... e suas mulheres. Não um pedaço de papel contendo uma baboseira. Independente se o forasteiro queria apenas dormir e comer e não estava nem aí para a vaca, ele acabou dando a eles um bom conselho: “É preciso ter fé!”.
Esse texto cabe muitas interpretações, religiosas, filosóficas e até de humor, as idéias são livres e respeito, mas eu me centralizo em uma: A fé é uma coisa muito pessoal.
Desculpem pelo palavrão, mas não tinha outro jeito de contar sem perder o sentido.

Carlos Soares de Oliveira escritor de Governador Valadares-MG

domingo, 1 de fevereiro de 2009

CORES- de Nelson Maca

- Poema dedicado totalmente à Negra Íris*,
Parceirinha 100% e talento nato.
Vocês irão ouvir falar muito dela!!



Entre escárnios
Já fui chamado negro sujo
Entre afagos
Já disseram que não sou tão preto

Que sou mestiço, escuro, cor de azeitona, acobreado
As dezenas de palavras que me apagam

Eu sou breu da cor da noite
Eu sou piche da cor do asfalto

Entre escárnios
Já fui chamado branca de neve
Entre afagos
Já disseram que sou um deus negro

Que sou marrom, cor de café, achocolatado
Todas as cores que contornam os limites

Eu sou noite ébano azeviche
Eu sou lápis risco preto sou grafite

Entre escárnios
Já fui chamado de negão
Entre afagos
Já disseram que a minha alma é branca

Cores do racismo do escravismo e do degredo
Da inegável negação que me revestem

Eu sou carvão, pano de guarda-chuva
Ausência das cores que não me fazem sentido

Entre escárnios
Já fui chamado africano
Entre afagos
Já disseram que sou um belo cabo verde



:: Poema do livro Gramática da Ira,
orgulhosamente na gaveta!
-

Nelson Maca / Blackitude B.a