sexta-feira, 28 de novembro de 2008

A BONECA DE VELUDO PRETO

conto premiado de Clevane Pessoa



O retalho de fino veludo preto, na banca das "Casas Regente", tradicional loja de tecidos em "Juiz de Fora" , atraiu a moça. Pensou em cortá-lo em retângulos e neles aplicar flores de fita varicor, o que estava em voga naqueles anos sessenta. Gostava de trabalhos manuais e de criar peças para o seu enxoval. As claras mãos, muitos finas, destacaram-se no negro. O anel bonito, que terminava numa pérola encaixada em garras de ouro branco, faiscou. Presente de Pete, com quem namorava "firme", como diziam então.

Acabou mandando embrulhar o retalho, pagou e, como sempre, foi à sorveteria da loja, onde os fregueses podiam servir-se gratuitamente de um delicioso sorvete, mais cremoso que o de qualquer outro lugar.

Professorinha recém-nomeada, foi dar aulas em um grupo escolar. Muito ocupada fazendo todo o material didático, já que as escolas estaduais da época possuíam-no muito pouco – confeccionava desde as cadernetas de notas mensais, feitas de cartolina dobradas e decoradas com seus caprichosos desenhos, às provas mimeografadas... Mapas, quadro de pregas para ensino de unidades, dezenas, centenas... Flanelógrafos, corpo humano, fauna e flora! Tudo feito em casa, na grande maioria, mais o plano dos testes... Nas datas comemorativas, dezenas de pequenos brindes e enfeites, alusivo: dia da páscoa, em abril, dia das mães em maio, dias de festas juninas, dia dos pais em agosto, dias da árvore e da entrada da primavera em setembro, dias das crianças e de N. Sra. Aparecida, padroeira do Brasil, em outubro, dia da bandeira em novembro e, em dezembro, as festas de fim de ano, com suas formaturas ou despedidas. Haja papel-cartão, papel-cetim, papel-de-seda, papel fantasia, papel kraft! Haja isopor, cola, aquarela e lápis cera e de cor! Os dedos, machucados de tanto usar tesoura, o rosto com pontos luminosos de brocal, purpurina, as unhas estragando-se.

Mas o prazer de lecionar, agradar à criançada, ver os resultados, mesclado à criatividade que recebera como dom, sobrepujava em muito aquela canseira toda.

Também ganhava presentes, em certas datas, mas, principalmente, no seu aniversário e no dia do professor. Alguns, feitos a capricho, pelas mães, como panos de prato, toalhinhas de crochê. Outros, terríveis, certos bibelôs de porcelana branca, com traços informes e riscos dourados. Alguns insuportáveis perfumes baratos, brincos de plástico vagabundo. Os simplórios ou baratos, como sabonetes. Bichinhos de pelúcia, bombons, cosméticos, principalmente se a mãe era uma "revendedora Avon".

E broa com carinho, empadinhas sem azeitonas... De vez em quando, havia um pai dono de padaria, uma prendada tia, avó ou mãe confeiteira, doceira, costureira, florista... e, falando em flores, elas vinham aos montes, as de jardins e horta, as arrancadas pelo caminho ou roubadas de vizinhos...

Voltava para casa carregada com esses troféus do carinho que lhe dedicavam, feliz da vida. Uma vez, um aluno quis dar a ela algo inusitado:

- Um gato-coelho, fessora.

- Que é isso, Serginho?

- Um gato com rabo de coelho, todo branco, que pula como coelho.

A mãe dela adorava animais e, acompanhada do garoto, foi à casa dele após a aula. A mãe de Sérgio achou graça porque o animal – uma linda aberração – era a paixão da criança e da família.

- Olha, Eva, ele gosta muito mesmo da senhora, porque em casa é muito ciumento do bichinho.

Sérgio, nos dias de início das aulas, chorava tanto, que, literalmente, ficava com a camisa do uniforme encharcada. Chorava pelos olhos, pelo nariz, pela boca. Às vezes, pela bexiga. Eva fora tão carinhosa, que o conquistara "para sempre".

- Fessora, eu amo você para sempre!

- Que bom, Serginho, eu também, mas agora, vá para o recreio merendar e brincar...

Se deixasse, ele ficaria olhando-a, sem ir ao pátio com os coleguinhas...

Ele chegou com um sorriso de melancia no rosto moreno, olhos cheios de estrelinha:

- Olha tia, meu gato-coelho!

Ou então, um coelho-gato. O menino tinha razão. Um mistério de cruzamento. Deixou-o contentíssimo, aliviado, quando declinou do presente, com uma desculpa.

- Ah, Serginho, não vou poder levá-lo, porque na minha casa temos dois cachorros e ele vai correr perigo...

Num feriado, arrumando seus guardados, encontrou o retalho, já retalhado, em cinco retângulos menores. Teve a idéia de fazer uma boneca e foi costurando, com ponto caseado miúdo, braços, pernas, tronco.

Braços e pernas, após enrolar cada tecido sobre si mesmo, como rocambole, os primeiros mais apertados para ficarem mais finos e não precisarem de enchimento. Já as pernas, tronco e rosto, receberam espuma de nylon por dentro.

A cabecinha fez com um pedaço de cetim preto. Olhos de botões, boca e nariz bordados, cabelos de lã preta em mil trancinhas, vestido xadrez vermelho "vichy", avental marinho.

Fez por fazer, talvez para os filhos que tivesse, uma garotinha ou garotinho – afinal, estavam descobrindo que os meninos também podem gostar de brincar de pais. Mas, pronta a Maria Pretinha, pensou nos "filhos diários e resolveu levar a boneca para a escola.

A Maria ficou na bolsa enorme do tipo que as professoras usam para caber toda a tralha didática. De repente, Lu e Marcos saíram aos tapas, sem ouví-la quando pediu que parassem com a encrenca. Aí, lembrou-se da boneca e tirou-a, expondo-a aos olhos curiosos da criançada, que dela se aproximou. Quando os briguentos perceberam que não tinham platéia, também se chegaram. Aí, quase sem mover a boca, como fazem os ventríloquos, mas deixando o som formar-se naturalmente, admoestou Lu e Marcos e então começou a incrível história de amor, empatia imediata, entre os pequenos e Maria Pretinha.

A partir daí, tudo que queria, pedia através da boneca. Num dia em que esqueceu de colocá-la na bolsa, deixando-a pendurada no varal, para tomar um solzinho, foi uma decepção geral. Aninha, de sobrenome alemão e incríveis olhos azuis, passou todo a tarde a olhar para o lugar, sobre a escrivaninha, onde Maria Pretinha ficava sentada, costas apoiadas em livros. Eva notou que, após as perguntas iniciais, o resto da turma, compreendendo sua explicação de que ontem chovera dentro da grande bolsa de palha e, se não secasse, a boneca iria mofar, aquietou-se, participando das atividades do dia. Aninha, não: ora suspirava, ora enchia os belos olhinhos de lágrimas, olhando de vez em quando para o lugar sem bonequinha.

Após a aula final, a garotinha a esperou:

- "Fessora", amanhã a senhora jura que traz a Maria Pretinha?

- Claro, Aninha! Quando eu chegar em casa, vou contar a ela que você sentiu sua falta...

- Eu fiquei morrendo de saudades dela...

- "Vivendo de saudade", pensou Eva, fazendo um carinho nos cachos cor-de-mel e preparando-se para ir embora: não podia perder o ônibus, pois Pete saía do trabalho e corria para esperá-la no ponto final, de onde iam caminhando de mãos dadas, lentamente, ele falando de uma tal CLT, ser ou não optante da lei e ela contando dos aluninhos do pré-primário.

No fim do ano, quando as aulas iam encerrar-se, ela sabia que não ia voltar porque, casando-se, ia mudar de cidade. Fez uma festinha para sua classe, entregou a "Aninha Cachinhos de Ouro", como chamava a sensível menina, um pacote embrulhado em papel fantasia. Havia levado um presentinho para cada um dos alunos, deixando-a por último. Aí, abraçando-a, disse-lhe ao ouvido:

- Só abra quando chegar em casa, porque seu presente é especial, eu não tinha para todo mundo.

