sábado, 27 de setembro de 2008

ALERTA - de Flamarion Silva

Meus olhos contemplam o mundo
E vêem tudo num minuto,
Só não vejo este décimo passar,
Mas respiro ainda um segundo.
Cada vez que ele passa,
Já morri um pedaço,
Já ingeri um nada de nada
E já senti um tudo de tudo.
Apenas não percebo ao que chego nesse espaço,
Que de repente é vital,
Preciso e curto.
Quem sabe amanhã está longe,
E esta poesia seja apenas um alerta,
Ou quem sabe preveja luto
A quem lê o que escreve o poeta.
Mas, não se assuste, amanhã já passou, foi ontem.
E você nada fez, apenas dormiu, acordou,
Passou pelo o que não viu, não sentiu,
Apenas passou.
Qual o teu nome?
Sua carne já está apodrecendo
E o seu passado nem existe,
Não está nos livros,
Não está na memória,
Nem no arquivo morto – dos vivos.
Seus netos vão procurar encontrar o que nunca esteve,
O que nunca se soube, o que se perdeu.
Você já ouviu falar em Shakespeare? Napoleão?
Eles existem ontem e persistem hoje,
Como fantasmas nos livros, na Pátria.
Então se apresse, agarre este segundo.
Cuidado! Ele pode ser a morte; pronto, já passou.
E você nada fez, nada criou,
Apenas dormiu, não sentiu,
Apenas passou.


Flamarion Silva é escritor baiano, contemporâneo de Carlos Vilarinho, Renata Belmonte, Tatiane Gonçalves, Nélio Rosa, Heitor Brasileiro Filho, Andréia Donadon, Clevane Pessoa, Edinara Leão...

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

PÉROLAS DE MINHA INFÂNCIA(iniciação poética)- de Carlos Soares de Oliveira

Quando escrevi meu primeiro texto realmente poético, eu tinha uns 8 ou 9 anos. Cursava a terceira série e me rendeu também minha primeira nota 10 na escola.Se não me engano, talvez a única, pois eu era um aluno mediano, meio largado.Só estudava mesmo na reta final, aí sim, queimava as pestanas para passar de ano.Foi no dia que a professora Dona Jandira, colocou nas carteiras, uma estorinha iniciada por ela e o dever de casa era, cada qual, terminar com sua própria imaginação.

A estorinha dizia de um veadinho, perdido na floresta, sem sua mamãe.Terminada a aula, cheguei em casa e vi minha mãe, no tanque, concentrada nas roupas e nos problemas.Ela não notou minha presença. Fiquei ali vários minutos olhando-a e naqueles momentos, lembrei-me do veadinho e fiquei pensando. Nunca me imaginei sem minha mãe.Como eu me sentiria de repente sem ela? Ela... que cuidava de minhas doenças. Que colocava comida no meu prato.Que penteava meus cabelos para eu ir pra a escola.Que me ensinou Pai Nosso e Ave Maria.Logo me imaginei chorando perdido, igual ao veadinho da estória, porque o mundo, afinal era uma selva perigosa.

De repente ela se virou e disse: Você está aí, meu filho? E por que está me olhando assim?

Então me aproximei e abracei sua perna dizendo: Porque eu gosto muito da senhora!
No que ela agachou, me abraçou com o avental molhado e deu umas alisadinhas no meu rosto, respondendo: Ah... meu filho! Só você mesmo para animar meu dia. Pra que vou ficar triste se tenho um filho tão bonito e tão doce? Vem, vou colocar comida pra você.
E foi puxando minha mãozinha esquerda, que mais tarde escreveria meu primeiro texto poético.
Claro que não me lembro dele todo, mas me lembro de como o terminei. A mamãe do veadinho, quase tão frágil quanto ele, mas abnegada, voltou, enfrentou perigos, fugiu das feras, passou fome e sede, mas encontrou o filhinho e assim, viveram felizes para sempre.Ainda pus uma nota no final que dizia que nenhum filho merece ficar sem a mãe e que nenhuma mãe merece ficar sem o filho. E que o amor de mãe é o que mais se aproxima do amor de Deus.

A professora não corrigiu os trabalhos no mesmo dia que entregamos. Passaram-se alguns dias, até que ela me chamou: Carlinhos,venha aqui na frente, por favor.
Ai,ai,ai. Professora chamando na frente não deve ser coisa boa. Menino sempre está com impressão de que aprontou alguma, mesmo não tendo aprontado. Só não fui com muito medo porque Dona Jandira era uma professora muito carinhosa. Poderia no máximo repreender, sem muita briga.Ela disse: Adorei sua estorinha.Parabéns, ganhou 10! Muito linda! Onde você buscou inspiração, menino? E eu respondi: Na minha mãe. Porque nunca havia me imaginado sem ela.Acho que eu ficaria igual ao veadinho da estorinha.

Pois bem, ela fez mais alguns elogios, leu para a classe toda e disse que levaria para outras professoras lerem nas outras salas.Eu não tinha a dimensão exata do que aquilo representava, só queria curtir meu "10" e contar pra minha mãe, afinal ela foi a musa.

E assim tudo começou. E assim a poesia me trouxe até aqui.Uso a poesia como um escudo.É minha espada do bem, ainda que eu seja super-herói de mim mesmo. Mas jamais vou me trair.Com ela, superei obstáculos, problemas difíceis, dificuldades financeiras, amor fracassado, insônia, quartos de pensão, saudades dos irmãos, amigos que morreram. Com ela, derrubei arrogâncias. Com ela aprendi mais sobre humildade.Através dela, eu evoluí, como homem, como gente.Aprendi a ser manso.Aprendi a ver a felicidade nas coisas simples da vida.Com ela, fui forte. Fiz gente sorrir e chorar. Jamais me deixei abalar. Pelo contrário, foi nos momentos difíceis que escrevi alguns de minhas poesias preferidas, tipo: Aqui jaz um flor... O Sonho das estrelas... Fênix...Ícaro Moderno, etc. Digo numa poesia uma frase assim: ‘Cada poesia é uma flor que sai de mim, que eu rego e entrego.E que esse jardim seja fértil até o fim’. Não faço poesia para mim.Faço para as pessoas.Gosto de dar poesia a elas.Tem poesia minha em todo canto. Espanha.Portugal. Estados Unidos. Canadá.Austrália. Belo Horizonte. Ipatinga.Vitória. Rio Grande do Sul.Goiás.Pernambuco. Cada amigo que mora distante tem um pedacinho de mim.Minha parede também está cheia delas. A poesia é meu charme. Eu simplesmente amo poesia.
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CARLOS SOARES DE OLIVEIRA 17-07-2008

terça-feira, 23 de setembro de 2008

CIDADE-MULHER (para as prostitutas) - de Carlos Vilarinho

Meus olhos passeiam errantes pela cidade. Palhaços contundentes, cheios de erotismo e palavras berrantes na ânsia do pão misturam-se às imagens dobradas da avenida. Dobraduras de Drummond. Essas ruas agitadas de passantes nuas, sem poetas. Entediadas e enternecidas, longínquas de pensamento. Nas ruas, Deus e o tempo estão presentes. Marcam em absoluto a resolução do homem em tornar- se solitário. Correndo para garantir um lugar ao futuro. Que futuro? A tumba.

