sábado, 29 de março de 2008

O ESTUDANTE



Conheci a Marcele por uma manobra do destino. Talvez não, talvez eu tivesse que a conhecer realmente para transpor ou deixar para trás o caminho espinhoso e a tormenta a que fui submetido em provavelmente mais de um terço da minha vida.
Já contava com trinta e três, não era, portanto mais nenhum menino adolescente ou um jovem pródigo em busca de aventuras. De qualquer forma nunca fui de festejos. Fui criado numa austeridade orgulhosa e religiosa de minha mãe. Muitas coisas da vida eu fiquei sem saber até os vinte e oito, trinta por aí... Só soube devido a, acho eu, a genealogia curiosa que herdei de meu pai. Minha mãe vivia com a cara e o resto do corpo metido numa igreja católica. Muito séria raramente ria ou encarava alguém. Na sua empáfia, falava sempre com as outras pessoas fazendo pouco caso, procurava em qualquer ocasião algo fora do contexto do interlocutor e não se dignava de olhá-lo no rosto, como já dissera, então respondia dando de ombros e sempre lendo a Bíblia. Uma obliqüidade que copiei por algum tempo. Na verdade havia ao redor de minha mãe, na sua atmosfera, uma comoção perturbadora que a fazia sofrer. Acanhada, triste e descontente. Uma vez tive a impressão que minha mãe suspirava sozinha ao canto do quarto, quando de repente entrei para lhe falar sobre minhas notas de Latim, ela segurou e abriu a bíblia num reflexo de dar inveja a qualquer goleiro. Por osmose adquiri os trejeitos de minha mãe e com as lições de Latim, que a principio detestava, passei a ler, ou melhor, estudar sistematicamente o Novo Testamento. O que a levou a uma transformação aliviante, como se estivesse consolada por algo terrível que acontecera. E dessa forma aquiesci ao ver minha mãe respirar tranqüilamente. Mesmo assim, ao tomar conhecimento da Primeira Epístola aos Coríntios, quando São Paulo chegou a Corinto, que enveredei de vez no mundo religioso, com medo do pecado incestuoso. Não que tivesse desejo por minha mãe ou por minha irmã que era totalmente contrária a mim, apesar de mais nova. Mas ao saber dos amores entre neófitos e madrastas contagiados pela Sodoma pagã, tive medo de me corromper no vício sexual. Notei muitas vezes o olhar desconfiado de meu pai. Muxoxava e balançava a cabeça num gesto negativo. Nunca entendi aquela atitude dele. Só mais tarde com Marcele que vim saber o real significado de tanta dissonância.
Aos poucos e com a anuência de minha mãe mergulhava mais e mais no mundo monacal. Seguia firmemente para tornar-me monge, rezar missas, reunir o rebanho e amar a natureza como o Pastor Amoroso de Caieiro. Por sinal era somente o que eu conhecia fora os apóstolos, Fernando e seus heterônimos. Tentei escrever poesias como ele, mas uma vez durante a ronda religiosa da noite, uma espécie de zelo virginal, para impugnação e extirpação de qualquer manifestação calorosa do sexo, o santo padre e sua trupe ministerial do clero não contou conversa. Flagrou minha leitura de “O GUARDADOR DE REBANHOS” e imediatamente, num impulso colérico arrancou de minhas mãos os papéis e me fez comê-los.
_ORAI E VIGIAI! ORAI E VIGIAI!
Bradou firmemente o padre Sólon sem cerimônia, na frente de dois outros ministros da igreja e monges da alta cúpula. Como castigo fui compelido a dois dias de jejum total. Quarenta e oito horas sem comer nada, só bebendo água. Além de, nessas quarenta e oito horas, rezar o terço duas mil vezes implorando o perdão do senhor. Aquilo me deixou confuso e muito chateado, pois Fernando não era nenhum devasso literário, pelo contrário. Fernando havia se preocupado, em uma época, em interpretar os sinais divinos que Cristo, Nosso Senhor, havia deixado para Afonso Henriques como armas do Reino de Portugal. “Benedictus Dominus Deus noster qui dedit nobis signum”. Fora essa frase que me chamara a atenção sobre o poeta e por ela que comecei a lê-lo. Ora, quando levado à presença do padre Sólon, tentei argumentar-lhe a respeito disso.
_Sempre louvando a atitude tomada pelo senhor, Grande Mestre, e longe de contestar ou me opor à inteligência divina herdada pelo santo padre Sólon, gostaria só de mencionar em minha defesa e em defesa do próprio Cristo que a obra e o autor em questão não são mundanos como imaginas nosso Santo Padre Sólon... Tenho a dizer-lhe a frase que me seduziu e me levou à leitura do poeta português... Assim diz ele em um apontamento para a abertura de um de seus livros “Bendito Deus Nosso Senhor que nos deu o sinal...” Então, em vista dessa leitura, das palavras mencionadas ao Bendito Deus Nosso Senhor e tomando como alicerce as palavras do poeta a respeito do “Guardador de Rebanho”, pus-me a ler...
_O Estudante com sua reles oratória e seu cântico comum aos pecadores não quer lecionar para mim a literatura portuguesa, imagino eu... Contudo devo lembrar-lhe da grave falta que gerou com a leitura de autor penitente... Não me olhes assustado ou com indignação, Estudante, pois sei muito bem o que fez esse senhor português que se diz poeta do Modernismo para notabilizar-se nas Letras... Saiba o senhor que o único que se divide em infinitos seres é ELE... Aquele que está sentado no centro do céu, criador de todas as criaturas do universo e que nós, principalmente nós aqui, no mosteiro, temos que louvá-lo diariamente, freqüentemente com orações e dor... Sacrifício e penúria sem nos ater a qualquer outro ser ou outra palavra que não seja a DELE... Devo dizer-lhe, Estudante, que depois da invenção do senhor Gutenberg, durante a santa inquisição da igreja, os documentos sagrados foram violados e livros como este que o senhor lia com tamanha avidez proliferaram e usurpam até hoje a mente do homem comum...Esta é a sua falta, Estudante, agiu como um homem comum... Saiba o senhor que desde que entraste aqui para orar pelo mundo, deixaste de ser um homem... E o pior, corrompeu-se por um pecador que se dizia reinventar ele próprio e com versos satânicos ataca o divino... Me olhas, Estudante? Então o que me diz destes versos? “Pensar em Deus é desobedecer a Deus, porque Deus quis que o não conhecêssemos, por isso se nos não mostrou...” (e continuou com os olhos injetados de fúria e uma certa volúpia) Se não bastasse a falta de pudor e indisciplina da sua parte... Para terminar, Estudante, vou repassar agora para você as suas, as nossas, atribuições e princípios aqui dentro... Então, temos o DEVER de orar, orar e orar... Temos senso de JUSTIÇA, COBRANÇA E CULPA sobre nós mesmos, HIERARQUIA, TRADIÇÃO, HONRA e sobretudo PUDOR E VERGONHA do corpo...
Mas o que isso tinha a ver com minhas leituras de Alberto Caiero? Passei dois dias trancado e isolado dos outros numa espécie de solitária dentro dos matos selvagens que circundam o mosteiro. Não sei se conseguir rezar o terço duas mil vezes, nem se queria então o perdão do Senhor. Veio então na minha memória fragmentos de fatos ocorridos comigo mesmo. O muxoxo de meu pai e o balançar negativo de sua cabeça. Minha irmã e suas amigas me chamando de coitado. Minha mãe exortando em mim o desespero infeliz e insidioso para me sentir culpado. Minha mãe sempre lia para mim a passagem de Jó no Velho Testamento. “No dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o Senhor, veio também Satanás entre eles”. Lia em voz alta, gemida, que denotava uma tristeza fúnebre no fundo da alma.
Depois das quarenta e oito horas afastado na solitária eclesiástica, saí ainda sentindo um vazio, um ar sem sentido em torno de todo o fato ocorrido. O santo padre Sólon e o ministro da cúria José Trasímaco deram-me ordem para estudar durante todo o dia seguinte o Livro Sagrado do Mosteiro. Estudar novamente, diga-se. Os três tomos, cada um tinha cerca de seiscentas páginas. Confesso que algo estava se diluindo dentro de mim depois de toda aquela mixórdia desnecessária. Cresci orando e louvando a Deus e todos os homens santos e religiosos. Aprendi que a educação religiosa faz o homem ser desprovido de raiva, rancor ou ódio. Longe de qualquer sentimento ou satisfação da natureza mais baixa do ser humano. Mas aqueles olhos do santo padre Sólon e do ministro José Trasímaco denotaram estranheza para mim, havia algo naquelas duas almas que não estavam em harmonia com, e inclusive, o Livro Sagrado do Mosteiro.
A biblioteca era um salão enorme localizada ao fundo do mosteiro, longe de qualquer barulho. Perto da solitária eclesiástica. Era dividida em dois salões. Um bem maior do que o outro. O maior era a biblioteca dos estudantes, dos monges aprendizes, recebia também pessoas comuns que fossem cadastradas por instituições ou fundações beneficentes e de utilidade pública. Apesar de grande, havia muito livro repetido, perante a procura por livros antigos. Muitas Bíblias, livros sobre a vida de Buda, Santo Agostinho, Tomás de Aquino e os apóstolos Paulo, Lucas e João. Havia poucos, quase nenhum livro de literatura essencialmente. Perguntei à bibliotecária por tais livros, sobretudo alguns portugueses, Fernando e Eça. Ela me disse que havia alguns exemplares desses autores, mas que eram expressamente proibidos para os estudantes. Ficavam na sala menor da biblioteca, onde também estavam todos os clássicos literários, filosóficos, pedagógicos, enfim, tudo que fizesse pensar, só os padres, ministros do alto escalão da cúria tinham direito.