Aninha entendeu, surpresa, mas com medo de acreditar, correu para casa e no caminho rasgou um pedaço do embrulho... Acertara: os pés de Maria Pretinha apareceram fazendo seu coração bater mais forte.

Eva, parece que adivinhou ao lhe dar o presente; só teve dois filhos, homens, que, ensinados pelo avô, tinham horror a bonecas, "coisa de menina, mãe"... Mas Eva nunca esqueceu Aninha, nem esta a sua Maria Preta...

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

ATAVISMO URBANO- de Carlos Vilarinho

Meu corpo produz uma energia cheia de raios,
Descendente de Xangô,
Que vão iluminar o mundo
Quando as águas o inundarem
E as trevas o tomarem
Em revolta da natureza.
Meu corpo, uma bola de fogo,
Um sol humano
Aquecendo e derretendo
O gelo em pedra dos corações.
Meu corpo em filetes ardentes e díspares,
Nos corredores frios do barroco quinhentista.
Túnel negro de betume,
Anel de inferno dantesco
O navio que trouxe meu corpo.
Meu corpo destrói a escuridão,
Transforma em crepúsculo
Em seguida dilúculo.
Meu corpo salva sem cruz.
Açoitado sem Jesus.
Meu corpo,
Enfim
O universo, de minha alma,
Deduz...(?)

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

O PÉRIPLO DO AMOR em "Vicky Cristina Barcelona"- texto crítico sobre o filme de Woody Allen-por Gustavo Dumas

Desde que abdicou do protagonismo cênico de suas histórias, Woody Allen parece ter desenvolvido ainda melhor uma capacidade que esteve sempre em evidência em toda a sua filmografia: a de operar ambigüidades em personagens que se apresentam assumidamente estereotipadas, enredando tramas que suportam (ou suportariam) quaisquer soluções. Estas, no entanto, parecem determinadas por uma espécie de visão ou, vá lá, intuição de mundo do autor – e assim evitamos tocar nesta palavrinha polêmica chamada “ideologia”.


Certo é que o Allen pós-ator parece ainda mais centrado em desqualificar bases sólidas da cultura do consumo made in USA, o que a própria mudança de cenário fílmico denuncia, por si. Na Londres de “Match Point” (Inglaterra/EUA/Luxemburgo, 2005) ou na Barcelona de “Vicky Cristina Barcelona” (EUA/Espanha, 2008), a nervura posta na frigideira é a do establishment e suas implicações na vida comezinha de cada um. Naquele, o tema era explícito: fazer o ponto (escalar socialmente) depende de “sorte”, isto seja relacionar-se com as pessoas “certas”, aceitar anular-se, tornar-se um débil mental produtivo, matar a mulher amada e por aí vai. No último, o toque na rede é sutil – Vicky, Cristina, Juan, Maria Elena, Doug, Judy, Mark trafegam pelas (im)possibilidades do amor contemporâneo que, olhadas da superfície, parecem tão vastas.


Vicky (Rebecca Hall) e Cristina (Scarlett Johansson) fazem as amigas do título, duas americanas em viagem de férias pela quente e bela Barcelona. Hospedam-se na casa de Judy (Patrícia Clarkson) e Mark (Kevin Dunn). Vicky é a noiva-padrão de Doug (Chris Messina). Vicky e Doug são os protótipos mais jovens de Judy e Mark. Judy chifra Mark. Mark (finge que) nada vê. Vicky e Doug vão se casar em breve, está tudo planejado. Os dois se amam conforme o estatuto do amor conveniente, sem arroubos nem riscos. Tudo em paz. Já Cristina encontra-se (sempre) em busca. Trata-se da personagem mais interessante do filme, dado depreciado pela interpretação pixulé de Johansson. Cristina só sabe o que não quer, nos conta um cínico narrador intruso (voz de Christopher Evan Weich): homens pré-fabricados, família pequeno-burguesa, universo nove-às-seis-com-happy-hour. Doug é o idiota moderno arquetípico, cujo tesão de “viver” se manifesta quando planeja adquirir uma tevê de plasma de “última” geração. À sua ignorância, característica da formação para boi de mercado, arte zero, Doug junta ainda uma carinha de pretensão de dar nojo, ou pena.


Era só bancarem as turistas, encarando o papel de homus digitalis que cabe aos que não precisam mais do cheiro das coisas, mas não. Cristina (e Vicky, diretamente do armário) parece(m) querer mais. Juan (Javier Bardem) é pintor. Acaba de se separar de Maria Elena (Penélope Cruz), sua musa, também pintora, figura ponta-de-faca e sua principal influência estética, de quem diz: “nasceram e não nasceram um para o outro”. Juan aborda-as em um restaurante, propondo levá-las para (a cama em) uma cidade vizinha. Declara-se interessado nas duas amigas. Vicky se irrita, gagueja. Cristina se oferece. Vão. Vicky vai sobrar, mas Cristina passa mal. Rola uma noite de viola, vinho e “outras intensidades” entre Vicky e Juan. Cristina melhora, eles voltam da viagem e Juan e Cristina continuam saindo. Vicky se casa com Doug, apaixonada por Juan. Cristina vai morar com Juan. Maria Elena volta. Juan e Maria Elena dão certo novamente... com Cristina.


A trama básica está dada, em seus ingredientes principais. Quando a resolve, Allen completa um périplo: as coisas voltam para onde (se) partiram. Doug e Vicky com seu relacionamento certinho, Juan e Maria Elena separados, Cristina buscando... (“Quem procura o que não perdeu quando encontra não conhece”, já dizia Mestre Marçal, apud Wilson das Neves em seu disco “O som sagrado de Wilson das Neves”, de 1996.) Judy não se separa de Mark: “Ele é muito bom, não consigo”. As férias, como uma concessão do racionalismo burocrático e mercadológico à vida, precisam terminar. Para que a normalidade produtiva possa se restaurar, até com mais força.


Ao conceber uma espécie de quinteto amoroso, em tese, nada ortodoxo, e ao desintegrá-lo, reconstituindo o status quo provisoriamente alterado por um súbito desrecalque de potencialidades amorosas, Allen acaba por reproduzir um mundo em que o amor, a arte, o nonsense, o criativo ocupam um espaço de intervalo, nota passageira diante de uma rotina de anulação, de automação dos sujeitos – quiçá para alimentar um lúdico sem o qual muitos não juntariam forças para trabalhar todo dia. No final, todos perdem de goleada para o sistema.


Em um tempo de sensações mornas, de estabilidade monocrítica e de carência de alternativas para fora do lugar de controle do biopoder, os intervalos para a intensidade são breves como o tempo cronológico supostamente inverossímil em que decorre toda a ação de “Vicky Cristina Barcelona”. Contudo, há pessoas pintando, pensando, escrevendo. E até amando. Tendo a “busca como medida/o encontro como chegada/e como ponto de partida”, conforme os versos sábios de Sérgio Ricardo em “Ponto de Partida”. Elas são raras, infelizmente; porém existem. Allen se inscreve, como autor, neste círculo, sensível aos dramas de sua época, e deixa uma possibilidade de superação entrevista. Difícil para nós é conseguir enxergá-la, com nossos olhos saturados.


Gustavo Dumas é escritor e revisor. Publicou, assinando com o heterônimo de Zeh Gustavo, os livros de poesias "A Perspectiva do Quase" (Arte Paubrasil, 2008) e "Idade do Zero" (Escrituras, 2005).
Contato:zehgustavo@yahoo.com.br

contato@algoadizer.com.br

terça-feira, 25 de novembro de 2008

O CASULO- de Carlos Soares de Oliveira

Pedrinho era um menino triste. Não gostava de brincar, não tinha amiguinhos, vivia pelos cantos. Um dia num de seus refúgios, como um eremita mirim, entrou num bosque, sentou-se sob uma árvore, encostou a cabeça nos joelhos e começou a chorar. Chorava de forma tão intensa que até as árvores, as flores e os bichos se contagiaram e ficaram tristes também; o esquilo chorou, o macaco não brincou, o passarinho não cantou, o castor nem se aproximou. Flores cabisbaixas guardaram seu perfume.