Quando ela passou de salto alto e olhar de cama, o frenesi me assaltou. Segui com os olhos. Aquele amor estava nas notas reais de meu bolso. Pensei no texto. Prostituta e literatura, dois amores. Parentes, irmãs, uma dentro da outra. Uma possuía a outra. Afonia geral. Ela, somente ela, descia a ladeira do São Bento e levava consigo o sentimento do mundo. O poeta do condor observava. De repente o temporal desabou e tudo ao redor da praça ficou cinza. O mar ficou cinza e a imagem do forte estava salpicada em minhas lentes. Ela escondia-se sob as árvores do canteiro da igreja. As vozes ressurgiam apressadas. Eu, absorto, olhava a extensão da avenida chuvosa e os transeuntes pobres. Sonhava acordado e embaixo de chuva com o olhar de cama. Excitação que deveria ser efêmera, amor impossível. Benfeitora dos homens solitários.

Não há mais o tempo do carrinho de primavera que passava anunciando sorvete de mangaba, chocolate ou dust miller. Do bom pastel chinês depois da sessão no cinema Guarani. A praça não balança mais com o som de Dôdo e Osmar. A cidade cresceu para os flancos, abriu-se, adentrou-se na mata atlântica e paralela.

Os homens por sua vez, não cresceram em flancos. Tomavam rapidez em si mesmos. Os homens não lêem poesias. Por sua vez, a cidade é mulher, sempre fora mulher. A literatura é mulher. A mulher é um poema belo e inacabado. A cidade é vaidosa e a mulher cresceu mais que os homens. Algumas majestosas. Outras tão majestosas e pedintes de amor que levam um travesseiro na alma. Ela desceu a ladeira de São Bento, seguiu em frente e entrou numa casa de luzes. Bebi e fumei à cidade. Não vi amigos, só trovadores em eco e dança sensual. Os paralelepípedos davam topadas em pés trôpegos num terreiro católico. Chicotes que voam em capoeiras. Então com o limo das pedras e o odor dos becos mijados, já turva a visão em cravo de álcool, vi novamente o salto alto. Ela me olhava em compaixão. Eu lembrei do desejo, mas cambaleante, caí. Agachada e sem nada por baixo, vi o recorte talhado da cidade. Os homens apararam a mata, a mulher é vaidosa e a cidade cresceu mais que os homens.

domingo, 21 de setembro de 2008

BAD TRIP - de Andreia Donadon

Dora não sabia ao certo onde e com quem estava. Não sabia se estava retornando de um sono profundo, em que os anjos a tinham resgatado das profundezas do inferno. Sabia que os pesadelos tinham tomado vida. Começou a ter fortes alucinações áudio-visuais, ansiedade, depressão, reações paranóicas, incoordenação motora e desconforto físico. Com os olhos esbugalhados querendo soltar das órbitas, via as coisas se movendo de uma forma estranha e inusitada: móveis, roupas, janelas, malas, ratos, baratas, pneus... Uma voz de um homem ao longe, caçoava de sua não lucidez. Ria e corria à sua volta, beliscava-a, mordi-a, socava-a, possuía-a violentamente. Dora se movia engatinhando como uma criança no quarto minúsculo de algum lugar que também desconhecia. Queria ter forças para combater o delírio. Queria... A cabeça não se firmava mais. Não conseguia controlar os palavrões que saíam de sua boca. Não conseguia controlar as infâmias que vomitava. A roupa de seu corpo voava pelo quarto, atirada por suas mãos pequenas e vermelhas. Tremia. O inconsciente veio à tona e soltou todas as informações desconectadas. Tinha morrido? Como se estava ali, naquele lugar infernal, ermo, imundo, sem segurança e com um homem que mal conhecia? Olhou-o firmemente por três segundos, os olhos não conseguiam firmar por muito tempo. Em vão. Suas forças consumidas e a razão descompensada. Estava indefesa. Os gritos por socorro que soltava pela boca, eram silenciados por aquele homem de olhos vermelhos, riso amarelo e boca que engolia a sua. Seus lábios grandes silenciavam todos os gritos e sussurros. Dora desistiu e começou a sorrir eufórica, depois aumentou o riso para algo ensurdecedor em gargalhadas que tremiam seu corpo. Depois teve sensações desagradáveis como tremores nas pernas, sudorese, síndrome de morte iminente e a perda do controle mental. Era um bad trip, uma má viagem para um mundo de vastas emoções e pensamentos imperfeitos. Seu corpo foi carregado para o banheiro por braços e mãos grandes. A água com espuma escorria pelo ralo. Ora muito quente, ora muito fria. O banheiro era minúsculo, repleto de um cheiro defecável e imundo. Respirava com dificuldade, ao mesmo tempo passava as mãos pelo corpo nu com sabonete e molhava os cabelos longos. Parava para olhar a água com espuma descer até o ralo. Recitava fragmentos de melodias populares e versos inúmeras vezes. Falava frases absurdas e inteligíveis. Tudo desconexo. Seu algoz olhava-a contente, feliz com sua letargia. Ria descaradamente de seu estado catatônico e indefeso. Uma menina ingênua, de traços gregos, de cabelos compridos, pele branca, rosto redondo, corpo redondo e olhos sem vida. Ele estava lá, com os braços cruzados assistindo o espetáculo delirante da pequena. Dora não viu mais nada. Não sentiu mais frio, sudorese, calafrios, convulsões...
De manhã, o dia acordava lá fora. Não timidamente. O sol penetrava a cortina com fúria, cegando os olhos que se abriam. A boca estava muito seca, o rosto desbotado, o corpo tonto e sem marcas dos beliscões e mordidas. O homem não estava ali. O quarto respirava um ar levemente perfumado. Os lençóis limpos, mas revoltos. O banheiro estava molhado. Tudo não passou de um pesadelo? Olhou o rosto no espelho. Foi um pesadelo, pensou aliviada! Estava num hotel. Vestiu a roupa, penteou os cabelos; passou batom nos lábios. Disfarçou as olheiras. Dirigiu-se para a sala de café. Serviu-se de uma xícara bem forte, meio pão francês com manteiga e um prato de salada de frutas. Sentou-se com elegância. Levantou vagarosamente a xícara até os lábios tremendo um pouco. A porta da sala abriu . O homem de olhos vermelhos e riso amarelo entrou e perguntou-a sem rodeios:
- E aí, minha chegada, hoje vai de coca ou de cannabis?