Sabia que todos os dias depois da ceia da noite. Café com leite e pão sem manteiga ou margarina, além de muita oração. O santo padre Sólon e os ministros da cúria ficavam na saleta da biblioteca lendo até 22, 22:30 no máximo. Havia deixado, pela manhã quando peguei emprestado um tomo do Livro Sagrado do Mosteiro, uma janela sem o trinco. Ela ficava ao canto perto do alojamento dos estudantes. Não ventava, portanto não haveria risco de abrir-se e bater. Às 23:15, pulei a janela do meu quarto que ficava no térreo e com uma dissimulação que até então não sabia que possuía, furtando as vistas de quem quer que seja, entrei na biblioteca pela janela descerrada propositalmente. Ao entrar na biblioteca dos santos padres, deparei-me de imediato com uma inscrição em cima da mesa de leitura. Dizia o seguinte: “ÓRACULO DE DELFOS – CONHECE-TE A TE MESMO”. Não me lembro de o Santo Ofício ter autorizado um selo com esses dizeres, na verdade nunca ouvi falar de Delfos. Enfim passei praticamente toda a noite escolhendo livros “proibidos”. Escolhia sempre os que havia mais de três ou quatro exemplares. Autores que só ouvia falar em algumas aulas do mosteiro ou que, há tempos, li um ou outro texto na escola convencional. Mesmo assim muito vigiado por minha mãe. Durante aquelas horas sentia meu batimento cardíaco aumentar. Enlevado e encantado por aquelas riquezas escondidas, oprimidas e controladas. Um desejo irreprimível tomava conta de mim ali dentro. Queria ver tudo, saber de tudo. Já em alta madrugada me preparava para sair e voltar para o meu quarto no alojamento. Consegui colocar na mochila que levara, trinta e oito livros. Todos clássicos de autores diversos. Contudo ao me dirigir à porta, passei por uma estante que continha alguns armários trancados. Vi os nomes do santo padre Sólon e dos ministros. Sólon e José Trasímaco estavam um ao lado do outro. Pensei em arrombá-los, mas logo demovi a idéia. Contudo aquela coceira curiosa clamava para que eu abrisse aqueles armários. Como se eu fosse descobrir algo importante sobre a vida. Deixei a mochila no chão e comecei a forçar os armários. Em dado instante, minha mão correu a mesa de leitura e em sua extremidade embaixo havia duas chaves penduradas num gancho parafusado na madeira. Na primeira tentativa o armário do ministro José Trasímaco abriu-se, havia documentos, papeis e livros. Muitos livros de Filosofia, Teologia e livros dele mesmo, pensamentos a respeito da vida. Havia também uma porta-foto trancada, nunca tinha visto um daqueles. A outra chave abriu o armário do santo padre Sólon. Também a mesma coisa. Documentos, papeis e livros. Havia um baú um pouco maior do que uma caixa de sapato, que presumi estaria também trancado. Fechei tudo e coloquei a chave no lugar, porém lembrei de um fato ocorrido na família de minha mãe. Minha tia-avó Eurídice possuía um baú parecido com aquele. Guardava a chave por dentro de suas roupas íntimas no corpo, todos ficavam intrigados com aquele enigma secreto e de natureza confessional que minha tia-avó guardava junto a si, colado ao corpo. Um dia, não se sabe como, a chave se desprendeu da anágua e caiu na porta do banheiro. Minha tia-avó e minha mãe sempre andaram juntas e dessa forma se comportavam da mesma maneira. Possuíam então muitos desafetos na família e em todo lugar. Um das primas, minha tia Cleide, rival e adversária da empáfia das duas, foi quem viu e recolheu a chave. Esperou e junto com mais quatro, também rivais, abriu o baú. Foi um chororô desesperado e convulsivo, descobriram que minha tia-avó Eurídice teve um caso amoroso com o primo George, fê-lo de Orfeu. Que por sua vez era irmão da prima rival, tia Cleide, que achara a chave do tal baú. Lá continha cartas amorosas e fotos comprometedoras. Toda a família soube. Lembro-me também de que minha mãe ficou horrorizada e numa cumplicidade, não sei porquê fora de hora, confraternizou-se com minha tia-avó. Com aquela lembrança voltei ao baú do santo padre Sólon. Para minha surpresa estava aberto, não havia cadeado. Abri e vi cartas do irmão dele mesmo, alguns livros marcados (Madame Bovary, O Crime do Padre Amaro, O Retrato de Doryan Gray, Fausto...), Ouvi falar do Crime do Padre e da tal Madame, os outros não... O Padre Amaro inclusive esteve em minhas mãos umas duas vezes, e nas duas vezes minha mãe arrebatou de mim. Não acredito que houvesse nada de errado com o Padre Amaro, ainda mais para cometer um crime... E, voltando ao baú, muitos papéis referentes à família do santo padre, nada demais. Ia fechando quando vi ao fundo embaixo de alguns papéis um colorido diferente. Puxei e vi uma perna, a foto de uma perna, vi que se tratava de uma revista. À proporção que puxava, a perna ia se desnudando e apareceu por completa nua. Parei e percebi que se tratava de uma perna de homem, puxei mais um pouco e percebi outra perna, que não era da mesma pessoa, por debaixo daquela primeira. Também perna de homem. Meu coração bateu mais forte e estupefato e incrédulo puxei a revista de vez. Talvez tenha sido o momento mais nojento da minha vida. Uma revista de sexo explícito e homossexual no baú do santo padre Sólon. Pior, estavam colados em cima dos rostos dos homens, que se inundavam de prazer mundano, recortados e colados os rostos do santo padre Sólon e do ministro José Trasímaco. Aquilo não era nenhuma brincadeira se não, não estaria no fundo do baú do santo padre Sólon. Fora ele mesmo quem fizera aquela imundície.
Voltei às minhas atividades normalmente. Quer dizer, aparentando normalidade. Não voltei a olhar o santo padre Sólon e o ministro Trasímaco nos olhos. Aliás, durante minhas leituras ocultas durante a noite, soube a origem do nome do ministro. E em face da descoberta indecente, obscena e imoral, percebi que nunca um nome caíra tão bem em uma pessoa quanto no ministro eclesiástico. O ministro anuiu injustamente com a minha punição para ratificar seu poder. Infelizmente não tenho Sócrates para refutá-lo. Sem saber ainda que medida tomar, confuso, tumultuado, hesitante e perplexo, sentia a chama dentro de mim se apagar. Por vezes depois da minha descoberta, flagrei a troca de olhares furtivos, acompanhado de sorrisos esquivos e pela primeira vez percebia o ar de patifaria e fingimento que derramava e alagava aquele lugar.
Cerca de três semanas depois a bibliotecária veio me chamar.
_Estudante! Estudante! O senhor está aí?
Indeciso, fiquei calado.
_Estudante! Tem uma pessoa na biblioteca querendo lhe falar...
Na verdade eram duas pessoas. Temeroso e apavorado atendi a bibliotecária que não soube, ou não quis me dar maiores informações sobre quem queria me ver. Certamente seriam o santo padre e o ministro. Por alguma razão tirei o hábito e fui vestido como um homem comum, que era na verdade como eu passei a me sentir naqueles dias. Não conseguia pensar em nada, em nenhuma desculpa, para o assalto daquela noite. Fui lívido e certo de uma punição maior ainda.
_Celeste? Tia Cleide? O que vocês estão fazendo aqui?
_Meu irmão! Meu irmão! Olhe só o que fizeram com você...
_O que?
_Tantas coisas, meu irmão, tantas coisas...
_Mas o que há?
Sem dúvida aqueles foram os piores dias da minha vida. Depois daquela visita de Celeste e de minha tia Cleide, prima de minha mãe, e dos acontecimentos dentro do mosteiro que só eu tinha conhecimento, tive a certeza de que, mesmo sem conhecer muito da vida, nada mais me abalaria. Comecei a perceber que o ser humano é tecido de inúmeros novelos. De infinitas cores e até da ausência de cor. E que tudo acontece a todos. As falas de minha irmã e de minha tia colocaram por terra e apagou de vez a chama da fé. Perdi trinta e três anos da minha vida...
_...então ele nos chamou, eu e nossa prima aqui, e confessou tudo, meu irmão... Lembra do baú da nossa tia-avó?
_Como poderia esquecer de baú?
_Pois aquele baú tinha mais coisas que no afã de desmascarar a tia-avó, a prima e as outras não perceberam...
_Perceberam o que, Celeste?
_Meu irmão, sinto muito ter que lhe dizer isso, mas você pagou, expiou os pecados de nossa mãe durante toda a sua vida...
_Explique de uma vez, Celeste...
Sem muitas palavras, demonstrando sobriedade e, acho eu, com um desvelo maior do que ela sempre possuiu, Celeste contou a real história do baú de minha tia-avó. As duas, não somente minha tia-avó Eurídice, mas também minha mãe, juntamente com o primo-tio George, o Orfeu da família, movidos pelo afã e pelo calor do desejo, os três tomaram a iniciativa de, somente entre eles três, ceder e vergar-se aos atributos sexuais da carne. Então o trio bacanal entregava-se freqüentemente a orgias idílicas do sexo pelo sexo. O que se sabe e que fora contado por ele mesmo antes de morrer é que as duas fizeram um pacto demoníaco voluptuoso em torno do desfrute do corpo dele, do primo George. Ele, por sua vez, não tinha nada a perder, sucumbiu às juras sexuais das duas. O detalhe é que na época minha mãe conheceu meu pai e, por isso e ao que tudo indica, ela freou mais seu apetite. Contudo tinha recaídas e num dia desses ao chegar de um encontro com meu pai, cheia de desejo e minando entre as pernas, entregou-se ao primo George. E foi assim que eu nasci. Desde então ela achava que eu era o castigo de toda a vergonha libidinosa. Projetou em mim a fraqueza que a consumiu e repetia sempre que todo aquele sacrifício que eu fazia, suprimindo minha juventude, banindo meus desejos de jovem e adolescente, era a caridade cristã. Celeste me disse ainda que nosso pai, ou o pai dela, jamais deveria saber daquilo. Até ela mesma, nossa mãe, não sabia que fora descoberta. O primo-tio George morreu e não se sabe se houvera mais casos como aquele em que eu fora o protagonista.
_Bibliotecária, onde está o Estudante?
_Não sei, senhor santo padre Sólon... Eu o vi ontem ali conversando com duas moças... Numa atitude suspeita, santo padre, havia uma que o agarrava e o beijava num frêmito intenso... Será que o Estudante desistiu do hábito, santo padre?
----------------------------------------------------------------------------------------------