De repente uma voz suave murmurou:

-Ei, ei menino... por que chora?

Pedrinho nem respondeu, não queria falar com estranhos, continuou no seu mundo fechado, ensimesmado. Mas a voz insistiu:

-Ei, menino... não chore mais.Veja quantas coisas lindas à sua volta. Por que chora?

Pedrinho levantou a cabeça procurando ao redor quem falava, mas não viu ninguém. Ficou um pouco assustado e perguntou:

-Quem é você? Quem está aí?

Então uma grande e linda borboleta, toda colorida de azul, branco, vermelho, amarelo, era um arco-íris de asas, se apresentou com uma voz mais meiga ainda.

- Sou eu, uma borboleta.

-Nossa, como você é linda! Posso tocar em você? – entusiasmou-se Pedrinho estendendo a mão.

- Claro- respondeu a borboleta pousando naquela frágil mão... e cobrou.

- Por que estava chorando? Não gosto de ver ninguém chorando, menos ainda, crianças.Crianças existem para sorrir, brincar, estudar.

-Não está vendo estampado no meu rosto como sou feio? Olha meu nariz como é grande. E essas bochechas horríveis. Tenho pés grandes, ando até torto. Minha voz é esquisita (qualquer semelhança com o autor é mera coincidência). Tenho até vergonha de olhar para os outros com esses olhos esbugalhados.

-Ora, ora menino. Nada disso é importante, nada disso merece uma lágrima. O que importa é a beleza do seu coraçãozinho. Se você é um bom menino.Você me acha linda, não é?

-Acho sim, demais- disse Pedrinho ainda enxugando o rosto

-Pois olhe atrás de você nessa árvore. Veja esse casulo. Dentro dele existe uma lagarta cabeluda, cheia de pernas, asquerosa, que dá até medo nas pessoas.Nem por isso ela é triste, pois sabe que é parte da natureza, a perfeição que Deus criou, com tantas diferenças se encaixando. Antes de ser essa borboleta linda, eu era uma lagarta feia e vivia num casulo também. Eu me transformei. As pessoas devem se transformar.

Nisso, Pedrinho sentiu que a tristeza foi saindo aos poucos, foi ficando aliviado e até esboçou um sorriso de canto de boca.

- Como assim... transformar?

- De dentro para fora. Quando você estava triste, tudo à sua volta também estava. Se for pra contagiar, por que não de alegria? Metamorfose é respeitar as pessoas, as diferenças, as raças, as crenças. Não fraquejar diante de derrotas, aprender a caminhas com elas. Ser humilde nas vitórias. Dar chance às pessoas. Ajudar a quem precisa. Fazer o bem sem esperar recompensas e aplausos. Acordar de bom humor, abrir a janela e dizer: Bom dia sol! Bom dia vizinho! Bom dia Deus! Abrir os braços abraçando o mundo. As pessoas vivem dentro de casulos e não sabem, fechados, escuros, sendo que o mundo lá fora é tão brilhante. São estrelas e não sabem.Sorriso não tem preço. Venha, siga-me. E saiu voando.Pedrinho foi atrás. Seus olhos pareciam duas pepitas, reluzentes, sem lágrimas. Saiu correndo, pulando, como uma criança de verdade. Chegando à beira da rua a borboleta continuou.

- Veja quantas crianças. Como brincam, como são felizes. Vá brincar também.

Pedrinho olhou para a nova amiga jogando um beijo no ar e disse:

-Muito Obrigado! Estou me sentindo lindo!- e saiu correndo em direção à meninada.

- Missão cumprida-pensou a borboleta e voou para longe, quem sabe para salvar outros meninos.

Era uma vez um menino triste... era, não é mais.

Mais um casulo se quebrou.



CARLOS SOARES DE OLIVEIRA

domingo, 23 de novembro de 2008

Obrigado pelo prêmio



http://leitoracritica.blogspot.com/
http://achamarte.blogspot.com/

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

A FAVELA- de Carlos Vilarinho

A favela,
Lixo, ocidente, manivela.
A favela,
Descuido, sandice, novela.
A favela,
Becos, pau-a-pique, ruela.
A favela,
Pagode, rap, cinderela.
A favela,
Estranho e esquisito sob a janela.
A favela,
Sirene, fogo, olho furtivo em trivela.
A favela,
Alvoroço, desespero, feijão fora da panela.
A favela,
Flores, enterro,
Nunca mais o amor dela...

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

OLHAR-TE de edinara Leão

Olhar-te

Como nao te olhar
se são teus ventos
que perfazem
meu tempo.
em tuas mãos,
em teus olhos,
sou rainha
de tempos perdidos
perambulando vias
em teu templo
sou sacerdotiza
do eterno mistério

nunca cessaria
de te olhar,
só olhando
em teus olhos,
por teus olhos
sou eu mesma
mulher inteira
porque tua.

Edinara Leão

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

SABEDORIA DE MÃE - de Jackson Vasconcelos

O historiador Will Durant conta que a mãe de Mêncio, filósofo chinês reconhecido como herdeiro do Manto de Confúcio, se viu obrigada a mudar de residência algumas vezes, preocupada com a educação do filho. A primeira, por residir ao lado de um cemitério e o menino, com o tempo, imitar o comportamento do coveiro; a segunda, por estar nas proximidades de um matadouro e verificar que o menino emitia os gritos dos animais sacrificados e a terceira, em razão de Mêncio agir como comerciante, estimulado pela presença de um mercado nas proximidades. Ela sossegou quando, finalmente, montou residência em frente a uma escola e avaliou o resultado da decisão na vida do filho.


Sem dúvida, no tempo de Mêncio existiram pobreza e crimes, mas, com certeza, não na escala em que estão presentes no mundo moderno e principalmente na Cidade do Rio de Janeiro, onde há pelo menos 30 anos os governos tentam reduzir a criminalidade pelo confronto direto, armado e em campo aberto entre a polícia e os bandidos.

As vítimas mais presentes e os principais protagonistas desse processo de intensa criminalidade e violência são as crianças e pessoas, até mesmo policiais, que não atingiram a idade de 25 anos. Gente que não havia nascido ou que estava na primeira infância quando, em 1986, começou no Estado do Rio de Janeiro a prática de vencer a violência exclusivamente pelo uso da força.


Será que a aplicação de políticas públicas mais consistentes no campo da educação com conseqüente abertura de oportunidades melhores de ocupação e renda não teriam oferecido aos bandidos de hoje e suas vítimas um destino diferente?

Mark Goldblatt criou o filme O Exterminador do Futuro, com o enredo de uma guerra entre os humanos e os robôs e fato principal, na decisão dos robôs de mandarem ao passado um dos seus com a ordem expressa de exterminar o garoto John Connor que, no futuro, seria o líder da resistência humana. A obra trabalha com uma definição incontestável: o presente é o passado do futuro.

Ora, se, de fato, temos o desejo de construir um ambiente que seja mais humano e não possuímos o dom de retornar no tempo para modificar o presente, só nos resta organizar melhor o futuro. E, se o interesse é reduzir o grau de violência, de criminalidade, de ausência de virtudes, o caminho não pode ser outro senão investir pesado na educação e gerenciar melhor os recursos destinados a aplicação das políticas públicas. Neste contexto, é preciso considerar a importância da lei que estabeleceu um piso salarial nacional para os professores da educação básica com carga horária de 40 horas semanais. Ela nasceu de um dos projetos de lei do Senador Cristovam Buarque, que fez da educação a bandeira principal e quase única de sua atuação política. O Senador atua na vida pública com a compreensão de que o futuro se faz no presente.