Andreia Donadon Leal - Déia Leal
Diretora do Jornal Aldrava Cultural
Governadora do InBrasCI-MG
Membro da Academia Letras Rio-CM e da AVSPE

http://www.jornalaldrava.com.br/pag_deia_leal_plan.htm


(31) 8431-4648

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

UM CAPUCCINO- de Luiz Britto

Rose me chama pra sair com ela: quer fazer umas compras e quer minha companhia. Vai comprar uns tecidos pra fazer umas roupas quentes, pois irá no fim do mês para os Estados Unidos, visitar os parentes, e vai enfrentar o frio do outono, no Illinois. Pego um livro — As Palavras, de Sartre — e vou com ela. Vamos de táxi, como sempre andamos nessa cidade maluca, sem lugar pra estacionar, esse trânsito doido e cansativo. É bom ter um chofer e um guarda-costas, nem que seja por uns instantes. O friozinho do ar-condicionado, as janelas fechadas, nós dentro daquele aquário, no bolo do trânsito, fazendo fila nas sinaleiras.

Vamos para a Pituba, uma área que tem 2 ou 3 shoppings. Andamos de um lugar para outro, procurando uma loja. Transeuntes apressados tomam uma alameda coberta com um toldo branco, que liga 2 shoppings médios. Uma gente que nunca vi, e que nunca mais verei. Uma sensação que estou em outra cidade, pois raramente ando por aqui. Numa encosta, verde com o capim, perenes emílias azuis ao lado de uma escadaria. Uma tarde de sol, três horas.

Acabamos descobrindo onde fica a tal loja, mas antes paramos num café, para tomar um cappuccino. Um lugar pequeno, 2 mesas; acomodamo-nos. Conversamos qualquer coisa, comento como aquele shopping era barulhento — o teto baixo, os corredores estreitos. Olho-a; de alguma forma é como se fossemos muito mais jovens, e namorássemos outra vez. Um momento de intimidade e paz — ultimamente sempre vamos a um shopping tomar um cappuccino. O café quente, o chocolate, o creme. Isso nos aproxima, e é tão barato, tão fácil. Gosto de olhá-la nesses pequenos e sensíveis momentos: amo-a enquanto a contemplo, e sempre me sinto feliz nesses momentos, é como se o tempo fosse sempre o mesmo, estivéssemos no arco da eternidade, nossa pequena eternidade.

Levantamos, enfim, vamos à loja de tecidos, pequena também. Enquanto ela escolhe os tecidos, sento-me numa cadeira e vou ler meu livro. Um livro que jamais leria, se não o tivesse comprado — um texto confuso, uma superabundância de pensamentos e conceitos, e a vida é bem mais simples. Um livro antigo, comprado em sebo, com mais de 20 anos, as páginas amareladas, com anotações alheias, e eu gosto dele assim. Livros envelhecidos têm outro sabor, uma vida que já é deles: a marca do tempo.

Enquanto Rose escolhe seu pano, vejo-me menino, acompanhando minha mãe em outras lojas de tecidos -- a Casa Africana, a Duas Américas, que ficavam então na elegante Rua Chile.

Minha mãe uma vez me comprou uns carrinhos de ferro ingleses, e eu ia com ela na esperança de ganhar novos carrinhos. Uma esperança jamais satisfeita: ela sempre dizia que não tinha dinheiro, que eu já tinha carrinho de mais, e eu ficava muito aborrecido. As frustrações daqueles dias me voltam, e uma lembrança vaga de outra Salvador, muito mais tranquila, de 50 e tantos anos atrás, que já vai tão longe.

Uma Salvador menor, que cabia num dedal, que não tinha cappuccino. E nem Rose.



O Luiz Britto, é uma dos associados mais antigos da CBaL, com mais de 40 livros publicados. Escritor e artista plástico.

demais crônicas no arquivo Crônicas
do site www.bahiapress.com.br

terça-feira, 16 de setembro de 2008

O ESCRITOR E SEUS PERSONAGENS- de Clevane Pessoa

Interessante como diferem as trajetórias dos protagonistas de uma história que se escreve. Alguns escritores munem-se de uma pessoa-modelo, como os artistas plásticos a basear-se em um modelo vivo, para criar. Esse protótipo pode ser pessoa revelada pelo escritor, ou oculta, nesse caso às vezes por estar ainda viva e não ser muito prudente dá-la a conhecer... Vários personagens passam para a ficção mais belos ou mais enfeiados pelo autor. Outros são incorporados à acontecência, ficando a ela associados, embora não tenham jamais passado as páginas da História, das estórias...

Há romancistas que anotam, meticulosamente, um rol de protagonistas, atribuem-lhes determinadas características físicas, espirituais, de humor, de caráter. E sofrem para mantê-los acorrentados à sua própria vontade. Outros deixam a própria verve criativa repassá-los. Jorge Amado, por exemplo, não raro usou o protagonismo de pessoas a quem conhecia bem. Já Zélia Gattai, sua esposa, ora na Academia Brasileira de letras, estreou com "Anarquistas , Graças a Deus", onde pessoas e acontecências de sua própria família, desfilam.

Eu costumo ser arrastada pelos próprios personagens. Quero escrever algo, sinto a inquietude da Criação a crescer-me no corpo da alma, sento-me para escrever(mas já escrevi deitada, por pressa absoluta), salta-me um fulano da cachola, um beltrano se insinua, uma sicrana entra sem pedir licença... Às vezes nascem de quase nada. Certa feita, parei num pesqueiro e enquanto meu marido pescava, fui à lanchonete da fazendinha adaptada ao esporte e vi um armário de vidro cheio de bonés. E não é que o dono de um deles me obrigou a escolher uma das mesinhas e escrever até a mão doer?Fui continuar em casa, um conto que-data venia, não é imodéstia!-quanto mais leio, mais gosto...

O pensador Hermínio Miranda escreveu em um de seus livros, (A Memória e o Tempo, da editora Lachâtre), algo que, a meus olhos de psicóloga, tem tudo a ver:

"A mente se vale de mil artifícios e sutilezas´para bloquear a conscientização dos conflitos geradores das disfunções emocionais e, enquanto possível, mascarar os problemas e vestí-los com fantasias, disfarces e símbolos e ou códigos"

Ou seja, nós, autores, padecemos de... nós mesmos. Nossas vivências, as histórias que ouvimos, assistimos, os enredos dos demais, tudo se mistura e refaz em nossa mente e nos persegue, pedindo libertação. Estamos enredados em séculos de informações...Como herdamos o nariz de um tetravô, um olhar de uma bisavó, herdamos o Mundo velho e todos os seus personagens. Que nos cobram vida. Felizmente, nos permitem de tudo, desde sermos fiéis a modificá-los aqui e ali, ou totalmente. Pelo menos a princípio. Depois eles nos tomam. E quando o escrito é concluído, sentimos falta deles, partes de nós, partes dos outros, partes da Humanidade...

Criar do nada, de uma idéia, é alquimia pura, o bruchedo, o rojedo a se mesclarem e tinturarem nossas idéias... O brinquedo se incorpora à massa , tudo é atividade lúdica, brinquedo de montar... Mas por que há quem sofra tanto para escrever? Talvez pelo próprio perfeccionismo, pela necessidade de ser bom, ser melhor, ser único:são nossas exigências de seres humanos, creio, responsáveis pela diluição do prazer de escrever sobre esses personagens de sonho e suas acontecências reais. Ou vice-versa. Ou apenas frutos da imaginação, floresta densa, mágica, cheia de deuses, animais, mitos, tabus e possibilidades infinitas...

