sábado, 17 de janeiro de 2009

CITAÇÕES- TERESA de Aurélio Shommer

Mamãe dizia: "filha, a vida da mulher depende do marido que lhe calha; viver bem é dar conta de ter bom marido". Engraçado. É do senso comum que a mulher amadurece com o casamento. Casando aos 16 anos, emancipa: "deixou de ser menina para ser mulher". Assim, cabe viver de e para o marido, em função deste. Já o homem, como nunca amadurece, tanto faz quem lhe sirva de esposa. É irrelevante em meio a suas preocupações mais elevadas com o futebol (brincadeira com bola), a filosofia (brincadeira com as palavras), o sexo (brincadeira com as amantes e prostitutas), a velocidade (brincadeira com carros) e a carreira (brincadeira para ver quem é mais esperto). A chata da mulher cônjuge existe-lhe como um apêndice, parte de seus utensílios, da modorrenta vida que transcorre no intervalo entre seus excitantes afazeres lúdicos.

Seguindo a sina de ter a mãe como espelho e conselheira-mor, casei cedo, 17 anos, com Alfredo. Contínuo, convencional a mais não poder, era fã de Nelson Rodrigues. Para tudo tinha uma citação deste. Se via algo no Jornal Nacional sobre o país, disparava: "o que atrapalha o brasileiro é o próprio brasileiro", como se houvesse uma inaudita sabedoria em tal aforismo. A propósito, ele não apenas assistia ao noticiário da Globo. Engatava com a novela e, se fosse quarta-feira, com o futebol. E lá ia eu para a cama contar carneirinhos. Com o tempo passei a evitar até a novela. Olhava a da tarde, em reprise, quando ele estava no trabalho. Ao seu lado, tinha que agüentar seus comentários constantes: "crápula este aí", "cachorra" aquela outra, "oportunista" um terceiro. Fazia-os assim, com esta constância, para imitar seu líder, que afinal opinara sobre todos os assuntos humanos e alguns do mundo zoológico.

Não que eu desgostasse do grande "anjo pornográfico". O problema é que este fora um sujeito espirituoso, inteligente, elaborara suas próprias idéias. Alfredo, ao contrário, carecia de inteligência própria. Limitava-se a imitar, quando não ao Nelson, a qualquer outro, nem que fosse o vizinho: "comprou um pastor alemão, acho que vou fazer o mesmo". Tal falta de criatividade tinha conseqüências graves na cama: era o mesmo tema, sem variações: "vupt, vupt, vupt, ahhhhhhhhhhh". Seria melhor fazer sexo com o pastor alemão. Nosso casamento só melhorou quando soltou uma "lapidar" do mestre (que, ao contrário de Alfredo, nunca se levou a sério) ainda desconhecida para mim: "Não ama seu marido? Pois ame alguém, e já. Não perca tempo, minha senhora!". Desta eu gostei. Passei a amar meu médico, meu dentista, o professor da faculdade, e, melhor de todos, o porteiro de um prédio da vizinhança. Ah, este não tinha igual. Mesclava força bruta a servilismo, pegando-me em pé, todo suado, num canto da garagem. Melhor que o pastor alemão.

Quando Alfredo começou a desconfiar do porquê da alegria constante e inédita em meu semblante (levou um bom tempo para perceber, afinal), questionando-me a respeito, respondi na bucha, certeira, com outra citação de Nelson: "o marido não deve ser o último a saber; o marido não deve saber nunca". Ficou tão contente com meu achado que aplaudiu. A partir dali até melhorou na cama. "Amar é ser fiel a quem nos trai", explicar-lhe-ia o guru, se consultado sobre tão súbito arrebatamento. O problema com nós mulheres é que num ponto crucial somos idiotas. Não nos damos conta das óbvias vantagens de ter um corno manso como cônjuge. Passamos a enxergar na galhada crescente em sua testa um motivo para desprezo. "Como pode ser tão crédulo?". É, pessoas que acreditam são de fato insuportáveis por longos períodos. Um dia, deixei-lhe um bilhete com outra máxima do mesmo autor, seguida de um adeus: "O amor entre marido e mulher é uma grossa bandalheira".