Há quem diga que a lei é corporativista, porque beneficia os professores sem qualquer garantia de resultado na qualidade do ensino. A valer o argumento, é o caso de perguntar: porventura, os salários que os governos pagam hoje aos professores do ensino básico têm garantido qualidade?


Do mesmo modo, tem quem grite contra a interferência de uma lei federal no ambiente de autonomia municipal. Mas, até aqui os municípios têm utilizado a autonomia que possuem na direção de melhorar a qualidade do ensino público?

A lei Cristovam Buarque não nasceria se a vida presente dos jovens brasileiros indicasse que os governos no passado cumpriram bem com o seu papel de produzir educação com qualidade.


*Jackson Vasconcelos é editor do site www.estrategiaeconsultoria.com.br

terça-feira, 18 de novembro de 2008

SEUS PERDIDOS, MEUS ACHADOS -de Andreia Donadon- texto quarto lugar no Festival de contos de Paranavaí.

Dora estava muito cansada, definitivamente esgotada. Os meses anteriores não tinham sido fáceis. Trazia o coração em ritmo acelerado; o sono triplicado pelas inúmeras noites em claro. Despejar lágrimas era cansativo. Escutar o barulho de vozes exigia o resto das energias poupadas. O burburinho cada vez mais longe, cenas lentas e o cheiro de vela queimando, penetrava suas narinas sem cor e dilatadas. Sentia o cheiro mais pelo barulho das chamas trepidando silenciosamente no castiçal de prata embaçado. Alguém não tinha feito o serviço direito. Não tiraram as últimas ceras que criavam uma crosta espessa e fedorenta. Fumaça acinzentada. O vôo da mosca imperceptível com barulho misturado às vozes de pessoas que não revezavam nem em uma ínfima virada de segundo. Dora sentia o vôo das pontas de asas das moscas batendo. Um chocalho familiar de pulseira... Cheiro de perfume abafando o fedor de vela queimada. Alguns dias antes a chuva respingava com violência lá fora, gotas grossas batiam no chão. A luz teimava em apagar enquanto o pai cantarolava uma música para ela. O quarto era constantemente limpo. Nas crises de falta de ar, o balão de oxigênio, um dos poucos equipamentos, pois era o único meio de chegar ar até os pulmões. Um suplício para ela e para o pai. Vivia com o coração sobressaltado diante das crises. O pulmão estava debilitado demais. Depois que a crise passava, ele sentava no chão da sala e chorava copiosamente: - quase a perdi! Falava baixinho. Foram inúmeras crises. A mãe tinha assistido a algumas e a calma que emanava de seu ser a chocava. Lembrou de um momento em que acabara de ter a crise mais forte de sua vida e ela acabara de chegar. As mãos entrelaçaram-se as de Dora e beijou-a carinhosamente no rosto e disse algo que não conseguiu escutar. Da fresta da porta viu o sorriso triste no rosto do pai. A campainha tocou estridentemente. Olhou o relógio no alto da parede do quarto e já passava das três e meia da manhã. O corpo não respirava mais. As lembranças teimavam em penetrar os pensamentos. A caixinha com seus perdidos... Fizera questão em perdê-los para morrer junto com as feridas. Dora nunca negou que o pai fosse a pessoa mais amorosa e doce que conhecera em toda sua vida. Não, isto jamais negaria. A bondade e o caráter dele foram imutáveis a tal ponto de cerrar suas cicatrizes que subitamente insistiam em abrir e sangrar. Feridas que nunca fecharam. Olhava o semblante angelical do pai, pairado, estático com as mãos sobre o caixão. O pai foi um anjo, tranqüilo, paciente, meigo, sofrido e de uma bondade que chegava a doer nela tamanha generosidade. Sempre entendia, aceitava e repetia: - Mais cedo, ou mais tarde, filha. Estas frases às vezes mais a irritavam. A complacência chocava. Não era possível uma pessoa ter tanta explicação para coisas inexplicáveis ou óbvias. Mamãe nunca nos amou e nos aceitou, foi rejeição a partir do momento que sentiu os sentimentos dos outros, pensou Dora. Era triste perceber como nunca amara seu pai, nunca o amara de verdade.

Alguns anos Dora fora tomada de uma doença grave acometida por febre alta, urina escura, mal estar e dores musculares. Com tempo os sintomas foram progredindo por uma coloração amarelo-dourada da pele e conjuntivas. De quarentena em casa. Hepatite. A comida, o prato, todos os cuidados e carinhos eram repassados pelo tratamento cuidadoso e preocupado do pai. As noites em que Dora quase padecera de dores e altíssimas temperaturas, os pedaços de pano embebidos em álcool repousavam nas partes do corpo.

- Cadê mãe, pai? Variava. Hoje ela volta pra casa?

- Volta Dora. Hoje ela volta...

- Que horas?

- Mais cedo ou mais tarde...

O sono invadia as crises de Dora pelo cansaço e os olhos só abriam no dia seguinte sob o olhar trôpego e desfocado da mãe. Semblante enrugado, cabelos desgrenhados e um palmo sem cor. Dora olhava para ela sem entender a frieza que emanava de seu ser. Sentia e sofria sob o olhar perdido em algum ponto invisível e um monossílabo da mãe: - Bem? Mal tinha tempo em balbuciar uma palavra e a florzinha do mato era repousada sobre a cama ainda com cheiro de mato e terra. Um pedido de desculpas? Ora, ela nunca tinha tentado ou se desculpado pelas ausências e falta de afeto. Quando aparecia estava com ressaca visível ou com dor de cabeça. O que mais doía em Dora era o olhar distante. Afago ou toque sutil bastavam os do pai. O costumeiro e amoroso olhar dele, guardado. A mãe tinha quitado o afeto pela maternidade. Só serviu para segurá-la a duração de uma gestação, depois não se lembrava mais, estava perdido. A florzinha abria as feridas da falta do carinho da mãe. Mirar a flor era sofrível demais. Inúmeras foram repousadas em seu leito e nunca entendera o sentido delas. Recusava-se. Esquecia as flores em qualquer canto do quarto, que com o tempo se perdiam no esquecimento, no relaxamento de querer matar a dor do desprezo. Foram inúmeras e incontáveis perdidas em algum canto da casa. A brisa do vento talvez as levassem ou o pai varresse o que sobrara delas no dia seguinte... Ou a decrepitude do tempo. Pouco importava para ela. Era previsível: mais dia ou menos dia, como dizia ele, viria e deixaria uma flor. Sumiria nas próximas semanas ou meses com algum homem, e o pai de Dora sempre esperaria o retorno, o arrependimento, a mudança. Ele sempre esperou, apostou uma vida nisto e mais triste para ela foi perceber a esperança até o último instante, no gesto inesperado: uma caixinha de veludo com a insígnia: seus perdidos e meus achados.