Na moderna Literatura eletrônica é comum se dar um tema - assim como em certos concursos - e as pessoas saírem escrevendo. É fascinante verificar como um mesmo tempo gerencia tantos diferentes pensares e realizares criativos.

Eu, por mim, posso declarar que amo meus personagens-mesmo os infantis, animaizinhos e objetos que falam, plantas e fantasmas, não importa.Como se realmente fossem meus filhos. E decerto o são, dei-os à luz, nascidos do ventre imenso de minha alma que ganhei já recheada de sementes, quais os óvulos de qualquer mulher em seus ovários...

Tudo que aprendemos e apreendemos, salta de nosso self, vem incorporar-se aos personagens. Então, podemos até afirmar que um deles pode ter sido amoldado a partir de vários pedaços, estilhaços, embora uns tantos sejam esculpidos de um único e soberano tronco...

Diz-se que Balzac se desesperava com o rumo que alguns personagens se dava, escapando ao seu desejo de autor. Isso já me aconteceu, mas fico agradavelmente surpreendida com sua força pessoal. Não são marionetes, títeres que eu mova ao bel prazer... O elemento surpresa vindo deles próprios é divertido ou extraordinário...

Ah, mas que forte me sinto quando, usando os dons que vieram do Alto, uso minha astúcia e no final, afinal, provoco um epílogo surpreendente. Até para mim, às vezes... mas quem foi então que conduziu-me a mão apressada a cavalgar atrás do pensamento, enredado em algo que desconheço?

Confesso que já tive um insight e fiz o protagonismo acontecer a meu bel prazer. Muitos escritores contarão o mesmo. A incumbência de escrever nos transcende e preenche o espírito. É por isso que confesso-me perplexa quando sei de plágios. Que imbecis os que copiam outros escritores!Costumo dizer que , analogamente à pessoa que, indo a um Banco, faz um empréstimo e deve devolver a quantia, quem faz uso da palavra alheia tem de colocar aspas. O dinheiro emprestado não é seu. Nem a palavra.

Neste exato momento há uma sambista que dança em minha mente, chamando minha atenção para mais uma história de carnaval... Tem vinte anos, é cor de chocolate acaba de perder um amor!Vou atrás dela, mesmo que tenha de ir com samba no pé...

Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, especialmente para o Jornal Ecos, em 06/02/2005, publicado originalmente por Vânia Diniz.

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Sobre a autora:

Clevane Pessoa de Araújo possui dois livros editados, é escritora mineira.

domingo, 14 de setembro de 2008

CRIME E CASTIGO-de Renata Belmonte

MORRE A GRANDE DAMA. RODIA PORTEMAN IS DEAD. As manchetes de jornal foram suficientes para atrair a multidão para o grande funeral.

Naquela manhã, o sol sorria tão intensamente quanto os inimigos da defunta que estavam presentes. Era o acontecimento do ano. Uma mulher vestida estilo Jackie Onassis reclamava da falta de infra-estrutura do enterro enquanto o Governador arregaçava as mangas do paletó. Pastores de Igrejas diversas citavam passagens bíblicas em voz alta tentando disputar a atenção do público com o Bispo. A filha caçula de uma senhora suada de preto era a única pessoa que chorava. O irmão de seis anos não cansava de apertar suas bochechas.

Na porta do cemitério, um homem anunciava sutiãs de alça de silicone por cinco reais. Uma menina, enfiada numa blusa fechada, comentou que as alças em contato com a pele pareciam durex. Próxima ao caixão, uma senhora que se nomeava melhor amiga da defunta, contava como fora a sua trajetória de vida. Um rapaz, pensando estar próximo de alguém ilustre, puxou assunto e perguntou para a senhora qual era a data do aniversário da morta. Não, não se deve dar ouvidos para tudo que é dito. Nessa horas, até a prima do cunhado do irmão se acha pessoa próxima. Mas, sim, pelo benefício dúvida, não custa nada contar o que foi relatado.

Durante vinte anos, Ródia Porteman foi uma celebridade. O casamento com um judeu, dono de uma empresa de equipamentos para perfuração de petróleo, tinha a transformado na mulher mais rica e famosa do país. Em entrevista concedida a uma revista de ampla circulação, ela contou que detestava flores. Desde que tinha se transformado em alvo de flashes, sua casa se tornou um bosque. Todos os dias, recebia bouquets vindos de todas as partes do mundo e de pessoas que nunca tinha conhecido. Flores se tornaram sinônimo de favores. Preferia ganhar ratos mortos.

Foi uma mulher bonita. Quando adolescente, gostava de sentar no colo dos pais das amigas para sentir o quanto era desejada. Adorava ser bolinada, mas aprendeu a fingir que não. Os olhos de boneca contrastavam com a boca maquiada de intenções. Era o pecado no corpo de um anjo. Quando atingiu a maioridade, foi expulsa de casa por ter tido relações sexuais com o coroinha da Igreja. Virou a fofoca do momento. Onde estava o amor cristão que tudo aceita e perdoa? Arrumou as coisas e foi embora da cidade.

Na capital, resolveu esquecer seu passado. Seu nome, Rodiane, tinha sido criado a partir da união do de seus pais :Rodíres e Anete. Como os detestava, resolveu abolir qualquer lembrança que pudesse ter. Tornou-se apenas Ródia, com lacunas no sobrenome.

Era o tipo de pessoa que sabia fazer bem qualquer coisa. Podia ter sido cantora, médica ou engenheira. Tornou-se garçonete e amante fervorosa do dono da lanchonete. Era sensual até de avental. Qualquer um acreditaria que ela fosse modelo do catálogo da borracharia. Vestia roupas baratas, mas não era brega. Se imaginasse que alguém iria vender soutiens de alças de silicone, próximo ao seu funeral, teria morrido antes para não passar por tal situação.

O patrão concordou em pagar seus estudos, desde que ela continuasse tendo tempo para ele. Tinha dificuldades de ereção devido à idade e se considerava sortudo por transar com alguém tão atraente. Encontravam-se, constantemente, até que Ródia, no outro dia de sua formatura, foi trabalhar como secretária numa multinacional de ferro.

Ainda na faculdade, decorou frases famosas e aprendeu a linguagem dos ricos. Falava sobre vinhos como se fosse uma autêntica sommelier. Indicava pratos de restaurantes que nunca tinha conhecido. Criou o hábito de andar sempre com unhas bem feitas. Preocupar-se com os detalhes das extremidades era coisa de gente fina, pois só estas podiam dar-se ao luxo de todas as semanas, gastar com manicure.

Por ser extremamente perfeccionista, conviver com ela era um pesadelo. Não que fosse exatamente má. Certa vez, pagou todo o tratamento da dama de companhia que sofria de câncer. Seu problema era que era egoísta. O inferno são os outros, aprendera isso com Sartre. Achava que todos tinham que estar sempre disponíveis. Certa vez, acordou a empregada, às três da manhã, para que preparasse seu chá. Não, não suportava gente preguiçosa.