_O que houve para você perder tanto tempo, querido? Aliás, para quem era donzelo você sabe muita coisa...
_Aprendi nas revistas...
_Muito bem! Apesar de ter gostado de você, esse é meu trabalho... Cem reais...
_Não vá agora, Marcele! Fique comigo e cuidemos um do outro...

Carlos Vilarinho 2/08/2006


terça-feira, 25 de março de 2008

A TRITEZA DO POETA

(Nada a quem goste da mídia imediativa, sem pensar. No entanto aqui é um espaço de busca transformativa, por assim dizer)


O poeta sente todas as dores do mundo. Ao que parece está fadado a, como o mico-leão-dourado e o jacaré de papo-amarelo, sentir também a dor da saudade e da extinção. Saudade não será novidade, pois ele vive em memórias nostálgicas que as transformam em palavras, em lanças lexicais. A extinção é que anda pelas beiradas da sociedade, iminente e não tão reversível como as do mico leão-dourado e do jacaré de papo amarelo. Esses em situação bem mais confortável, dadas as devidas proporções, do que o bicho verbal.
Não sei como Drummond em sua poesia cheia de prosa, seus sonetos cotidianos, pensaria ou escreveria a respeito de tanta imagem pré-digerida que as pessoas no seu geral tendem e teimam em aceitar numa facilidade viciada e quiçá subornada. Diria em outro texto que a lei do menor esforço não passa de a lei do jumento acomodado. E é assim que sinto e vejo sobretudo os mais jovens. Trata-se de um agravante exclusivamente social. Nada de debater-se em intelectualidade aqui nesse texto. O que se passa hoje e agora dentro da sociedade é um caminho ermo e escuro que conseqüentemente, como diria Sthendal, deixa a humanidade em sua boa parte numa cegueira mental muito diferente, por exemplo, do pensamento do poeta cego Glauco Matoso.
Épico, lírico e dramático. Os três gêneros dominam a fase poética do século XXI. O poeta é um guerreiro épico que com todas as forças adquiridas de Aquiles ou de Enéias nos confins e nas ruínas de Tróia luta desbragadamente contra a débil natureza humana contemporânea envolta numa carcaça preguiçosa e alheia aos esforços do pensamento. Lirismo não se pode dispor, pois se há preguiça em pensar, não haverá também inclinação, quebradiça que seja, para reconhecer a sensibilidade e os encantos de uma imagem poética. Dramático? Dramático, sim senhor. O poeta a beira de um ataque de nervos, embrulhado pelas vozes dissonantes dos que estão à sua volta que clamam, discutem à porfia até, a saída de um brother do tal BBB. Triste visão essa do poeta ao ver pessoas, algumas até amadas e/ou consideradas por ele, dando atestado público de tolice aparvalhada. Enquanto for pimenta do planeta, como diria Herbert, se esfola a míngua para chamar-lhes a atenção sobre o choro do universo, os maus-tratos, aquecimento global, violência rasteira e pérfida em todos os segmentos e que tem como vítima o próprio ser humano tanso assistindo a um prazer fácil e repetitivo. O poeta não está dramatizando porque ele vê injustiça e quer porque quer ser porta-voz de Sócrates ou Martin Luther King para, numa doutrina maniqueísta, converter o mal mascarado sob fascinação hipnótica no bem justo, valoroso e clarividente, por pura vaidade fatal ou intelectual, não é isso. O poeta dramatiza porque está virando poeira para debaixo do tapete e o seu pensamento, a poesia, tornou-se produto achincalhado pelos poderosos cidadãos Kanes. Mesmo assim, por vezes, com suas diáteses, como Augusto dos Anjos, a poesia e o poeta seguram o mundo.
De qualquer forma, segurando o mundo com ou sem o reparo e a concentração de todos ao redor, a poesia sucumbe não lenta nem vagarosa, mas a passos largos ao esquecimento e extinção pela humanidade falida. Outro dia li em um jornal uma crônica em que o cronista perguntava: “é possível reverter essa queda e tornar a poesia novamente importante e popular?” Não. Infelizmente é essa resposta que vem à minha cabeça. Tudo, todos os caminhos levam a essa triste constatação. Com um controle nas mãos e as teclas enter e delete à vista, as páginas de um livro tornam-se obsoletas e antipáticas. Os versos e as estrofes são ordinariamente usadas perdendo o enigma e a estranheza dos significados afins. Vou responder novamente e acabar, para não mais me entristecer e me revoltar a cada palavra ou frase com que construo essa crônica.
...Não é possível reverter essa queda e tornar a poesia novamente importante e popular em função dos encantos prestidigitadores da mídia globalizada, tirana e perversa...