Apesar da "bandalheira", continuava a acreditar na necessidade de ter um marido. Entre meus amantes, escolhi Plauto, o professor da faculdade, para preencher a vaga de titular da minha cadeira. Mais velho, aparentemente mais inteligente que Alfredo, calmo e gentil. Expliquei-lhe logo que odiava citações. "Elas pesam", observei. Por algum tempo, respeitou minha objeção, até o dia em que acusei uma professora rival em minha escola de má fé e consegui que fosse demitida. Estava louca para processá-la também na justiça pelas ofensas sem provas que me havia dirigido, danos morais evidentes, quando Plauto saiu-me com Voltaire: "o vencedor que se vinga não é digno de ter vencido". Pronto, abandonei a causa. Como argumentar contra tal sentença, tão definitiva, tão impregnada de uma moral incontestável?

Seu pior defeito, porém, era a arrogância. Levava a classificação da espécie ("homo sapiens" – homem que sabe) ao pé da letra. Se eu mandava ele matar uma barata ("uma das duas únicas utilidades de um homem, a outra é abrir conservas"), argumentava sobre a importância ecológica da existência de tal ser, que pisar em cima dela era uma covardia, além do que sua periculosidade era um mito, e o medo irracional que as mulheres têm de barata uma neurose específica que Freud explicava. Na falta de argumentos, catei um inseticida. Eu mesma ia dar conta do recado. Pra quê? Tive que agüentar a ladainha politicamente correta: "estamos envenenando o mundo, acabando com a ordem da natureza". Como se a existência humana moderna fosse compatível com a manutenção do meio natural intocado. Que ódio!

Não se contentava, porém, apenas em se afirmar. Precisava desprezar o que eu fazia. E nada melhor para tal que uma citação de autor famoso. Plauto deixara a cátedra para dedicar-se apenas à pesquisa em sua área, a Antropologia. Justificou-se com esta pérola de Diderot, própria para colocar-me em baixo da sola de seu sapato: "a pessoa que ensina a ciência não é a mesma que entende dela e a realiza com seriedade, pois a esta não sobra tempo para ensinar". Claro, quem era eu para entender de alguma coisa, uma reles professora do ensino fundamental? De todos, o que mais ele idolatrava era Schopenhauer, aquele alemão devasso que passou a vida a criticar todos menos a si mesmo. Inspirado nele, ficava horas ouvindo ópera em alto volume à busca da verdade última e definitiva que tal filósofo vira na arte musical. "A música é mais elevada que tudo, inclusive o sexo", dizia Plauto, citando a si mesmo. Devia achar isso com sinceridade, pois passava muito mais tempo deleitando-se com aquela do que praticando este último, "movimentos ridículos", como gostava de definir.

Antes que eu saísse à procura de novos amantes, tendo que dividir a cama oficial com outro corno manso, aproveitei uma ida dele ao Xingu (pesquisa de campo) a título de contemplar a pureza de propósitos dos índios (ah, de novo a credulidade, que saco!), e pintei toda a parede da sala com uma citação de Schopenhauer que lhe cabia como uma luva. Não foi nem preciso acrescentar "adeus" nesta: "diante da imponente erudição de tais sabichões, às vezes digo para mim mesmo: ah, essa pessoa deve ter pensado muito pouco para poder ter lido tanto!".

Oscar Wilde, que assumiu seu homossexualismo (todos os homens o são, alguns não admitem), definiu com precisão os motivos que levam a um novo casamento: "quando uma mulher se casa pela segunda vez, é sinal de que detestava o primeiro marido. O homem, ao contrário só torna a casar se adorou sua primeira mulher". De fato, detestara os dois anteriores. Como acreditava no "triunfo da esperança sobre a experiência" (Samuel Johnson), engatei um terceiro, Florêncio. Enfim, um cavalheiro à moda antiga. Dava flores, pagava a conta do restaurante, abria a porta do carro. Tá certo que era um Escort pra lá de usado preste a pedir asilo num ferro-velho, contudo o que valia era a intenção.

Embora seu enredo nos encontros com fins libidinosos (adoro "fins libidinosos" porque está no Código Penal, o melhor livro sobre sexo que já li, tem até "mulher honesta", um fetiche insuperável) fosse um tanto repetitivo, a dedicação contínua compensava. O problema foi quando Florêncio (os pais devem odiar muito o recém-nascido para dar um nome desses, não?) apaixonou-se. Sim, porque todo apaixonado é um bobalhão elevado ao cubo. Revelou-se seu lado mais abominável: a pieguice. Fazia questão de ser o mais kitsch entre os bregas. O pior é que ele não declamava, cantava, com sua voz em 78 rotações. Ah, que suplício. Passava por todas as línguas latinas. "Besame Mucho", em espanhol; "Ne Me Quite Pas", em francês; "Dio Come Ti Amo", em italiano. E dá-lhe "quiero tenerte muy cerca, mirarme en tus ojos, verte junto a mi; pienso que tal vez mañana yo ya estaré lejos, muy lejos de ti". Em português, graças ao bom Deus, não cantava muito, pois nesta língua só tem música de corno. É impressionante como o brasileiro tem vocação para a coisa. De "Motoqueiro", de Almir Rogério (Uma moto foi embora da cidade/Que infelicidade/Ela foi sentada atrás), a "Eu Te Amo", de Chico Buarque e Tom Jobim (Se juntos já jogamos tudo fora/Me conta agora como hei de partir), é um tal de lamentar a perdida que deu no pé, uma choradeira sem fim.