Teodoro Porteman a conheceu na sala de espera da multinacional. Ficou impressionado com a cultura da bonita secretária. Ela sabia tudo sobre o mundo petrolífero e lhe ofereceu um capuccino com Godiva. Conversaram mais alguns instantes e foi convidada para jantar. Na semana anterior, Ródia tinha ouvido o chefe falar sobre a visita do ilustre fabricante de sondas e informou-se sobre a atividade. Em um mês, ele abandonou a esposa e se casaram.

Era Vargas. A lei 2004 cria a Petrobrás. Teodoro Porteman foi o pioneiro da fabricação de equipamentos de perfuração. Tornou-se fornecedor exclusivo da grande empresa. Em 1974, quando descobriram a bacia do litoral fluminense, Ródia é nomeada vice-presidente. Era uma exímia empresária. Em pouco tempo, estavam exportando para todas as grandes companhias mundiais.

Na manhã seguinte à morte do marido, sentou-se na cadeira presidencial e se sentiu poderosa. Tinha se tornado o que queria. Sua primeira providência foi a demissão da secretária de origem cigana. Quando criança, pedira para que um desses tipos lesse sua mão e foi alertada sobre as armadilhas da ambição. Tinha feito uma previsão errada e todas suas futuras gerações mereciam castigos por tal erro.

Os negócios continuavam indo bem. Conseguiu quebrar quatro empresas concorrentes. Olhou-se no espelho. Nem a crise do petróleo, em 73, a deixou tão desesperada. Sua geografia não era mais a mesma. Os seios tinham se tornado montanhas de terra frouxa. A boca não era mais maldita. Ele também não era mais o mesmo. Quebrou todas as taças de cristais Baccarat que viu na frente.

Não se sabe dizer quem foi o seu assassino. Os poucos amigos dizem que a depressão foi a culpada pelo suicídio. As más línguas ainda insistem na tese do vice-presidente amante que, ao perceber que iria ser demitido, dissolveu duas caixas de tranqüilizantes no vinho da dama. Cada pessoa conta a versão que lhe é conveniente.

O caixão estava sendo fechado e ela tinha se tornado uma defunta comum. A morte iguala todas as pessoas. Não, ela não foi vestida com a melhor das roupas. Alguém a enrolou em um conjunto de algodão azul marinho. A pretensa melhor amiga olhou para a lápide e respondeu ao rapaz deslumbrado o ano do nascimento. O túmulo estava tão florido quanto o Jardim de Éden. A criança parou de chorar e a mãe, que já tinha matado a curiosidade, foi embora. Sobrou um pesado silêncio, até a ex-dama de companhia chegar.

Tinha nas mãos um isopor de tamanho médio e o lançou com toda a sua força no buraco do caixão. Estava envelhecida, muitos anos tinham se passado. Mesmo assim, soltaram lágrimas dos olhos, quando os corpos dos ratos se misturam entre as folhas e pétalas.

Conto escrito aos dezoito anos pela autora Renata Belmonte. Escritora reconhecida e consagrada, vencedora do prêmio Banco Capital, autora baiana contemporânea de Carlos Vilarinho, Flamarion Silva, Heitor Brasileiro Filho, Edinara Leão, Andréia Donadon, Clevane Pessoa...

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

UMA DOR INSUPORTÁVEL- de Jackson Vasconcelos

Duvido que haja no mundo uma dor maior do que a dor de perder um filho, principalmente se essa dor acontecer no coração de uma mulher.
Ontem, a Cleyde Prado Maia faleceu aos 51 anos de idade, vítima de um acidente vascular cerebral, uma típica dor da alma que mata quando atinge o corpo.O mundo conheceu a Cleyde Prado Maia pelo trabalho incansável que ela desenvolveu tentando dar um jeito na lei brasileira, com a intenção de evitar que outras mães fossem vítimas do mesmo destino que levou a vida de sua filha Gabriela, assassinada numa das estações do metrô carioca, aos 14 anos de idade. O canalha que assassinou Gabriela estava nas ruas apesar de condenado. Poucas e ligeiras vezes estive pessoalmente com a Cleyde Prado Maia. Uma vez, em Brasília, no final do ano de 2005, no gabinete utilizado pela Denise Frossard, que exercia o mandato de deputada federal. Ela lá estava, às próprias expensas, à busca de apoio para uma série de projetos de lei que o seu fôlego, mais tarde transformou num projeto de iniciativa popular com 1,3 milhões de assinaturas, feito com a intenção reduzir a percepção de impunidade, motivo da ousadia criminal.No dia 17 de maio de 2006, o deputado federal Antônio Carlos Biscaia incorporou o trabalho da Cleyde ao projeto de lei de número 7053/2006, que ele mesmo elaborou. Hoje, quem for ao site da Câmara dos Deputados saberá que a última anotação sobre o projeto aconteceu no dia 23 de março de 2007, no dia exato em que o assassinato da menina Gabriela completou 04 anos. Não para avisar que a intenção da Cleyde Prado Maia se tornou realidade, mas para comunicar que um deputado de Goiás, senhor João Campos, requereu a transferência da matéria para a Comissão de Segurança Pública “por terem as mencionadas proposições relação direta com o campo temático da Comissão de Segurança Pública”.Encontrei a Cleyde Prado Maia há coisa de um mês ou de um mês e meio, na esquina da Rua do Carmo com a Rua da Assembléia, no centro da Cidade do Rio de Janeiro. Eu caminhava na direção do edifício-garagem e ela em sentido oposto. Ela me cumprimentou com um cumprimento rápido. Aproveitei para saber dela como andava o tal projeto. Ela, com a cabeça, passou um sentimento de desgosto.Nada me tira da cabeça que a dor que acompanhou a Cleyde Prado Maia desde a manhã do dia 23 de março de 2003, terminou por tirar dela as energias que a mantiveram vida até ontem.

*Jackson Vasconcelos é editor do site www.estrategiaeconsultoria.com.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

MEU VASO DE FLORES de Andréia Donadon Leal

Antes de qualquer coisa gostaria de estimar melhoras e boa saúde à escritora e artista plástica Andréia Donadon Leal



Caro mestre Urariano Mota.



Como vai? Demorou um pouco a leitura do texto narrado em Histórias para adolescentes pobres. Com muita satisfação li o magnífico relato. E como gostei de sua forma de ensinar Português para adolescentes de bairros populares. Ou como o senhor disse: "diria melhor, de tentar ensinar o muito pouco que sei". Hoje neste vasto mundo de produção avalanche, os adolescentes e crianças estão ávidos em despejar, despejar , escrever, escrever e escrever ou não... Quando a iniciativa ou interesse parte deles, genial! O que me enfada são os pais que empurram os filhos que não querem de forma alguma fazer o que os "gestadores" almejam antes mesmo da cria nascer.

Os alunos estão sedentos e mais vividos que os educadores, apesar da idade. E as histórias contadas por eles; uma boa, verdadeira e de preferência acontecida com o próprio professor. Alguns procuram exemplos na vida do mestre. Confiam, admiram, outros até desprezam ou xingam quando o ralho vem na hora certa. No íntimo sabem da importância desse personagem ímpar e memorável.