Carlos Vilarinho

05/03/07

quinta-feira, 20 de março de 2008

O HOMEM PIMENTA




Antes de me tornar escritor famoso e bem sucedido financeiramente, detentor de dezenas de prêmios literários e artísticos de toda ordem, aos quais revelo aqui em primeira mão, o Nobel e o Pulitzer, ganhos com o pseudônimo de Ogro Quiromaníaco, andava perambulando pelos becos, largos e feiras de Salvador. Sempre muito doido, em busca de uma ou outra aventura dialética filosófica. Era professor de Filosofia e pensava no mundo como uma gigantesca penitenciária religiosa. Lia, no entanto, Carl Jung e Eva Pieharkos e achava que havia muita metafísica no mundo. Por incrível que pareça e paradoxalmente não pensava no amor. Não acreditava no amor. Sabia que existia uma catarse quando estava dentro de uma mulher, e só. Entretanto andando um dia nos arredores da feira das Sete Portas, claro, em Salvador, conheci Dirceu e meu pensamento a respeito do amor humano mudou naquele instante. Dirceu me provara durante as nuances da vida em nossas conversas que o amor é inusitado. E me contou uma história amorosa que deixava Rei Artur, Lancelot e Guinevere no chinelo. Segundo ele, a paixão quando surge e arrebata trás consigo uma disposição de fazer o inesperado, o raro, o que ninguém faz, a menos que seja para agradar o objeto de desejo. Então do alto da sabedoria de Dirceu que me disse para passar dias na feira das Sete Portas observando três personagens e que escrevesse a mais latente história de amor dos tempos picantes. Ele mesmo, Quércia e Laudelino.
Dirceu era viúvo há mais de vinte. Era um senhor alto que só comia feijão farinha e banana. Não havia quem o fizesse comer um bife, uma costelinha ou uma sobrecoxa de frango. Vivia de biscates na feira, além da magra aposentadoria. Chegava sempre às quatro da manhã, mesmo quando atrasava por algum motivo fútil, fazia de tudo para ver o sol nascer na feira das Sete Portas. Caminhava malevolente, com muita calma, ultimamente não tinha mais pressa para nada. Aliás, era dono de uma azáfama só para ver Quércia. Estar ao seu lado e ser detentor dos beijos quentes da negrinha. Tinha sempre um ditado pronto para dizer.
_Quem não morreu novo, de velho não escapa...
Esse entre outros dizeres que habitavam sua mente criativa sem conhecimento pedagógico, digamos, mas com sabedoria vital.
Laudelino por sua vez, também banguela, era um negro forte, de meia-idade, mais jovem que Dirceu. Carregava frutas e legumes na feira e da mesma forma que Dirceu era louco de paixão por Quércia. Contudo Laudelino, ao contrário de Dirceu, era pedante, afetado. Muitas vezes até com clientes que faziam compras na feira ele zombava cinicamente. Tão cínico quanto Antístenes e descrente quanto Zaratrusta, claro dentro de uma comparação burlesca e infame. Debochava e fazia troça de Dirceu na frente de quem quer que fosse, principalmente quando se recolhiam para comer.
_É vai ele, ó... Um velho desses só come bananinha, procure comer um mocotó, Velho, para tentar dar conta de dona Quércia...
Laudelino sem dúvida era um camarada mundano, que só acreditava nos prazeres da carne. Prazeres da carne em todos os sentidos falando. Sua virtude era fazer pouco caso. Falava daqui e de acolá, desse e daquele. Só parava e estancava a língua ferina quando em sua frente surgia Quércia.
_Não entendo, sinceramente, não entendo como Quércia dá trela para um camarada desse... Pobre e preto desavergonhado, não tem nada e ainda desfaz dos outros...
_Criatura mais sem graça, eu hein? Ele que não se engrace para o meu lado... Já disse ao Jailton, meu marido, que eu não gosto dele... O que a Quércia viu nesse homem, pelo amor de Deus?
_E ainda por cima é fouveiro, não tem banho, não tem água que molhe aquela fouveirice dele, pode gastar toda a água do rio das Tripas que vai continuar preto e fouveiro...
_Por isso ele vive se cuspindo, o nojento...
Era geralmente esse comentário que se ouvia em toda a feira.
Quércia era uma mulher escura, negra e cabocla. Cozinhava na feira das Sete Portas, num quiosque mantido pela mãe de santo Nega Sabina. Era magrinha, esguia, parecia um lanceiro africano. Orgulhava-se dos dentes e deixava encabulados tanto Dirceu quanto Laudelino. Nenhum dos dois tinham. Dirceu não mastigava nada muito sólido, quando queria comer cocada, que ele gostava muito, só aí ele colocava a chapa dentária, e Laudelino poupou somente o dente carniceiro. Como toda mulher, Quércia envaidecia-se do seu jeito. Vangloriava-se entre as amigas da feira de ter dois homens aos seus pés e flertava com um e saía com o outro. Flertava com o outro e saía com o um. Aquela relação apimentada causou frisson na feira. Todos queriam saber de quem era Quércia efetivamente.
_Simples, pessoal! Ela é de quem chegar primeiro e agradar a moça.
Tão simples quanto a própria vida era o pensamento e a sabedoria do gari Venceslau.
Toda a feira criou então um torneio para saber com quem ficaria Quércia de uma vez por todas. As regras foram escritas sob a observação, empenho, curiosidade e cobiça dos envolvidos. Dirceu, Laudelino e Quércia. Tanto Dirceu quanto Laudelino teriam que usar dentadura para a prova. Essa era a primeira cláusula para agradar aquela que seria o premio. E a segunda era tão simples quanto a primeira. Somente um pouco estranho e inusitado, como pude observar desde que Dirceu veio com uma conversa pra cima de mim de pimenta mexicana. Quem comesse o maior número de pimenta seria o vencedor e levaria o amor de Quércia, note-se que as pimentas teriam que ser mastigadas. Poderiam comer banana, mas não era permitido beber água enquanto estivessem na disputa. Colheram-se então pela feira os seguintes tipos: Pimenta-apuã, pimenta-cumarim, pimenta-da-áfrica, pimenta-da-jamaica, pimenta-da–guiné, pimenta-de-bugre, pimenta-de-cheiro, pimenta-de-fruto-ganchoso, pimenta-de-galinha, pimenta-do-mato, pimenta-dos-índios, pimenta-do-reino, pimenta-de-macaco, pimenta-malagueta, pimenta-negra e por último para dar um refresco, pimentão verde, vermelho e amarelo.
E começou a peleja. Dirceu com a mão cheia saiu na frente com trinta e oito pimentas misturadas. Laudelino cauteloso comeu o pimentão amarelo, segundo ele para sentir primeiro um docinho. Dirceu comeu mais uma mão cheia de pimenta-negra e pimenta-da-jamaica, davam mais quarenta e seis pimentas. Laudelino contou oitenta e quatro e mastigou, empatando a contenda. Como cada pimentão valia meia-pimenta. O pernóstico tinha meia pimenta de frente. Dirceu contou mais quarenta e mastigou. A platéia em delírio torcia mais abertamente para Dirceu.
_Vai que é sua, Dirceu!
Laudelino empatou mais uma vez e esperou a reação de Dirceu. Como não respondia, o negro comeu mais um pimentão, ficando a frente com mais meia pimenta. Cento e vinte e quatro pimentas tinham sido comidas por cada um.
_Quero ver na hora de botar isso para fora...
_E se um dos dois tiver hemorróidas?
_Eu ouvi dizer que Dirceu tem umas pregas soltas...
O velho Dirceu não agüentou e sentiu dores de barriga. Desistiu e foi levado para o Hospital Geral. Laudelino foi homologado como o homem-pimenta e vencedor do combate. Contudo ao procurarem pelo prêmio, este havia sumido. Todos conclamavam:
_HOMEM-PIMENTA! HOMEM-PIMENTA! HOMEM-PIMENTA!
O próprio Laudelino fazia coro...
_EU SOU O HOMEM-PIMENTA e dono da mulata mais linda desse país...
De repente...
_Olhem, lá está a Quércia!
Quércia estava sentada no colo do gari Venceslau ao canto do bar, pendurada nos beiços do lixeiro.
_QUÉRCIA? QUÉRCIA! EU SOU O HOMEM-PIMENTA E NÃO O HOMEM-CHIFRUDO...QUÉRCIA EU SOU O HOMEM-PIMENTA, QUÉRCIA...
E caiu num choro decepcionado. A platéia ainda extasiada voltou com o som em estribilho.
_HOMEM-PIMENTA! HOMEM-CHIFRUDO! HOMEM-PIMENTA! HOMEM-CHIFRUDO!
Daquele dia em diante, antes de ser o que sou agora, dono de um dos melhores textos do mundo. Agraciado publicamente por ninguém menos que o escritor colombiano, também Nobel. Tive que rever meus conceitos e sentimentos sobre o amor. Aquela batalha picante dos tempos modernos serviu para me alertar sobre o que seria verdadeiramente o amor. O que um homem pode fazer pelo beijo caliente da mulher amada. Por outro lado, e depois ao observar Quércia e o gari Venceslau os dois rindo e curtindo-se um ao outro, tive convicção que a simplicidade dos atos e a sabedoria das palavras são o que realmente importa a um ser humano. Anos depois do homem-pimenta, homem-chifrudo, comecei a minha escalada para o sucesso, tendo em mente a parcimônia e astúcia do gari Venceslau e a obstinação do amigo Dirceu. O homem-pimenta desapareceu da feira, levou com ele próprio a decepção e o cinismo que lhe cobriam a carcaça picante...