Dora acompanhava astutamente o barulho das pedras da pulseira se chocalhando e o cheiro de fragrância barata. Ela estava lá... Lembrou das palavras do pai e sua voz latejando nos ouvidos: - Ela sempre virá, minha filha! Segurou com mais força o choro que insistentemente teimava em despencar pelo rosto. As palavras do pai aumentavam sua solidão. Estava sozinho e abandonado. Mais cedo ou mais tarde: ela virá. Esta frase era conhecida e repetida inúmeras vezes por ele. Fazia questão de perdê-la. Entrava pelo ouvido esquerdo e saía pelo direito. Lamentava... Ela lamentava tanto. O cabelo totalmente descolorido e amarrado em uma fita vermelha. O rosto mais enrugado que de costume. As roupas amassadas e encardidas, as unhas comidas e com resto de esmalte velho. Ela era o foco de Dora. O barulho da mosca bailando no recinto e o cheiro de vela queimando não incomodavam mais. Semblante sisudo, olhos vermelhos e inchados. Remorso? Só poderia ser. Dora percebeu sentimento no rosto da mãe. A figura também se encolheu coberta em um xale de tricô preto que tapava todas as partes das costas. O osso estava apontando no tecido de lã. Estava debilmente desamparada e triste. Apagada. Pela primeira vez, Dora viu a mãe se apagar no meio das pessoas. Sombria e triste. Velha e cansada. Poucas vezes vira o rosto em harmonia. Raríssimas vezes que até se esquecera. Fizera questão de desprezar o retrato sobre a mesinha no canto da sala. Três figuras sobrepostas num fundo azul e verde. Três figuras abraçadas e felizes. Esta foto não combinava com os sumiços dela. A tristeza do pai e a carência de Dora. Doía olhar o retrato com a cena que não representava mais. Num ato repentino de revolta cortou o rosto da mãe do retrato. Jogara em algum canto da sala. Estava perdido ou foi varrido pelo vento ou pelas cerdas da vassoura junto com os ciscos. Perdera. Fizera questão. Fazia questão de esquecer as pontas que abriam as feridas. Abandonava-as em qualquer canto. Perdia-as em um lugar qualquer. Esquecia a existência delas, ou quando lembrava não tinha mais a prova da dor. O pai sempre entendera, inquestionavelmente compreendera e aceitava a atitude. As pontas da pulseira batendo na beirada do caixão chamou a atenção dela. Perdida em pensamentos que insistentemente fizera questão em apagar de sua vida. O chocalho da pulseira no caixão e as mãos acariciando seu rosto sem vida seguido de um choro muito triste. A mãe era uma incógnita. Desconhecida e estranha. Os perdidos guardados em uma caixinha de veludo pelo pai, pouco antes do falecimento colocado no guarda-roupa com a inscrição: seus perdidos e meus achados. Aquela caixinha tinha a passagem mais doce e feliz de sua vida familiar. As florzinhas do mato, o retrato constituído da família, os retratos da mãe carregando-a no colo, todos perdidos por Dora: achados e guardados por ele. Com gesto repentino, mas conhecido por ela, a mãe repousou sobre as mãos de Dora a florzinha do mato com cheiro de terra e mato molhados. Antes de fecharem a tampa do caixão lançou um olhar demorado sobre a figura estática da filha. Com o corpo sustentado por duas mulheres na procissão até o cemitério, o pai de Dora chorava convulsivamente e sua mãe caminhava silenciosamente atrás. O buraco fundo e pequeno engolia o caixão, a música antes da despedida aumentou os soluços e choro do pai: “fica sempre um pouco de perfume, nas mãos que oferecem rosas, nas mãos que sabem ser generosas”... A mãe jogou uma rosa sobre o caixão antes de ele afundar na terra.

- Mais cedo ou mais tarde, querida... Ela volta, não se preocupe minha filha. Ela sempre virá... Lembrou das palavras do pai. Dora foi tomada de um sentimento novo pelas imagens achadas e guardadas por ele e foi em paz com as flores repousadas sobre o seu corpo.


PARABÉNS ANDRÉIA. SAUDAÇÕES BAIANAS!

Andréia Donadon Leal - Déia LealDiretora do Jornal Aldrava CulturalGovernadora do InBrasCI-MGMembro da Academia de Letras Rio- CM e da AVSPEMembro da Academia Cachoeirense de Letras(31) 8893-3779(31) 8431-4648http://www.jornalaldrava.com.br/pag_deia_leal_plan.htm

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

ANDREIA DIAS- blues e pop rock

VISITE: Andreia Dias-blues e pop rock de qualidade.

Fotos em alta: http://www.andreiadias.com.br/FotosAndreiaDias.zip
Site oficial: http://www.andreiadias.com.br
Videos: http://www.andreiadias.com.br/videos.html
Produção e shows: http://www.scubidu.com.br

FUGA - de Alexandre Lobão

Você já teve um daqueles pesadelos que parecem não terminar nunca?
Daquele tipo em que você acorda, assustado e aliviado por sentir o calor e a segurança de sua cama, até que o mundo vira de cabeça para baixo, e você, apavorado, percebe que seus temores não eram um sonho, afinal?

E depois acorda novamente, e a cena se repete, e você acorda de novo, e de novo, sem nunca saber se continua dentro do mesmo e terrível sonho, ou se finalmente acordou?

Pois, para mim, esta foi uma noite daquelas.

Acordei banhado de suor e respirando com dificuldade, mas fiquei grandemente aliviado quando percebi que finalmente acordara e o pesadelo havia chegado ao fim.
Isto, por cerca de um ou dois segundos.

Foi o tempo que, assustado, levei para perceber que não estava em minha cama, e que o ar viciado que eu respirava combinava perfeitamente com a escuridão total que me cercava.

Tentei me mover, e percebi, desesperado, que estava preso em uma espécie de caixa. Sem parar para pensar empurrei com toda força a tampa, e não fosse o peso das lembranças me assaltando ao mesmo tempo em que meus olhos reconheciam o ambiente, eu poderia jurar que continuava no pesadelo.

Eu estava dentro de um caixão, que descansava sobre uma mesa de mármore na mesma cripta do cemitério da cidade que eu havia visitado no dia anterior.

Com o medo fazendo subir a bile de meu estômago, pulei do esquife, meus olhos aflitos procurando a saída e circulando nervosos sobre inúmeros caixões, organizados em prateleiras de cada lado da cripta.

Com um grito que morreu em um nó na garganta, percebi que vários dos caixões se abriam, como se o barulho que eu fizera tivesse acordado seus ocupantes. Apesar da escuridão do local, pude entrever corpos magros e pálidos, olhos vermelhos e dentes. Grandes e afiados dentes.

Em pânico, disparei pela única saída da cripta, que levava ao mesmo corredor que eu percorrera no dia anterior. Senti, mais do que vi, as sombras escuras que se aproximavam e gritavam como que em agonia, logo atrás de mim.

Ao fim do corredor pude ver um raio de luz, uma esperança ao longe que minhas pernas pareciam não ter força ou velocidade suficiente para alcançar.

Com o desespero me impulsionando, não ousei me voltar, mas pude sentir o frio das mãos esqueléticas que tentavam me agarrar, rasgando minhas roupas e arranhando as minhas costas. Pelo canto dos olhos, pude ver sombras correndo, movendo-se de maneira estranhamente inumana não apenas no corredor atrás de mim, mas também pelas paredes e teto.

A pouca distância.
Minha mente, estranhamente confusa, lembrava da cena semelhante, ocorrida no dia anterior: eu entrara na cripta, para roubar um crânio como uma estúpida prova de coragem para meus amigos.
As memórias, flutuando, trouxeram de volta à boca o sabor aziago do medo que senti quando, aterrorizado, vira – como agora - os caixões se abrirem lentamente.
O desespero repetido de correr pelo mesmo corredor, com as mesmas sombras me caçando, quase me levou à loucura.

Sem tempo para articular nem um pensamento a mais, saboreei a sensação de júbilo e vitória ao me atirar para a luz do dia, deixando na escuridão os vampiros que gritavam de frustração e ódio.
Apenas quando senti a luz do sol queimando minha carne até os ossos foi que lembrei que no dia anterior havia uma grande diferença!
Eu havia corrido até o fim do corredor e, da mesma maneira, atirei-me para fora, deixando os vampiros para trás.

Porém a luz do dia, agora mortal para mim, me lembrava que no dia anterior, ao fim do corredor, eu havia encontrado a noite.
E vampiros não temem a noite.