Sei até hoje, já não sei amanhã quando o tempo carcomer alguns neurônios e apagar um pedaço da memória, o nome da minha primeira maestrina: Maria José. Uma professora rígida, de cara fechada, diria hoje sisuda. Sofrida acho. Ou talvez triste. Solteira e de uma disciplina e conteúdo impecáveis. O sorriso que desenhava a boca era um pequeno risco. Nunca fui de conversar com ela, talvez pela timidez aguçada na época do primário e respeito pelo mestre. Abaixava a cabeça quando vinha à professora do outro lado da calçada ou pela excessiva timidez, atravessava à rua. Evitava a professora que tanto admirava intimamente, no fundo da alma. Mas a professora era rígida e tinha medo de conversar fora de hora, tirar nota abaixo da média. Lembro que no aniversário dela muitos alunos levaram presentes; muitas flores, caixas de bombons, lenços perfumados e outros mimos comprados pelos pais. Eu, filha de pai muito pobre e trabalhador; não consegui comprar o vaso de flores da floricultura. Não tinha sobrado dinheiro para o presente da professora, disse meu pai. Final do mês, mal dava para comprar o leite dos cinco.

Dividia o sono com a irmã mais velha na cama. A casa pequena, três cômodos e os moleques que se acomodassem no lar, como dizia minha mãe. Isto o que podemos, mais pra frente à vida melhorará. No quarto peguei uma folha, a mais branca possível e desenhei o meu vaso de flores, aquele que vi na floricultura e gostaria de presentear a professora. Fiz alguns esboços, joguei algumas folhas fora e enfim terminei para mim na época, meu melhor desenho com a seguinte frase: “Tia Maria, hoje não tenho o vaso de flores para dar-lhe de presente, mas no papel desenho o presente que meu pai não pôde comprar”.

E isto não é nada, caro professor. A professora pegou o papel e olhou para mim com o semblante sisudo e me deu um abraço apertado. Apertado que chegou a doer meus ossos. Mas não disse uma palavra. E isto nos meus 7 anos de idade. E isto não é nada ainda, caro professor! Ah, se eu pudesse prever o futuro e conseguir expressar a emoção que esta mulher me deu! Diria que hoje são poucas coisas que me surpreendem na vida, e esta me arremessou praticamente na perplexidade, doce! Nos meus 34 anos de idade, retornei à cidade onde estudei e passei alguns bons anos de minha vida. Fui convidada pela Casa de Cultura para abrir a III Semana da Cultura na cidade com minha exposição “Mostra Portais de Minas”, no salão nobre da Câmara. Um dos lugares mais importantes da cidadezinha. O tempo passa, professor! Passa e dá nó na garganta da gente! Na inauguração, com festas e pompas, chega uma mulher na porta com bengala e papel na mão. Custei a conhecê-la, não por esquecimento, mas por incredulidade. Incredulidade! No limiar da porta, caro mestre, a professora atravessou o grande salão e me entregou o papel amarelado e disse: este meu vaso de flores para você hoje!



Andreia Donadon Leal - Déia Leal
Diretora do Jornal Aldrava Cultural
Governadora do InBrasCI-MG
Membro da Academia Letras Rio-CM e da AVSPE

http://www.jornalaldrava.com.br/pag_deia_leal_plan.htm

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

C.C. de Edinara Leão

Cristiene conheceu Gervásio. Foi amor poucos minutos depois da primeira vista. De soslaio. Gervásio com sua tez morena acordou a veia do amor de Cristiene (aliás, cá entre nós, ela não gostava desse nome, não era nome para ela, era nome de mulheres dengosas e meigas, ele não era nada disso, a mãe havia feito a predestinação errada, mas agora que se haveria de fazer?). Depois desses momentos mágicos, Cristiene parecia encantada. Havia encontrado o seu Romeu, o homem de sua vida. Sentira-o no olhar, no corpo, mais – sentira-o em cada poro de sua pele. Mais! Sentira-o em sua alma. Então, sua vida em linha reta e bem sucedida, passou a ser invadida por uma dose de intranqüilidade. As horas custavam a passar. Ela esperava sempre um telefonema e quando vinha, acreditava em tudo o que seu doce amado Gervásio dizia. Ele era maravilhoso, era tudo o que ela um dia pedira a deus. Parecia nem existir...

Alguns amigos de Cristiene desconfiaram e, sem conhecer a doçura de Gervásio, tentaram alertá-la de um perigo. Afinal, Gervásio poderia... Mas era tarde. Ela estava irremediavelmente infestada pela terrível doença. Ao amanhecer, qual era o primeiro pensamento de C.? G. Ela perdera as contas de quantas vezes ligara para o celular de G., digo, para a secretária eletrônica de G., porque, a bem da verdade, o celular estava sempre desligado. Essa foi a primeira estranheza da apaixonada C. Por quê? Por que ele fazia isso? Aliás, esta foi a segunda estranheza. A primeira foi ele não ter dado endereço “residencial”, só comercial. Bom, mas aí, G., muito sério, explicou-lhe que estava se separando (ah! esses homens que estão se separando! – disse uma amiga, mas C. entendeu perfeitamente a explicação do sério G., ele não queria ser importunado, a amiga é que não o conhecia).

E assim foi. Uma vez combinaram uma viagem – G. era um viageiro de primeira linha, estava em muitos lugares em um curto intervalo de tempo. Falava com cada pessoa famosa e chique! Isso C. tinha um certo receio, “tantas viagens”, ele nunca tinha tempo para vê-la, mas amando-o como só ela o amava, acreditava que ele voltaria, um dia! – e C. se programou para a vigem, mas nunca aconteceu. E C. entendeu que ela se precipitara, não era a hora, ou teria sido porque ela não dera a resposta no dia e depois não houvera tempo para agendar. Essas coisas de viagens são complicadas mesmo. E C. compreendeu, e esqueceu esta história de viagens. Depois vieram as promessas – “vou na tua casa sábado”, “não, não vai dar, segunda eu passo com certeza!”, depois, “não prometo nada, vou ver se dá para passar na volta”, “na sexta, nem que seja dez minutos”. E C. já não vivia, arrastava-se pela casa à espera das ligações de G., cada vez mais espaçadas.

Mas o consolo da ingênua C. (agora ela tornara-se ingênua, desconsiderava a inteligência que tinha, porque a inteligência lhe dizia coisas que não era importante saber, agora C. era só coração) era de que ele viria. E veio. Duas vezes. C. passou, então, por curtos momentos de encanto, felicidade e poesia. C. renovou-se, tornou-se falante, saltitante... ante, e tudo o mais. E ele a convidou para ir embora com ele, por telefone. Ela já estava lá. Tanto queria ir que passou a achar sua vida sem graça, seria “vidinha” perto da que teria lá, e seus projetos agora só tinham um destino: o lixo; e sua vida só tinha um destino: G.. Onde quer que ele estivesse, para onde quer que ele fosse. Faria outros ao lado de G.. C. cada vez mais queria ir embora e começar sua vida “verdadeira” ao lado de seu doce amado G. agora tinha certeza de que ele a amava. Imagina! Morar com G. – o príncipe que jamais viraria sapo!