Carlos Vilarinho 12/09/06

sábado, 15 de março de 2008

Provavelmente os fatos da vida não são por acaso, desde um encontro não programado aos projetos de vida feitos por segundos e terceiros quando ainda estamos na barriga. Segundo o psicanalista Carl Jung há um nome para isso, chama-se: sincronicidade. Dessa forma então as energias que norteiam, rodeiam, interagem com cada um de nós são parecidíssimas umas com as outras. Não há, no entanto desaparecimento de quem quer seja. Na vida ou na morte fatalmente haverá os reencontros. E assim foi o que ocorreu no dia 14/03/08 quando reencontrei, sincronicamente, é claro, alguns colegas do curso de Letras Vernáculas. Entramos juntos através de vestibular em 1986, estudamos juntos. Rimos juntos. Decepcionamos-nos, às vezes um com o outro. E sumimos para nos rever sexta-feira (14/03/08) no Largo de Santana, no acarajé de Dinha, no Rio Vermelho, Salvador-Ba. Eu e minha imagem de maluco beleza, com todo respeito a Raul, Patrícia, afetuosa e apaixonada pelas pessoas, leitora e com história para contar e Naílton Rocha, rapaz do interior baiano, de olhar puro e sincero. Vi nos olhos dele a satisfação franca e verdadeira quando recebeu meu livro “AS SETE FACES DE SEVERINA CAOLHA & OUTRA HISTÓRIAS” de presente. Além de minha companheira Alba, sempre bela e perspicaz com os instantes, e Mariana, filha de Patrícia que vi bebê e agora na luta da vida. Naílton não se contentou e começou a folhear e comentar alguns títulos do livro, ao passo que subitamente pediu papel e caneta para registrar o momento. Confesso que eu mesmo ainda não havia pensado nisso. O amigo concentrou-se, olhou o tempo e o espaço ao redor e mandou o texto que publico agora para você leitor. A alegria e o deleite de estarmos juntos ali foram tão grandes que Naílton se esqueceu de nomear sua obra. Tomei a liberdade de fazê-lo, cheio de dedos e preocupado com a responsabilidade de instituir a cria alheia, lembrei-me então da expressão que a própria Patrícia criou nos assuntos de nossos e-mails trocados “AO REENCONTRO”.
Carlos Vilarinho 15/03/08

AO REENCONTRO
By Naílton Rocha

A fila cresce e diminui. São muitos os que esperam. Andam e param. Médicos, estudantes, prostitutas, senhoras, senhores, jovens, adolescentes. Não se conhecem, mas têm o mesmo objetivo. A noite une todos. Se completa ou não, aos outros não interessa. Sou cidadão, trabalhador, comum, feliz, infeliz. Parece mágica, uns falam de amor, outros de trabalho, outros de nada. Nada importa, só a vontade. Vontade de satisfazer o paladar, a alma, o Eros, o ego. Não importa, nunca importa. Nunca pensei nisso, algo nos une, nos separa. Um velho amigo, uma velha amiga. Um filme, uma peça, uma música, o feijão e seu preço, o mar e suas ondas. Saudades, atualidades, a noite... A fila anda, sem perceber me vejo. O acarajé frita, os amores acontecem. A vontade é satisfeita, a música toca, a vida flui e a fila anda. Com pimenta? Sim, à gosto do freguês. Voltar ao passado, sofrer, alegar. Viajo no tempo, na vida...Talvez seja loucura, talvez não. Sou vivo, amo. Um idoso, um cão, uma mesa, pessoas e a noite passa como se a existência não importasse. Amanhã acordo, lembro da noite passada. A fila, do que somos nós. Nós quem? A fila anda, a vida flui e o acarajé frita à espera de quem está na fila...
Naílton Rocha é professor de Língua portuguesa.

quinta-feira, 13 de março de 2008

A política não munda nunca. Não sei se tem como mudar. Ou se deve-se mudar. Dessa forma então não há transformação. Não há luta poética e artística. Não há pensamento. Não há disposição. Claro que o mundo gira e tende a tranformar-se. Tende. Mas a sombra do véu que cobre as frontes, nem o mais forte tufão sacode tenuamente o leve tecido, tão empedernido pelo tempo inoxidável e veloz. A política não muda nunca...(pode continuar)

A RESTITUIÇÃO DOS ZACHEUS

UM DOS PREMIADOS. A POLÍTICA NÃO MUDA NUNCA.

A RESTITUIÇÃO DOS ZACHEUS

Acredito que Zacheu não teria vez nos dias de hoje. Como citado foi em sermão pelo genial Padre Vieira, Zacheu só achara a salvação se restituísse toda a sua riqueza ilícita, roubada. Ladrão rico não colocava seu pescoço na forca, contudo não sairia salvo na lei de Deus. Imagino que Zacheu fosse tão crédulo que restituiu a riqueza, esperando sua salvação ao juízo final.
Para fortalecer minhas palavras na primeira oração do texto, onde Zacheu não teria vez nos dias de hoje, digo-lhes que a palavra de Cristo na contemporaneidade é usada, na maioria das vezes, justamente para usurpar, iludir e muitas vezes disfarçar, não para restituir. Procuremos essa razão dentre os deputados eleitos pela crendice popular e achemos, não muito longe do agosto em que vivemos, banditismo, cassações e renúncias de mandatos no planalto que envolviam evangélicos, cristãos, católicos e todo e qualquer tipo de monastério. Ou não, insistindo em fazer justiça para quem não merece. Ora, se nem Cristo está conseguindo que o roubo seja restituído, se nem Cristo tem essa moral toda, imaginemos então a nossa abjeta indignação. Daqui a pouco seremos novamente protagonistas de mais uma mixórdia eleitoreira. Mixórdia nos três sentidos do substantivo: mistura desordenada de coisas afins ou não; confusão ou embrulhada e, por último, comida ou bebida repugnante.
Mistura desordenada de coisas afins ou não e confusão ou embrulhada por si só se completam. São sinonímias bem próximas. O que se sabe, entretanto é que no meio da balbúrdia e da barafunda há o desejo, voluptuoso em alguns casos, pelo poder. A sede e a fome daqueles que se refestelam, por sinal há até quem dance no congresso, no banquete dos ímpios em prol do crescimento do próprio bolso. Aí é que entra a repugnância, a fartura para poucos e a escassez para muitos,e isso nunca vai acabar. Uma pena, pelo menos ao que se trata São Tomás de Aquino com suas três leis da política. A natural, a humana e por último a divina. São Tomás não devia acreditar tanto no homem político, digo o homem que faz e vive de política, pois dessa forma não teria tantas dúvidas a respeito da essência e da existência. Logo ela, a essência biltre do homem sem consciência que se promove em cima do jugo do necessitado. O necessitado de uma ambulância, de um salário digno, não necessariamente um mensalão, mas um salário para comer e beber sem repugnância e fartura, mas com o satisfatório. O necessitado de um livro de matemática para acalentar o sonho de um pequenino engenheiro, quem sabe...
Daqui a pouco estaremos na fila esperando a restituição dos Zacheus. Restituir não pela moral, mas por carecer.
O estranho é que depois de tanto sofrimento o povo ainda vê a fresta de esperança...