Ainda bem que ele não ousou "Côncavo e Convexo", de Roberto Carlos, ou ter-me-ia transformado em assassina em legítima defesa do bom gosto. Mesmo assim, quem tem hálito de açúcar acaba ficando com todos os dentes cariados e podres. Florêncio, que nunca se deu conta da filosofia de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa): "todas as cartas de amor são ridículas", deve ter ficado cantando "No Rancho Fundo" (Ary Barroso e Lamartine Babo) até encontrar outra "Marília" (de Dirceu), o que não seria difícil, pois, é inelutável reconhecer, algumas moças ainda admiram o lirismo, este que, como bem assinalou Eça de Queiroz, em 1871, deveria ser multado por ofensa à higiene. Sim, porque eu caí fora, finalmente convencida de que minha mãe não tinha razão.

O feminismo está morrendo. Melhor assim. Um movimento que pretendia nos igualar a quem nos é muito inferior, os homens, não merecia ter futuro. A mulher se basta. Não precisa de acessórios, ilusões e bravatas para seguir em frente. Um homem velho solitário é ruína sem misericórdia, um farrapo entregue à bebida ou, no mínimo, à irrelevância. Se lhe sobrar algum dinheiro, poderá dar-se com sofreguidão, patético, aos enganosos prazeres do sexo com as mais jovens. A mulher mantém sua classe, seu estilo, sua independência, sem jamais perder o charme, este que resiste ao esvair-se da efêmera beleza da juventude.

Depois de minhas três experiências com maridos comuns, todos tão limitados, apostei no sexo casual, este sim uma grande conquista feminina. Sair por uma noite, transar sem preocupações em agradar e, ao final, nunca deixar o número do telefone. Sexo é território feminino, Eros. Para comprová-lo, basta comparar nossa masturbação com a deles. "Toda mulher bonita é um pouco a namorada lésbica de si mesma", para citar novamente Nelson Rodrigues. Não precisa nem ser bonita. Nosso gozo é quente, intenso, ao mesmo tempo suave, reconfortante, reparador. Já um homem a se masturbar é uma imagem burlesca, digna de pena, quanto mais que acaba naquela explosão melada, branca, azeda e fria. Acabar é bem o termo, pois morre ali o que nunca foi grande coisa. Viver bem é dar conta de não ter marido, ou, se o tiver, de não lhe dar tanta importância


Aurélio Schommer é escritor baiano e diretor da Câmara Bahiana do Livro

3 comentários:

(CARLOS - MENINO BEIJA - FLOR) disse...

Gostei do texto,com todo respeito, só achei um pouco pesado, exagerado, como se nem um homem valesse nada. Mas concordo com a maioria das citações e não acho mesmo que a mulher deve se igualar ao homem.Essa coisa bitolada de ser feminista, não precisa deixar de ser feminina. Completando: a mulher gosta,precisa e merece ser valorizada, mas fica super exposta na tv e revistas para os machões se deleitarem.Um colunista de uma grande revista semanal brasileira, disse que um amigo dele veio de Nova York e ficou abismado com a grande exposição de bundas no Brasil. Isso também é se autodesvalorizar. Mas estou sempre do lado das mulheres e quero descobrir ainda o idiota que a rotulou como sexo frágil,sendo que a mulher ao longo da história esteve sempre nas grandes guerras e fatos,enfim dominando com seu jeito,aos homens.No geral o texto e ótimo

Anônimo disse...

Adorei seu conto, Aurélio.

Valentina de Botas disse...

Delicioso seu texto, Aurélio. Desses que a gente contempla as palavras como se fossem paisagens. Talvez paisagens verbais. Não vou debater com um eu-fictício-narrador, mas um tanto ansiosa a moça, não? E a conclusão, uma coisa meio solitária, meio desamorosa... Não sei, acho que sexo sem amor é coisa para principiantes. Um beijo