Uma vez ele ligou, cansado. G. sempre estava cansado, mas C. sempre perdoava. Eram as longas viagens... As vezes, o tom de voz mudava, e ele magoava o meigo coração de C. (agora ela tornara-se meiga). Mas ela o perdoava, era o cansaço, ninguém pode estar sempre feliz. Uma vez ela desconfiou que ele poderia estar mentindo, aliás, uma das vezes, ele o confessou. Uma luz vermelha acenou perigo ao coração de C.. E se ele tivesse mentindo o todo? Sobre as audiências da separação? (mas ele dizia até o lugar onde haviam sentado, o que ela alegou, que havia trocado de advogado – será que dizia isso porque o anterior C. conhecia?) sobre o atentado? (mas ele descreveu que os caras estavam encapuzados, a rua, o horário, a reação, o susto, o medo... não, não poderia ter inventado tudo aquilo!) sobre o enfarto? (até justificou-se que não ligava por aqueles tempos porque estivera hospitalizado, muito trabalho e stress, uma vez até ligou do hospital...? sobre a viagem? (ou as viagens, quem sabe nem teria saído de casa e dizia estar em Brasília, até nos Estados Unidos ele foi, eram muitos Congressos...) sobre o seu amor? (não, isso não, não era possível, ele dizia-lhe poesia ao telefone, criadas na hora, especialmente para ela, ela era uma privilegiada, ainda que tivesse mentido tudo, mas o amor era verdadeiro, ah! isso era!)...

Era?

Foi aí que C. caiu em si, parece. E foi caindo, caindo, cada dia uma coisa, parece que montava um quebra-cabeça, juntava peças e sofria. E C. ficou depressiva. Depressão era pouco. C. deixou de viver. Ficou obsessiva com o telefone, Entrou em pânico. E ele que não ligava. Nem ligava para seu tormento. Não ligava. Não ligava! Não ligava!!! C. escondeu de si o telefone, tapou com uma toalha, para não enxergar, mas ele continuava ali, e ela o imaginava e o barulho, o esperado barulho... Nada. C. já não agüentava o peso dos dias, do tempo que não passava. O doce G. a fizera conhecer o amargo da vida. C. já não lembrava como era sua vida antes, diziam que ela era uma guerreira (da onde? – perguntava-se). C. já não tinha vontade de fazer mais nada, sequer de viver... Uma amiga, desconhecendo-a, por nunca tê-la visto assim, receitou-lhe ler a mão. Começou, então, um verdadeiro arsenal de guerra. Ela, C., que detestava (antigamente) essas coisas para pessoas de cabeça fraca (porque antes, você não vai acreditar, mas C. era inteligente, tinha ares da lida, andava de taco alto, cabeça erguida, dona de si, ativa. É... você não acreditaria, mas ela andava maquiada, elegante, de vestido vermelho, agora, apagada, já sem a cor da nova estação, velhos panos cobriam sua nudez). Foi ler a mão. Depois búzios. Depois cartomante – ela que rira do conto “A cartomante” de Machado (quem bem poderia se chamar “A cartomente”). Todos diziam coisas diferentes e C., não sabendo em quem acreditar, beirava a loucura. Alguns diziam que ele voltaria, outros que eles os dois (C. e G.) haviam sido vítimas de um feitiço (mas quem? a ex, e era ex mesmo? a essa altura estava tudo tão embarulhado... alguém da sua família? quem?). Mas a frase que não lhe saía da cabeça era: “intrigas, traições e mentiras na calada da noite”. Nem sabia de onde viera essa frase, mas era cruel! Agora C. já não sabia se (ainda) acreditava, apesar de todas as controvérsias, no seu (já não tão) doce G.

A derradeira frase ia e vinha na mente de C., que virara balanço em redes de miçangas – brilho fátuo. Já não havia espaço para sonhos no coração de C.. Nem o consolo dos amigos adiantava. Quando reuniu forças, saiu, viajou, foi à praia. Viu maravilhas e...nada. Celular fora de área. Sempre. C. saiu de casa para não enlouquecer definitivamente. Um dia, ele ligara, mas ela não estava... (adivinhara?)

Mas um dia C. enxergou a si, pela lente do translúcido espelho. Viu que não era mais a mesma, e lá do fundo, do mais fundo de todos os túneis, foi saindo. Ela agora era comum. Como todas as gentes. Quem não sofreu de amor? Aprendeu que sofrer é tão somente mais uma forma de viver. Aprendeu que toda mulher inteligente, dona de si, essas coisas, um dia vira trapo nas mãos de um irresponsável coração. Hoje, faltam dois dias para um ano que C. Comum conheceu G. Encantador. Havia esperança em C., outra esperança – a de voltar à comum vida maravilhosa de antes. C. sofrida tem saudade de C. ativa e elegante. Nada como o tempo. Os amigos disseram que C. merecia coisa melhor. Eu mesma o disse um dia. Hoje, a velha C. cheia de vida, que G. matou, começa a ressuscitar.

Maria, amiga de C. C.


P. S. Um dia, C. arrumou as malas e foi à cidade dele. Não era para fazer escândalos, C. não era disso. Foi descobrir a verdade. A verdadeira verdade que as cartomantes não disseram. E a verdade foi vindo, não das pessoas (porque seus amigos não conheciam G.), foi vindo no dobrar de cada esquina, no descortinar de cada nova manhã. A verdade foi vindo e detonando o sonho, os cacos de sonho de C. cheiravam as cinzas do World Trade Center. Se virasse manchete, o título da história seria: “Sonho vira fumaça”, se poesia: “Cinzas de sonho”. Se crônica: “Dias dormentes”, se conto... (eu não sei se poderia a história de C. C. virar conto, pode?)
EDINARA LEÃO

inveja

Menina de trança,
o tempo vem
encostar-se em ti
para roubar um pouco
da tua graça.


Edinara Leão

mitologia

pobres parcas,
enrolavam fios
para atar destinos

– elas não sabiam fiar.

Edinara leao escritora gaúcha esteve recentemente na BAÍA DE TODOS OS SANTOS

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

NINGUÉM ESCREVE AO CORONEL- de carlos vilarinho

Para Gabriel Garcia Márquez


O galo derrubou um facho de mel
Sem precisão ou direção,
E pouco labéu.

Sem vídeo ou recital
Não há registro, não,
Adeus todo o Funchal.

Em emoção, assim, cênico papel
Bradou como o galo em paixão:
“Ninguém escreve ao coronel!”

Jaz a fome e a emoção,
Visgo derramado ao léu.
Cocoricó, latino-americão.

POEMINHA DE DOIDO- de carlos vilarinho

Dentro da minha cabeça vestibular
Há um equilíbrio louco.
Doido varrido mesmo.
Expressões caducas tampouco,
Ecoam assaz e indiferentes
Para deixar rouco
O grito do sonho intermitente.
Sem afasia,
Gagueira
Ou até ironia.
Minha cabeça insana.
Vagueia e silencia.
Bafo de cana.
Penso em mente vazia.
O que diriam decanos,
Se outros vingassem a Filosofia
Com a absoluta verdade
Forjada em planos?