Crônica premiada em outubro de 2006 pelo Conselho comunitário de São Paulo-PRÊMIO - CLÉBER ONIAS GUIMARÃES.

Carlos Vilarinho, agosto de 2006.
c.vilarinho@yahoo.com.br

domingo, 9 de março de 2008

OLHO FRIO


Quando a professora Letícia brigou comigo na quarta série, ouvi pela primeira vez que tinha frieza no sangue. Realmente era um menino averso às brincadeirinhas das outras crianças. Naquela época achava-me velho ainda pequenino, tinha uma certeza que havia coisas mais importantes a fazer do que jogar futebol simplesmente, ou empinar pipas. Não gostava de doces e olhava as meninas com um estranhamento duro e perverso. Depois daquela bronca idiota e estúpida por não saber distinguir substantivo de adjetivo, comecei a nutrir um ódio gelado e ao mesmo tempo cheio de vapor dentro de mim. Tinha dez anos e a partir dali comecei a enxergar melhor a missão que me foi designada, não sei por quem. Descobri também que o meu olhar de Medusa, frio e malvado, passou a incomodar, ao longo do tempo, os colegas e, sobretudo a professora Letícia. Isso não me desgostava, pelo contrário, comecei a gostar do temor que via estampado nos semblantes alheios quando punham a visão sobre mim. Minha primeira vítima foi ela própria, a professora Letícia. Fora ela quem despertara em mim o apreço pelo mundo de Hades. Tinha quinze anos então e todos os dias esperava-a sair da escola, isso pela noite, e acompanhava-a sem ela saber até próximo da casa dela. Ouvia freqüentemente quando vadiava nas proximidades da venda ou do bar de seu Francisquinho que a professora Letícia ficava mais bela à proporção que envelhecia. Não via isso. Enxergava-a carrancuda e me constrangendo por causa de um tal substantivo adjetivado, ou qualquer coisa nesse sentido. Tempos depois da bronca que me deu nunca mais voltei à escola. Acho que por causa disso me mãe intensificou o desdém e desprezo que sentia por mim. Ouvia o resmungo toda noite:
_Desgraçado, foi embora e me deixou com esse entojo dos infernos...
Passei anos tecendo aquela alma. Quando passava escondido pelo quarto de minha mãe e ouvia suas rezingas praguerosas sentia um fel lotado de amargura ir até os confins de mim mesmo e lá instalar-se. Andava sete passos de costas, urinava no chão e cavava o lugar urinado. Lá deixava o nome da professora Letícia. Sentia um vulto por trás de mim, mas nunca cheguei a enxergá-lo tête-à-tête. Ficava arrepiado e ouvia um uivo sanguinolento seguido de uma risada diabólica. Entrava em transe e então ele me dizia.
_Arranque-lhe a cabeça e beba-lhe o sangue, depois que fizer isso serás imortal como eu...
E acordava na alta madrugada com frio e babado não sei de que, nem por quem. O fato é que segui a risca os ensinamentos do rei dos infernos. Quase estrago tudo num dia. Estava como de costume olhando a rua deserta e sem esperança dos pobres que moravam ao meu redor e escutei vadios beberrões, velhos aposentados, analfabetos e semi analfabetos como eu, além de o dono do bar falarem quase em uníssono:
_Por trás daquele riso puro e angelical há uma vontade de ferro, um desejo inoxidável de ser possuída... Aaah, Letícia!
Fui tomado de um impulso ciumento, esmurrei um analfabeto e agredi fortemente um dos velhos. O dono bar me deu uma paulada nas costas e só assim parei. Fiquei uma semana com o lombo dolorido. Soube que a professora me procurou para agradecer e saber como estava, mas não quis vê-la. E assim todos na rua começaram a pensar que eu nutria amor platônico pela professora Letícia. Eu ria por dentro sem esboçar nenhuma reação facial. Meu olhar continuou duro, fixo e frio. Acho que gelava dia após dia. A imagem da professora me dando bronca com o dedo em riste não saia da minha mente e então resolvi executá-la. Perto da meia-noite, como o rei me ensinou, me instalei no seu banheiro. Entrei me esgueirando e fiquei atrás da porta. O rei disse que não precisava tanta obscuridade, pois ela não me veria. Segundo ele, estava invisível e, ele mesmo, abria meus caminhos. Teria só que executá-la. Encharquei um pano com éter e esperei. O rei foi acordá-la para urinar. Assim que a porta abriu, segurei-a pelo pescoço e coloquei o lenço no nariz. A mulher desmaiou em segundos. Vi que realmente tratava-se de uma bela mulher, tinha as carnes duras e rígidas, não era pelancuda. E com um golpe só de machado separei a cabeça do corpo. O sangue jorrava abundante. Tomei banho de sangue da professora Letícia. Bebi a maior quantidade possível, até notar o corpo quase incolor. Ouvi a gargalhada ecoar por toda a casa e o uivo sanguinolento. Senti umas fuças sob meu corpo. Nos meus ouvidos, no meu nariz, nas minhas costelas, acho que havia uma infinidade de monstros a rondar o alimento do inferno. Em seguida ouvi também o rei dizer:
_Agora, coma o cérebro dela que nunca mais vai esquecer o que é um substantivo, ou um adjetivo...
E realmente como um passe de mágica aquele conhecimento se apoderou de mim. Passei mais da metade da minha vida procurando substantivos e adjetivos por todo lugar onde passava.
A professora abriu para mim o caminho da morte delineada, mataria qualquer ser arrogante e constrangedor. Em seguida foi o padre Teófilo, assisti ao sermão durante a missa e quando ele falou dos corintianos e Paulo de Tarso que tinha que haver amor. Que toda a sua riqueza era refugo. Que tinha que haver amor, que tinha que haver amor, que tinha que haver amor. Que o amor era paciente, que o amor era benigno, que o amor não trata de leviandade. Aaah! Desgraça! Me senti ultrajado, constrangido e sem amor. Olhei o padre Teófilo que lá no púlpito, pressagiou o fel lotado de amargor que emergia de mim e que derramaria sobre ele. Ali ele soube que seria degolado. Depois de dois anos de ter sugado todo o sangue que jorrava das entranhas da professora Letícia, comeria o coração do padre Teófilo para obter amor. O rei da legião não aprovou minha freqüência nas missas brancas. Toda vez que pisava numa igreja sentia dor de cabeça e náusea. Ele, o rei, queria que eu coordenasse as Blacks sabbaths assim ele referia-se ao ato de sua adoração. No entanto eu ia às duas. Quando saia de lá dos confins do inferno, sentia meu corpo mais teso, mais duro e mais saudável. Meu olhar mais frio e perverso. Percebia o medo estampado no rosto das pessoas ao cruzarem por mim. Trucidei o padre Teófilo enquanto ele lia na sacristia da igreja o salmo 91.
_”...não temerá o terror noturno, nem a seta que voa de dia... Nem peste que anda na escuridão nem praga que anda ao meio-dia...” Aaaaaaaahhhhhh...
Era meia-noite quando dei a primeira mordida no coração do padre. A professora Letícia veio imediatamente à minha memória. A imagem dela me repreendendo e me causando constrangimento bobo com aquela desgraça de substantivo. Pela primeira vez na minha vida bestial acho que algum sentimento misericordioso quase se apodera de mim. Não pelo padre e aquela igreja católica cheia de farsa e expiação medrosa da morte em si. Mas saudade da professora Letícia. Mesmo com esse sentimento infantil e asqueroso querendo me tomar, fiquei revigorado ao matar pela segunda vez alguém importante para a sociedade preconceituosa com doutrinas e falsos juízos. E então trilhei meu caminho ceifando e abreviando, como a morte em pessoa, a vida de quem seria descartável e nocivo à humanidade. Claro, de acordo com o que o rei da legião determinava. Comecei a sentir de maneira mais acentuada um orgasmo prazeroso quando passava pelas pessoas e elas punham o olhar delas cheio de fé e esperança no meu olho frio e decidido. Comecei a ter ódio da humanidade, menos da professora Letícia, coitada. Ao que me consta já matei motorista, psicólogos, estudantes de Letras e áreas afins, balconistas que se aproveitam da ausência do dono e patrão para exercer o poder torto, vagabundos ignorantes, adolescentes arrogantes que acham que sabem tudo, Xamã, funcionários públicos, escritor, vigia-segurança que também aproveitam de algo, no caso a farda e deturpam as ordens que lhes foi dada, dirigente de futebol, e mulheres. Muitas mulheres. Todos que matei eu absorvia uma competência de cada um assim que comia um órgão. Comi fígado, comi cérebro, comi clitóris, comi pênis, comi metatarsos e até cotovelo. Aliás, lembrei-me de um caso peculiar. Não faz muito tempo estava sentado num bar descansando as idéias e o sangue que ajudava a fazer a digestão de um xinxim de bofe. Comecei a ouvir uma conversa de duas mulheres. Duas assistentes sociais, uma delas era morena tinha o cabelo enrolado, confuso e em parafernália, parecia uma tralha desarrumada, uma pinta no seio esquerdo, um ar bestial com uma careta sestrosa cheia de horror toda vez que prestava atenção na fala dos outros e, pasmei, tinha também um olhar frio. Dizia essa criatura como ela humilhou e constrangeu um homem que havia confiado nela e, segundo ela, o apedeuta caíra de amores. Difamou o beócio e nunca mais olhou na cara do estúpido. Aquilo me ferveu as entranhas. Senti um fel diferente na ponta do esôfago subindo pela garganta. Lembrei da professora Letícia. Pobre Letícia, tinha remorsos agora, queria que ela fosse minha mulher, masturbava-me pensando naquele defunto de carnes duras e brancas. Olhei novamente a de cabelos de Medusa e desde aquele dia passei a segui-la. Tinha um carro preto, a cor preferida do rei da legião, meu pai demônio. Morava nos confins da desgraça do subúrbio da cidade. Mesmo assim segui-a. E num domingo que não fui à missa branca executei. Disfarçado de homem do gás subi ao prédio. Ela abriu e então com um facão para descascar cana escondido no roupão com um cabo de 35 cm rendi a desgraçada constrangedora de homens imbecis. Pus-lhe uma amarra na boca, tirei-lhe toda a roupa e me satisfiz sexualmente pela primeira vez na minha vida. Amarei os braços na cama e cortei-lhe os dois pulsos com o facão. Um corte profundo e bem feito. Assisti com satisfação moral e sexual o sangue jorrar e deixar o lençol todo vermelho. Nesse instante ouvi o rei da legião, meu pai demônio, dizer que os acompanhantes dela, sete eguns que abriam espaço para uma tal Yansã, queria lambuzar-se no sangue que esvaía-se como cachoeira. Contemplei gélido, como sempre, a miserável desfalecer, tossir e suplicar por oxigênio. Tive mais nojo do que o habitual e não comi nenhuma parte daquela infame deplorável. Antes de ela partir para o mundo de Hades, disse-lhe que nunca mais ela difamasse um homem bom. Vi o desespero da morte nos olhos frios da Medusa. E morreu. Depois da morte daquela mulher senti um alívio. Ouvi o rei dizer que já era o bastante, ele me daria dinheiro suficiente para minha aposentadoria demoníaca. Foi assim que uma semana depois um homem vindo do tormento e do martírio bateu à minha porta, todo vestido de preto e com os caninos à mostra me entregou a encomenda de satanás. Uma mala com muito dinheiro, quatro passaportes e cinco identidades diferentes. Pus-me a pensar na professora Letícia. Invoquei o rei da legião e perguntei-lhe por ela. Pela primeira vez desde que mundo é mundo o Cão condoeu-se. Fez algumas recomendações e me levou para um passeio no mundo dos mortos. Tive que levar uma moeda para o barqueiro Caronte. Passei pelos anéis dos corruptos, dos ladrões, dos invejosos, dos mentirosos e difamadores, onde vi a tal cabelo de Medusa sofrendo atolada num tonel de merda. Cheguei ao paraíso e fui conduzido por Dante. Lá a professora Letícia conversava tranqüila e absorta com Beatriz. Tinha um olhar que nunca tive, nem nunca quis ter. Não disse nada, olhei com meu olho frio, mas com uma quentura dentro do coração. Só assim me dei conta que havia absorvida a oração do padre Teófilo e senti o gosto de uma gota salgada a passear nos meus lábios. Virei as costas e voltei por um atalho sem passar pelo inferno novamente. Assumi nova identidade e comecei a conhecer o mundo de satã, cheio de riqueza, tecnologia, luxúria, falsidade e sem amizade. Aqui fiquei bem, aqui é o meu lugar...

