sábado, 27 de junho de 2009

TRÊS TIROS NUMA HISTÓRIA DE AMOR

_Lá pelo começo do século XIX, houve muitas rebeliões de escravos querendo a abolição, a mais importante delas foi em 1835, uma semana depois da festa do Bonfim (...) sim, Joãozinho, já existia festa do Bonfim, para ser preciso, Joaninha, era festa de Nossa Senhora da Guia, com a vigília sendo feita na igreja do Bonfim mesmo, só que nada deu certo...
_Por que, seu Vadinho?
_O plano, Joaninha, consistia em provocar balbúrdia pela cidade, espalhar incêndios e confundir a polícia, daí iam desarmá-los, havia alguns senhores da cidade que iam se juntar aos escravos e provavelmente a abolição da escravatura dar-se-ia primeiramente aqui na Bahia, mas a natureza puramente humana de dizer não às mudanças, ao novo, fez com que uma ex-escrava fizesse a denúncia... A tal mulher também nagô, mas emancipada, ouvira dois escravos conversando na língua deles sobre o que haveria de ocorrer, que chegaria mais gente de Santo Amaro e seria uma rebelião séria, com chances de dar tudo certo, aí a criatura deu com a língua nos dentes e tudo foi desfeito, mais ou menos isso, Joaninha...
_Nossa, seu Vadinho! Que coisa! Um negro entregar o outro!
_Pois é. Essa é uma prática infeliz e puramente humana, como já havia dito... E isso hoje está até regulamentado, tem mais, imagine, havia judeu que entregava outro judeu a Hitler, imagine... Existe um partido político que se diz de esquerda, ou de direita agora, que a prática retrograda e mesquinha do entreguismo e da vigilância constante no outro, stalinismo tupiniquim disfarçado de cortesia hipócrita, indignidade dissimulada para alcançar o poder, agindo nos bastidores e até que ganhou uma secretaria importante na prefeitura, mas isso é outra coisa... Então, se você for eleita a rainha do Ébano, lá no Malê de Balê já terá algo a falar sobre a revolta dos Malês.
_O senhor sabe é de coisa, seu Vadinho...

Quando fui eleita rainha do carnaval, há uns cinco anos, se não me engano, seu Vadinho ficou orgulhoso de mim. Disse que o que havia falado na entrevista da televisão muito pouca gente sabia. Vi um certo desejo nos olhos dele. Nunca havia reparado no charme oculto que seu Vadinho carregava naturalmente. Achava que o nariz não deixava, agora acho que o nariz é o início do tom charmoso que se distribui em todo ele. Talvez ele tenha pensado em mim, sim. Mas quando soube que eu estava grávida de Joãozinho, desistiu. Eu também era desconfiada e medrosa. Tinha medo de Margarete. Ela propôs que eu vigiasse seu Vadinho. Queria saber se tinha outra mulher. Comecei a vigiá-lo, mas logo em seguida desisti. Muito pela arrogância dela. Seu Vadinho era um homem culto, inteligente e bem-humorado e depois daquela história de entreguismo de negro para negro, fiquei com vergonha de mim mesma. Fui fiel a ele. Mesmo assim Margarete tentava me persuadir, mas não cedi às chantagens soberbas que ela fazia para me intimidar. Amelinha desconfiou e perguntou bem sutilmente, mas com uma ponta de malícia o que significava os dois encontros meu e de Margarete que ela tinha visto. Fiquei sem graça, inventei uma história boba e desconversei. Sei que não saciei, nem a convenci. Ela só ficou mais tranqüila, quando presenciou minha conversa com seu Vadinho a respeito dos assédios de Margarete.

Em mais de uma vez fiquei encantada com seu Vadinho. Mas houve um episódio que o meu enlevo por ele cresceu como lume que invade o breu da noite. E foi por essas palavras que me senti ninada por seu Vadinho. Apesar de a história ser contada por ele para Joãozinho. Contudo ouvi e percebi o real significado de a magia da vida como ele próprio repetia sempre. Foi uma história que contou para meu filho dormir. Uma história da noite. Acabamos todos pegando no sono. Até Amelinha que ouvia distraída o som da voz do tio a revelar a magia que há entre as noites. Ele contou que o mundo é noite, o seu estado próprio e peculiar é a escuridão. Entretanto não é para se ter medo do breu natural, pois o grande herói da terra venceu o seu inimigo com os truques da lua. O inimigo ao pensar que o teria nas mãos, que o derrotaria e humilharia o herói, por causa da noite e seus recônditos escuros, foi surpreendido pela lua cheia e pelo cometa que passara então na madrugada e magicamente clareou o terreno da luta final. O herói que mesmo assim já havia apurado as vistas para o embate com o inimigo da terra, foi beneficiado pela luz e claridade das estrelas, da lua cheia e do cometa. E montado em seu cavalo alado enfiou a lança no coração do dragão da escuridão. A lua cheia tão orgulhosa e feliz por ter ajudado o herói terreno brilhou mais intensamente, chamou o sol e com ele veio Aurora e seus dedos cor de rosa, onde a claridade do astro rei mostra aos homens todos os dias os detalhes da vida. Seu Vadinho saiu de mansinho e deixou todos dormindo. Acho que despertei levemente e o vi carregando Amelinha para a cama.


Trecho de TRÊS TIROS NUMA HISTÓRIA DE AMOR novela de minha autoria prontinha para ser publicada

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