Alexandre Lobão, escritor de Brasília

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

CAJUEIRO-de Carlos Vilarinho

Lembro perfeitamente das três salas geminadas que compunham a pequena escola que minha mãe dirigia. Uma era da primeira, outra da segunda e a última ao canto próximo ao campinho de barro onde jogávamos “golzinho”, da terceira série primário. Eu e Jorge estávamos com nove para dez anos e assim como todos os outros que brincavam, éramos, sobretudo ali, alunos de minha mãe. Não era só comigo o regrado rigoroso de minha mãe com relação aos livros. Todos tinham que ter a lição prontinha na ponta da língua para a sabatina geral no fim de tarde, quando então éramos liberados para o “baba”. Eu propriamente nunca tive problemas em ler e absorver o lido, quer dizer, às vezes me distraía criando imagens saídas dos próprios livros de História, Geografia e até Matemática. Imaginava um mundo em que os números tivessem uma relação mais humana e não tão radicalmente exata. E assim, nas carteiras duplicadas criava histórias com números, inventava países nos mapas de Geografia e contava ao colega que sentava comigo naquelas carteiras antigas para dois alunos, que era o Jorge. Foi quando comecei a perceber levemente que cada um ser humano tem uma visão diferente das coisas que se apresentam. Claro, isso hoje é óbvio, mas um menino de dez anos acha naturalmente que todos pensam iguais. E provavelmente todos pensam iguais mesmo. Não só o colega de carteira, mas os outros meninos não entendiam a minha criatividade e diziam que eu era meio doidinho, pois vivia lendo Reinações de Narizinho. E só obtinha um pouco de respeito e respaldo nas brincadeiras, porque dava conta da bola e a tratava com carinho e destreza quando ela chegava aos meus pés. Então, tempos depois percebi de fato um hiato, ou um abismo, entre eu e os outros meninos quando descobri durante os babas que me puseram o apelido de Tistu, o menino do dedo verde. Tratava-se de um personagem diferente e hoje não lembro a história direito, li o livro à época exigido pela professora de Português, mas recordo-me que o menino, o Tistu, tinha uma ligação muito forte com a natureza. Ele enfiava o dedo na terra e nascia uma planta, era mais ou menos isso. Ganhei esse apelido, que ainda bem fora efêmero, depois de mais uma visão perceptiva que tive e quis partilhar com todos. Novamente ninguém entendera a beleza e originalidade que o Universo oferece gratuitamente. Mostrei a todos um cajueiro brotando da castanha. Tivéramos aula de Ciências, germinação, e durante a aula lembrei-me de ter visto o nascimento do cajueiro. No recreio levei Jorge e outros quatro ou cinco colegas para mostrar a generosidade e beleza da natureza. Estava bem pequeno, o talo verdinho ainda não tinha força para se manter em pé e a castanha aberta como se estivesse parindo não estava totalmente sob a terra. Eis que num rompante estúpido e de natureza vilipendiada, um dos meninos, se não me engano de nome George, arrancou brutalmente a planta bebê. Talvez mais estúpido e grosseiro, tanto quanto e tanto, foi a gargalhada maciça que os outros deram depois do assassinato da plantinha. Tive ódio, vontade de chorar também, mas não chorei. Depois ouvia sempre que passava que era o livro do menino do dedo verde que estava me deixando doidinho. Cheguei a ouvir comentário até dos pais dos meninos. O que, agora eu sei, não era de se estranhar.

O tempo passou e fui aos poucos renegado das brincadeiras, também não fazia mais questão de interagir. Menos Jorge que apesar de ter sido também um homicida da flora, continuou vindo a minha casa e brincar comigo. Jogávamos bola só nós dois, um contra o outro, e líamos Tex Willer e Zagor juntos. Quer dizer eu tinha que ler em voz alta, pois ele tinha preguiça de ler além de ser lento e vacilante no trato com as letras. Passou a vida me dizendo que não sabia, não entendia, como eu agüentava ficar parado diante de um livro durante horas. Aquilo de ler definitivamente não era para ele. Dizia. Apesar de todos os esforços da nova professora em fazê-lo leitor, como eu era, foram inúteis. Jorge ainda hoje critica a minha leitura e continua sem entender o porque de tantos livros em minha casa. Tornou-se pedreiro e mesmo ele sem entender a razão da presença dos livros, diz paradoxalmente ao seu comentário iletrado que somente agora nesses tempos de hoje veio a compreender minha brincadeira quando criança de um mundo diferente dos números. Pois assim que constatou seu próprio espaço, me disse que vive no mundo dos algarismos e não entende muita coisa quando um engenheiro explica.

Dia desses ao subir num ônibus para ir dar aulas, ouvi uma voz vinda da cadeira do cobrador.
_Ainda não desistiu dos livros, não é?
Era George, o assassino de plantas bebê.
_Ô que jeito! Jamais tive outra escolha...

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

UM MINUTO-de Mayrant Gallo

Alguém neste momento engraxa os sapatos, em casa, ouvindo música. É um homem, e o filho mais novo se aproxima e diz alguma coisa incompreensível, que, no entanto, faz o homem sorrir e parar o que está fazendo, o sapato numa das mãos e a escova na outra. A criança também ri. Ri sempre, o que não acontecerá quando se tornar adulta. Adulta, terá dores de todo tipo, da mente, do coração, do físico. Pensará na morte, mas não terá coragem. Nem mesmo para atravessar a rua...
Bem perto dali, numa praça, um homem e uma mulher brigam. Quem passa já não se surpreende. Desde sempre os casais se pilham um amor que não perdura. A moça chora, parece a mais sentida. Sabe que começar de novo é mais doloroso do que se deixar abraçar pelo tédio, jogar com a rotina. Ele pensa diferente: a cada mulher, a cada homem, o ser humano revive, retorna ao princípio e, aliás, muito mais experiente. Se ele agora se apaixonasse, saberia não sofrer tanto e tirar o melhor proveito da situação. Amaria melhor. Viveria melhor. Seria capaz de tocar um coração só de contemplar um rosto. No exato momento em que se levanta, por não suportar as lágrimas da companheira, alguém ali perto, na sacada de um prédio, sonha. Um sonho de água, de prados, de amplos céus e angustiantes ocasos. Se pudesse, passaria a vida em trânsito, viajando. Mas sequer sai de casa. Quando muito para ir à padaria ou à igreja, na qual os casamentos a entristecem. Se lhe perguntassem por quê, apenas diria: por já vê-los morrer, mesmo ali, no começo. E logo ela, que jamais se casou e que certamente não se casará...

Mais adiante, numa luxuosa sapataria, uma mulher experimenta uma sandália. Está ali há mais de uma hora. O vendedor só não se aborreceu ainda porque, a cada vez que se abaixa para pôr em seus pés um novo par, lhe flagra a calcinha branca, no fundo das belas pernas mal-protegidas pela saia justa. Do outro lado da rua um camelô prega sua mercadoria pensando em outra coisa, que a vida está passando, que ele está mais velho, que já não tem ânimo e que mesmo quando bebe a tristeza permanece, e pior, intensificada... Jamais pensou nestas coisas, não que se lembre. Seus pensamentos sempre estiveram voltados para ganhar dinheiro ou transar com uma mulher ou para a próxima rodada do futebol ou a anterior, talvez feliz, talvez insuportável. O que ele não sabe é que nesse minuto, em que grita, outro grito lhe chega, de compreensão, de revelação até, e que, se ele fosse outro, ficaria atônito. Como é e quem é, apenas se desconhece por um rápido instante, logo apagado...
Muito longe dali, talvez num outro bairro ou numa outra cidade, alguém dilui numa mensagem corriqueira, pela internet, algumas cifras de amor. O outro ou a outra, que há de receber a mensagem, ficará sob suspense, o coração aflito, um desejo a roer-lhe as entranhas. De pronto, redige uma resposta, que é como um disfarce, um ao-mesmo-tempo-ceder-e-se-guardar. Mas é tudo, não poderemos até o fim deste minuto saber o desfecho dessa dupla audácia... Ou descobrir se eles são solteiros ou casados, se estão começando ou recomeçando, se estão amando ou traindo. Ou se apenas simulam em palavras o que não têm coragem de pôr em vida...
No mesmo lado da rua, um homem entra num bar e pede um trago. Um outro pára numa banca de jornal e olha as capas das revistas, os jornais. Detém-se sobre as mais audaciosas, a expor seios, bundas, pernas. O jornaleiro atende uma jovem, que só quer saber onde fica tal rua, cujo nome pronuncia erradamente, o que causa uma confusão, não permite que o homem a ajude. Uma velhinha atravessa a pista em direção ao prédio em que mora. Ela não sabe, nem nunca saberá, que sua neta, neste minuto, se entrega por amor, na escada escura, ao filho do vizinho. Até seria bom que ela soubesse de tudo, pois seria capaz de ser mais compreensiva que os pais. Na idade em que está, a juventude lhe faz muito mais falta que água, comida, amor, remédios. Adoraria ter de novo quinze anos e se entregar de corpo e alma a um rapaz. Ela, que jamais soube o que é isso, que apenas se casou e para fazer amor obrigava o marido a apagar a luz e fechar porta e janela. Hoje, não só não apagaria a luz como o obrigaria a fazê-la mais feliz, a fazê-la mais viva...
A praia está cheia, embora a primavera ainda nem tenha chegado. Corpos se distendem na luz, enquanto outros os observam. Há os corpos que correm ao longo da orla, aparentemente alheios, mas ainda assim sedentos de expectativa, plenos de um amor renovado. Também há os corpos só preocupados em combater ou vazar a defesa adversária. São a maioria e quando vêem uma mulher é como se vissem uma esfera, da qual resvalam e que por isso é preciso aproveitar ao máximo os poucos segundos em que se sustentam...