Carlos Vilarinho 09/03/08


sábado, 8 de março de 2008

PEQUENO TEXTO DE AGRADECIMENTO

Quero parabenizar a todas as mulheres que estão ao meu lado, ajudando a divulgar o novo. Me dando forças para continuar esse trabalho de formigas. Como o conto "A GUERRA DE FORMIGAS" já postado aqui e que me deu um prêmio no Rio Grande do Sul como autor destaque 2007.
Tiro-lhes o chapéu largo, como diria Fernando Pessoa, em reverência e agradecimento.
SEM VOCÊS O MUNDO NÃO SERIA MUNDO, NEM O HOMEM SERIA SER HUMANO.
Carlos Vilarinho 08/03/08

terça-feira, 4 de março de 2008

OGRO QUIROMANIACO

Muitos leitores têm perguntado o que é um "OGRO QUIROMANÍACO". Sinceramente não sei como explicar. O que tenho a dizer é que nasceu um conto dentro de mim. E essa criatura cresceu com todo o seu desejo. Esse texto foi premiado três vezes e é uma das minhas criações que mais gosto. Posso acrescentar que todos vocês já usaram a quiromania (não confundam com quiromancia) de uma forma ou de outra. Leiam e amem o "OGRO QUIROMANIACO". É tudo uma questão de amor.
OGRO QUIROMANIACO