LITERATURA: PERTUBA E CURA- carlos vilarinho

ESSA VIDA É UMA PASSAGEM- de Alba Bagdeve

Um buraco
Uma brecha do ser

Essa vida é uma passagem

Uma imagem
Mentira
Uma miragem
Verdade

É encontro
Alegria
Reencontro
Despedida
Saudade

Carrega-se tantas vidas
Em uma vida de cada vez

A senha de renascer
É lembrar-se do que fez

Para de novo não errar
Viver é esquecer
Para realizar a missão sem decorar


Alba Bagdeve é poeta baiana.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

TENTAM NOS ENGANAR!- de Jackson Vasconcelos

É sexta-feira. Você resolveu dar solução definitiva às roupas que não cabem nos armários e pensou em contratar um marceneiro. Na tentativa de encontrar um bom profissional, você pede sugestão a uma pessoa amiga. “Olha, tem o seu Manuel. Ele é ótimo, com a vantagem de estar começando agora. O seu Manuel, que eu saiba, nunca fez armários. Por isso, você pode confiar plenamente nele. Ele entregará o trabalho no tempo certo e por um bom preço”.

A feijoada do sábado, somada com bebidas fortes, com chuva na volta para casa e com o frio danado fora de época, produziu fortes dores de cabeça e febre alta. O analgésico de nada adiantou. Pelo contrário. Fez com que brotassem por todo o seu corpo umas pintas vermelhas esquisitas. Você, então, por telefone, pede o auxílio de pessoas amigas. Uma enfermeira sugere que você procure imediatamente um médico: “Tem o Dr. Eduardo. Ele me parece muito bom. É recém-formado, começou ontem a trabalhar lá no Hospital. Você deveria procurá-lo”.

Na quinta-feira, você entra na cabine da farmácia para que lhe apliquem uma injeção. A moça, simpática e prestativa, conversa enquanto prepara a seringa: “Perdoe-me se doer ou se demorar um pouco, porque é a primeira vez que aplico uma injeção na veia. Tenho mais experiência com as nádegas”.

Novamente sexta-feira, e, na saída de casa para o trabalho, o carro enguiça. Alguém que passa indica para você a oficina mecânica: “O Zé Prego é muito bom. É um ex-guarda municipal que, depois de, por descuido, matar um sujeito, foi demitido. Como ele leva jeito com carros importados, tem uma semana que montou uma oficina aqui perto”.

Tudo isso parece loucura? Parece e é. Mas, não para todas as pessoas, nem mesmo para algumas que aparentam ter bom-senso. Por isso, a gente vê nas ruas, nas telas da TV e ouve nas rádios mensagens do tipo: “vote em mim, porque eu não sou político; eu sou candidato pela primeira vez...” e coisas do tipo.

Na verdade, o que essa gente diz é: “votem em mim, porque eu ainda não roubei; eu ainda não enganei; eu ainda não trai o povo”, porque é desse modo que eles entendem os políticos tradicionais que querem ter por colegas depois das eleições. Não é por outro motivo que criaram as suas mensagens. A rigor, o que eles pretendem é, com o nosso voto, ingressar no mundo da política, ambiente onde eles pensam poder enriquecer pelo roubo, enganar e trair sem o risco de punição. Sinceramente, não dá para entender de outro modo.

No entanto, o fato curioso no meio de todo esse movimento, que produz imbecis travestidos de candidatos, não é saber que eles acreditam nos enganar com o argumento da “virgindade profissional”.

É ver a cara limpa com que os políticos tradicionais, mais experientes, autorizam a candidatura e a aparição nos programas eleitorais de gente que os afronta com esse tipo de campanha. Porque, o formato na cabeça de quem assiste os programas eleitorais é esse: na tela, o discurso de um político tradicional vem, antes ou depois, de um sujeito qualquer dizer: “vote em mim, porque que eu ainda não sou igual a esse aí do lado, que rouba, mente, engana e trai”.

Fala-se, com justo motivo, em evitar a candidatura de políticos que não tenham compostura ou que não conseguem ficar perto do dinheiro público sem levar algum para casa. Neste campo de discussão, se deveria incluir também aqueles que vilipendiam a política em nome de tirar disso e da ignorância popular, vantagens para si ou para os seus. Porque é pena que usem a política do modo como a usam por aqui, sempre em proveito de poucos e em detrimento de todos.

*Jackson Vasconcelos é editor do site www.estrategiaeconsultoria.com.br

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

BONEQUINHA- de Flamarion Silva

Caso de doidice... efeito da lua... maré ruim... coisa de sangue... trabalho feito por Das Candeias de seu João de Eleutério, desprezada que jurou vingança... vento ruim que bateu... coisa de cabeça... treta do homem... mas, o fato é que, a menina morreu pelas festas. No mar.
O homem puxou a poita da canoa, resoluto, enquanto mirava o barco de seu Tião, lá longe. Depois não conseguiu despregar os olhos da menina. Ela, sentada no banquinho do meio, sorrindo, se transformando nos olhos dele, derramando um olhar de feitiço para cima do homem que a via com uns olhos perdidos. O barco de seu Tião já lá longe, a vela cheia, bojuda, deixando para trás a Gerumana e o Oitizeiro de seu Nino. Já lá longe vai o barco de seu Tião.
A menina descamba a cabeça para o lado e sorri boazinha, sorriso de lábios frescos, nos olhos negros o azul do céu e o mar refletem. Nada que transtorne a calma do dia. O homem rema lento. A menina lenta cresce, assim com uns olhos bêbados de se deitar no sono. Sobre ela o homem se ajeita, enquanto afinca já com força o remo na lama. De repente ela grita, um grito que se ouve dela gemendo na alma, na cama canoa. Ais de dor, ais da mulher em parto. A flor em botão que despetala.
O homem sem nome, filho do Cão, arregala os olhos pro mar, pro fundo da lama, e Ela é calma como o silêncio mudo. A boneca a boiar, traz a lembrança do mar da Costa, quando ventava as palhas do coqueiro e tinha-se de se manter o chapéu afincado na cabeça pr’ele não avoar. Diziam que os corpos infantís vinham da África, a dar na costa. Os navios que naufragavam. Era uma alegria só que nem se pensava no desastre, pois tão distante...
Mas, agora, que o corpinho de sua boneca no mar, agora que seus olhos se abriam e viam, o homem não se acreditou são. Levou as mãos à cabeça e gritou:
– Deus! Deus! Deus!
Mas logo parou. Pois o barco de seu Tião já vem lá, saindo à boca do rio.
O homem tem o remo envolto, firme nas mãos rígidas. O barco de seu Tião vem lá com sua vela branca. E o homem, resoluto, ergue bem alto o remo e, sob o céu azul, desce-o com toda a força sobre a cabeça da menina, rachando-a.
– Pai. Pai, ele ainda ouviu ecoar no mangue. E, de lá de dentro, avoou uma garça vermelha, assustadiça.
Caso de doidice... efeito da lua... maré ruim... coisa de sangue...


Flamarion Silva é autor de O Rato do Capitão (FUNCEB, 2006).