Um homem descai sobre a escrivaninha, exausto. Uma mulher chora sentada na cama, só de combinação e sem ninguém que a ame... Um pai e uma mãe loucos conspiram contra a vida do filho de apenas três anos. Voam pipas na tarde, presas de mãos infantis e de outras já adultas, mas que preferem continuar assim, indiferentes à morte. Um ônibus se enche de crianças, e um outro de trabalhadores braçais, mais silenciosos que lápides. Uma mão escreve um poema, uma outra desenha, e outras matam, a tiro, facada, estrangulamento, veneno. Uma saia é arrancada à força, num matagal. Seios miúdos e ainda ingênuos nascem diante do espelho, para espanto de esplêndidos olhos... E dois homens se beijam ocultos por uma árvore, e uma mulher faz intriga contra sua própria amiga porque a inveja, e duas turmas de garotos entram em choque num terreno baldio porque um deles olhou com desejo a irmã de um outro....
Uma bomba explode do outro lado do mundo, e em meio aos vidros, aos móveis destruídos, aos corpos destroçados, um par de óculos, surpreendentemente intacto, reflete esse primeiro minuto de absoluto silêncio e poeira, e é como se nele se gravasse a eternidade, a humana incerteza.


Mayrant Gallo publicou O inédito de Kafka (CosacNaify, 2003).
Crônica veiculada no Correio da Bahia, em 31/08/2003.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

ESCUTA-de Camila Vilarinho

Escuto você.
Surgem versos vindos,
que escorrem de minh´alma.
Trazem saudade de um lugar de lá,
tão perto daqui.

Não lembramos.
É Fardo esquecido.
Carregamos juntos, mesmo alienados.

Seja adormecidos em sonhos,
ou despidos da ausência.
Ecoam versos.
Do mesmo jeito, em desatino.

Fala sutil que ecoa.
Verso tímido que nem gota de garoa fina.
ou na galhofa de todo dia.

Lentamente escolhemos nos ouvir.
Lentamente nos escrevemos.
Sobre qualquer coisa.
Aqui e agora.

Ao final o melhor; ao longe e distante.
Certamente.

Nos escutando, nos escrevemos.
Versamos.


Camila Vilarinho, poeta, estudante de Psicologia. E minha prima, claro. É de família eheheheh...

domingo, 9 de novembro de 2008

ELEIÇÕES DO RIO DE JANEIRO_ de Jackson Vasconcelos

As eleições na Cidade do Rio de Janeiro celebraram a hipocrisia legal.
*Jackson Vasconcelos

1. Para legalmente ser candidato a prefeito do Rio de Janeiro, o Eduardo Paes precisou deixar a Secretaria Estadual de Esportes e Lazer. Adotou a providência no momento final do prazo. A sua demora criou polêmica e se transformou num pedido judicial de cancelamento do seu registro de candidato. A lei contém a determinação para evitar que candidatos que ocupem funções públicas no Executivo as utilizem em favor de sua candidatura e em prejuízo da igualdade de condições com os seus adversários. A determinação legal parece, à primeira vista, uma excelente providência em favor do sistema republicano, que se desmancha quando o Governador e seus demais Secretários; o Presidente da República e todos os seus ministros e quem mais queira, não estiveram impedidos de fazer campanha para o seu candidato. Isso, sem contar a hipocrisia de se entregar ao substituído a prerrogativa de indicar o substituto.
2. A lei eleitoral proíbe, categoricamente, e pune com cancelamento de registro de candidatura, a participação dos candidatos em solenidades para inauguração de obra pública. Medida que visa impedir que o eleitor compreenda as obras públicas como elementos essenciais de decisão do voto. Mas, a lei não impede que os candidatos utilizem as mesmas obras nos programas eleitorais de TV e rádio e muito menos nos prospectos de campanha.
3. É entendimento da Justiça Eleitoral que o mandato pertence aos partidos e, por conta desse entendimento, ela andou a cassar mandatos de vereadores, deputados federais e deputados federais. Medida saneadora, diz ela. Mas, nada impediu que os candidatos a vereador de um partido pedissem votos para os candidatos a prefeito de outros partidos, mesmo quando o seu foi às ruas com candidato próprio.
4. Diante das variadas comprovações de uso de caixa dois para financiar campanhas eleitorais, a lei passou a exigir que as prestações de contas dos candidatos fossem feitas parcialmente antes de terminado o período eleitoral, para permitir que os eleitores soubessem como os candidatos financiam as suas campanhas, antes de escolhê-los. Só que permitiu que o nome dos financiadores fosse providência exigida somente para depois de proclamados os resultados. Interessante, né?
5. Por fim, a lei impõe obrigatoriedade para o voto, mas permite que os eleitores que não votem, justifiquem a ausência, sem qualquer dificuldade e sem esclarecimento comprovado do motivo. Temos, então que a obrigatoriedade é, na verdade, para o comparecimento aos locais de votação.

E, desse modo, deve ter sido em todo o Brasil.


*Jackson Vasconcelos é editor do site www.estrategiaeconsultoria.com.br

sábado, 8 de novembro de 2008

O QUE NOS CABE- de Carla Dias

- E se for hoje?
- Então, viveremos o dia com o desespero em êxtase.
- Será hoje...
- Pode ser...
- Será que será?
- Vai saber...
- O tempo tem dentes... Vai nos mascar feito chiclete.
- E de qual velocidade seríamos partidários?
- Nesse dia? Do desejo desmedido; daquele quê oferecendo prazer insustentável.
- Comeríamos?
- Frutas desmascaradas de estação. E engoliríamos o ócio... Só haveria espaço sem tempo para ações... Desmascararíamos teorias.
- Teorias podem ser construtivas, fortalecer realizações...
- Ações dão na poesia que me ganha e disso não consigo me desfazer, e nem quero. Afinal, as teorias que ficam na teoria acabam por desbotar sonhos.
- Arrepios provocados por beijo na nuca...
- O quê?
- Pedirei uma porção deles... Se for hoje...
- Pra quem?
- Sei lá!
- Sabe lá?
- “O que é ter sede em frente ao mar?”
- “Sabe lá?”
- Sei... E você?
- Talvez...
- E?
- Surrupiarei trocados de amigos tacanhos e comprarei balas de hortelã.
- Por que balas?
- Balas de hortelã me lembram a infância com meu avô. A língua refrescada, atiçando gargalhadas. Era troco do pão, da pinga, da lata de molho de tomate... Bala de hortelã era o tipo de troco que se dava a menino apaixonado pela infância; pelas suas brincadeiras e suas seriedades, como era o amor que eu tinha pelo meu avô... De uma seriedade imensamente feliz.
- E se não for hoje?
- Pode ser amanhã, né?
- Pode...

LEIA NA ÍNTEGRA: http://crondia.blogspot.com/2008/10/o-que-nos-cabe-carla-dias.html

Carla Dias escritora paulista

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

SELVAGEM SUAVE SIMETRIA- de Alexandre Lobão

À minha metade: saber e sabor em unidade
"Vozes veladas veludosas vozes",
Soam sentidas, e sem suspeitar,
Ainda andam em antros atrozes
Procurando palavras para precisar.

Palavras para precisar o por quê
De acidentes assim ansiarem acontecer:
Simetrias selvagens soando suaves
voando como veladas veludosas vozes.

Iniciam iridescentes nas íris inteligentes
Finalizam na face, de fulgor fulgente
Ser e Saber, em suave selvagem simetria.

Sendo selvagem, a simetria suave se separa,
Ainda assim, a amálgama aparece e assombra:
Matéria e Mente, manadas em maviosa melodia.


Alexandre Lobão escritor de Brasília e grande amigo. Valeu, Lobão!

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

O AUTOR COM A PALAVRA- conversa literária com os autores Aleílton Fonseca & Gláucia Lemos



Confesso que o temor me possuía antes de tudo terminar bem, como bem terminou. Havia em mim o universo da dúvida. Sabia que o sonho em organizar e realizar um evento verdadeiramente literário, com a presença de escritores renomados, reconhecidos e premiados poderia encontrar o abismo da decepção de um auditório vazio, ou com três ou quatro cabeças. Confessei isso ao final à escritora e amiga Gláucia Lemos já feliz e aliviado por tudo que deu certo.

Sempre me aporrinhava quando estudava numa Universidade e ouvia, colegas estudantes de Letras falarem abertamente que Literatura não importava que o bom mesmo era estudar Língua portuguesa. Era mais importante. A gramática era mais importante. Como se as áreas de estudo das Letras fossem dissociadas, nunca consegui enxergar assim e ficava intrigado quando ouvia essa inferência. A interdependência que a Língua tem com a Literatura e vice-versa evidentemente é tão latente que a única conclusão que chegava é que o estudante não fazia leituras efetivas. Lia por ler. Lia para fazer prova, enfadado e até com ódio do autor que na maioria da ocasião, para não dizer sempre, já estava morto. Comentava isso também no caminho com a escritora Gláucia Lemos.

Finalmente ao chegarmos à Universidade, onde a autora relembrou com saudade seus tempos de estudante no Convento da Lapa, constatei um pequeno alvoroço e a preocupação da companheira Priscila que me ajudara em minha ausência checando os equipamentos. Felizmente tudo estava bem e começamos.

Não estiquei em delongas a apresentação, muito informal até, fiz uma citação de Gabriel García Marquez, “narrar é levitar” e dei o lugar a quem de fato nos falaria. Gláucia e Aleílton, os autores convidados, sentaram-se à mesa e a autora começou sua fala. Comentou primeiramente o universo da criança, a literatura infantil. Disse-nos que a criança não quer ser tratada como boba só porque é criança e que o autor que escreve para os pequeninos deve ser tão perspicaz e atento quanto eles próprios. Particularmente acho muito difícil escrever para os menores. É um desafio num labirinto tênue, qualquer coisinha fora do lugar, uma palavra, uma interjeição que seja, perde-se o leitor mirim. Contou-nos sua trajetória como moradora da Pituba, o bairro que a deixa literalmente em casa, e seu processo literário. É o que todos que não escrevem, digamos, com atenção e imaginação, querem saber. Difícil também explicar, talvez não haja explicação. Faço uma comparação litero-virtual e um pouco esdrúxula, seria um download, nos dias de hoje. Ou descargas elétricas espalhadas no ar e o escritor com sua antena captando-as. Assim talvez. A autora falou do seu último livro escrito, “Bichos de conchas”, que li e já comentei por aqui.

Durante os últimos dias que antecederam esse encontro literário, senti a ansiedade de alguns estudantes quanto ao autor Aleílton Fonseca. Autor lido e discutido com intensidade em outros cantos do mundo e também na Universidade. Em sala de aula, durante a disciplina Literatura Brasileira IV, formada em sua maioria por formandos, tivemos a oportunidade de ler o texto escrito por ele denominado “O Poeta na Metrópole: “Expulsão e Deslocamento”. Disciplina com temática urbana. Dessa forma, muitos me perguntavam insistentemente se ele iria realmente ao encontro. O que aumentava e exprimia em demasia significativa a minha responsabilidade para o evento. Quanto a presença dele estava tranqüilo, pois já havia me confirmado quatro vezes, eu acho. O meu temor real era o esvaziamento que não ocorreu.

Aleílton começou falando talvez do ponto mais crucial na relação docência-literatura. O que havia comentado com a autora Gláucia e que disse lá em cima no início, foi o ponto de partida para suas palavras. Ressalto aqui que o escritor ainda não estava presente quando conversava com a autora sobre a nuance do professor de Língua portuguesa e sua preferência pela gramática. Claro, o autor falou principalmente da importância maior e mais prazerosa que é o ensino da literatura nas salas de aula. A literatura atual, o mundo de hoje, a vida de agora. Os autores contemporâneos. Para ele, e para mim também, é assim que se leva o indivíduo a melhorar-se. Pensar sobre o que está ao seu redor, a sua identidade e a sua realidade com ele mesmo e com o outro. Falou da importância do curso de Letras Vernáculas. Comparou com outras profissões, sempre com muito respeito, mas exaltando o mérito e até o prestígio que tem um professor de Língua portuguesa e Literatura.

Em seguida abriu-se o debate. Aqui confesso orgulhosamente que não me lembro de um encontro literário, com escritores gabaritados, em que houvesse uma participação efetiva e intensa do público como esse “O Autor com a Palavra” do dia 04/11/08 na Universidade Católica do Salvador. Sou um homem de Letras, autor e professor, já vi e participei de encontros, debates, conferências, simpósios etc... Mas não como a de ontem. As questões eram levantadas uma após outra. Os autores respondiam a todas com o máximo de empenho e entusiasmo que ganhou o encontro. Tanto Gláucia, como Aleílton foram de felicidade singular nas respostas e na condução do pensamento que ali efervescia. Coisa de escritor.

Ao final, o reconhecimento de um grande evento e que ninguém esperava que fosse tão grandioso e significativo. Tenho certeza que as pessoas que ali estavam, saíram com uma visão mais clara, real e atual do fazer literário.

LITERATURA É IMPRESCINDÍVEL para o ser humano.

Carlos Vilarinho 05/11/08

domingo, 2 de novembro de 2008

VERMELHO, AMARELO E BRANCO- apresentando Camila Vilarinho

Vou me estruturando com fio de navalha na carne,
desaguando no riacho lavo meu sangue.
Vermelho e inchado meu corpo grita em pane
e minha cabeça gira entorpecida.
Grito, grito...

Lavada de água doce minha carne se acalma,
minha alma aquieta
e se afogueia de pronto em pranto.

Choro como quem canta;
danço como quem grita;
grito com minha dança em prantos.

Graciosa e grave.
Gravemente ferida.
Docemente encantando
paraliso (paraíso) e balanço.


Camila Vilarinho minha prima estreando no mundo das letras.

sábado, 1 de novembro de 2008

DOS PROCESSOS CRIATIVOS-de Clevane Pessoa

Formas se formam no espaço da mente.
Semente a semente,
túmidas, descem do imaginário.
Brotam surpresas e reinvenções
do mundo,tão antigo
desde que aqui chegaram.

De vez em quando, abrem invisíveis asas,
para proteger a idéia
do sol ofuscante
de sua criatividade.

De vez em quando, sussurram
e comandam essas mesmas asas
os levem para longe, para o alto,
em busca de silêncio absoluto.

Recolhidos hibernam,
em suas próprias casas mentais,
passam por muitos partos
e renovação.

Depois, sacodem as penas de plumas
e retornam, grávidos
de intenções.

E então, criam ,
nova/mente.

Belo Horizonte, MG, Brasil.

DOS PROCESSOS CRIATIVOS
(AOS ARTISTAS PLÁSTICOS em 08/05/2007)