Tudo começou quando percebi que minha aparência de ogro urbano estava sendo levemente observada por dois olhos vivos, ávidos e fugidios como os de uma criança. Alê surgiu envolta numa beleza branca, tímida e brilhante. Não sei quanto tempo ela me olhou, contudo posso afirmar que foi uma olhadela bem suave como ela própria. Aos poucos pude notar que Alê era dona de um semblante singular, incomum e pouco prosaica. Ao que me parece não são todos os olhos que desnudam a pele branca e límpida de Alê. Não sei como surgiu essa curiosidade de espiá-la, talvez em retribuição à observação primária feita por ela a mim. Entretanto e provavelmente ela mesma não se dava conta de que observava sem querer. Talvez curiosa pelo meu aspecto monstruoso. O fato é que não conseguia desviar o olhar daquela criatura do universo. Natural, encantadora e quiçá enigmática como o próprio cosmos. Nossos olhos passaram então a encontrarem-se uns aos outros numa rapidez e timidez contumaz. Um afinco só atestado por nós dois. Sabíamos que não iríamos além de só fazer nos perceber. Vontade não me faltou, pelo menos a mim, de sentar e conversar, lógico sem procurar assustá-la, pois apesar de fantasiar e dominar as palavras muito bem, meu aspecto, como já falei, era talvez carunchoso. Jamais procuro arrefecer meu semblante bestial. Queria, no entanto iniciar uma conversa de horas, dias. Semanas até. Por vezes e naturalmente, quando meus olhos pousavam sobre ela, sem que me visse, registrava seu corpo em minha memória itinerante e desejava-a numa volúpia voluntariosa. Em meu pensamento o sexo de Alê eram dois lábios grossos e fibrosos, tinha os pêlos pretos e bem aparados. Além de uma ou outra sarda ao redor. O botão do clitóris em cima, rijo e inchado pedia minha língua áspera. O visco, o fio de baba ligava-se à minha boca e eu ouvia o sussurro rumorejante do gozo de amor de Alê.
Numa manhã servi-lhe café. Esperei propositalmente o momento em que Alê se aproximou da mesa posta e lhe ofereci a minha gentileza. Ela sorriu e perguntei-lhe o nome. Sorrindo mais ainda, com os dentes brancos a mostra, Alê respondeu e quis saber o meu. Acho que exalei uma espécie de elixir de Dom Juan, ou o espírito, alma, qualquer coisa que valha nesse sentido, de Dorian Gray que me tomou como cavalo. Derramando de vontade e desejo, penetrei em toda profundidade dos olhos de Alê. Pude então notar como realmente são vivos, sôfregos, ansiosos por palavras e pensamentos. Pus então na minha cabeça que só eu com minha verve de escritor poderia municiá-los. Desde então passei a procurá-los sempre. Veio em minha memória recordações de Beatriz de Dante. Ou da senhora de Rênal de Stendhal. Ou até mesmo Charlotte que deixou o jovem Werther louco de paixão letal e suicida. Quanto a Dante, não sei se é preciso passar pelo inferno e purgatório para depois encontrar Alê no paraíso. Até porque acho que já estou purgando há tempos. Minha aparência de bicho-papão e minha mulher, Cuca zangada, me colocavam na barca do auto-do-inferno.
Numa noite, entretanto pude ver um aspecto diferente no rosto de Alê. Estava séria e preocupada conversando com algumas pessoas. Fiquei inquieto e apreensivo e com atenção redobrada nos olhos tentei ler os seus lábios. Não entendi de todo, mas provavelmente Alê falava de alguma cirurgia, equipe médica ou coisa do gênero. Fiquei sabendo através de perguntas distraídas que Alê era médica. Encetei uma conversa despretensiosa com a mãe dela, na sua iminente ausência e colhi algo sobre ela. Mesmo assim Alê continuou enigmática para mim. Não tive sensação de déjà vu, ainda bem, posto que as pessoas são sempre parecidas e certas vezes, são iguais. Sobretudo as mulheres. Com Alê não tive essa impressão de início, nem de meio. Espero que no final eu não me decepcione. Em poucos dias senti toda essa gama de sentimento por uma pessoa até então desconhecida.
No dia seguinte, da janela do hotel que me encontrava, pude ver Alê tocando violão. Tive a impressão que olhava para meu quarto, para a mesma janela em que eu a espionava. O vidro era fumê, portanto eu a via, ela por sua vez não fazia idéia que havia alguém por trás do vidro a espreitá-la. Contudo através daquele vidro escuro percebi a alma de Alê. Lá longe, ela com sua brancura do infinito possuía um feitiço da lua. E como por osmose, notei que Alê me queria. Queria sugar todo o meu eu intelectual e interativo. Por isso sorria para mim. Por isso trocava olhares furtivos. Por isso conversava distraidamente com minha mulher zangada, enquanto eu torcia para que fizessem amizade para eu ficar mais tempo perto daquela suntuosa magnitude do universo. Por isso deixava as coxas e o baixo ventre bem ao alcance de meus olhos. Eu ficava viril e latente quando via de relance o talho. Ao mesmo tempo, quando a olhava perdido em meus pensamentos, sonhando no vai-e-vem das minhas mãos, dos meus punhos de ferro, percebia o tempo passar vagarosamente entre eu e Alê. Aos poucos aquela nuvem branca que eu via e desejava a ponto de masturbar-me e gozar sufocantemente, num soluço renitente, distanciava-se de mim num êxtase delirante de pensamento e seu clímax vertido com ímpeto. Agora eu via a minha mulher, a Cuca zangada, sentada na mesa da beira da piscina sozinha e inerte na cadeira de rodas junto com a criada.
Alê, por sua vez, explodiu no universo, transformando-se em nuvem de pensamento de Onã.

Carlos Vilarinho

sábado, 1 de março de 2008

CHEIRO DAS ENTRANHAS


Suzana passava desodorante nas axilas quando olhei para ela. As dobras e a concavidade do sovaco mexeram imediatamente com a minha libido. Aquela concha embaixo dos braços de Suzana assemelhava-se fortemente com sua vagina. Havia, é claro, uma diferença geométrica, mas a atmosfera que aquela imagem produzia me deixou em êxtase duro e teso. Pensei em outros sovacos que conheci. Ela desconfiou do meu pensamento inusitado.
_Conheço essa cara, o que está pensando?
Não disse a Suzana a minha paráfrase sexual. Uma metáfora incomum que aparece do nada quando achamos que estamos distraídos. A vida para Suzana quebrava-se insistentemente como os tubos das ondas surfistas. Ao contrário do que muitos achavam, Suzana era uma mulher cheia de pudores convencionais que só os esquecia quando o outro conseguia penetrar-lhe vagina adentro e soluçar dentro dela. Não era pra frente, liberal, Woodstock ou coisas do gênero. Era, no entanto bela, de pele morena e cenho franzido. Acho que ela mesma enxergava-se feminista, e ela própria sabia que não era. Não sei de imediato ou deliberadamente o que chamou a atenção para o sovaco de Suzana. Só sei que as dobras e os pêlos por raspar levaram-me de imediato ao sexo dela. Às vezes quando terminávamos de fazer amor, Suzana dizia que eu era porco. O lençol ficava melado e eu me espojava por cima do melaço. Eu ria e falava uma verdade disfarçada de brincadeira.
_Você não mexe direito, por isso mela tudo...
E surtia efeito, ela ficava na dúvida. Não sabia se eu falava a verdade ou se estava brincando. Ria sem graça e se levantava para buscar cervejas e cigarros. Além de pudica, era meio indolente, sobretudo depois dos soluços dentro dela. Tinha um sinal no seio esquerdo, outro na virilha, às vezes, quando não fazia os pêlos, o sinal ficava escondido na mata dos países baixos, assim eu mesmo brincava com ela, e gostava sempre de escova no cabelo. Não sei se era esquecida de propósito, tem mulheres que gostam de ser avoadas. Ou se realmente tinha rixa com o tempo. Parado ainda gozando o gozo, depois dos soluços dentro dela, lembrei-me de Teresa Cristina. Essa era diferente, não tinha nojo das gotas do amor. Era, entretanto muito contida e discreta no social. Nunca se atrasou, e não esperava soluçar no seu interior para esquecer do mundo fora das paredes. Entretanto jamais senti algo diferente quando me deparei com o sovaco de Teresa Cristina. Mesmo não tendo a memória ativa para as axilas de Teresa, acho que o sovaco dela não tinha dobras. Era liso e branquinho. O sexo dela também era liso com uma tênue cor lilás no início das bordas labiais. Pensei em falar isso para Suzana, para ver e sentir a reação dela. No entanto contentei-me em comentar com furtiva sinceridade que havia por inteiro em seu corpo e ao redor dele quando os membros se unem uma sexualidade diferente. Suzana me olhou mais desconfiada do que a primeira vez e aí percebi sua insegurança com relação a mim e a ela própria. Se fosse Teresa Cristina teria agarrado meu falo e sugado o que ainda restava do meu leite. Pedi a Suzana para não se vestir. Senti que quase a encabulava, mas dei-lhe um carinho rude e impetuoso que a fiz esquecer o acanhamento. Pus seu braço esquerdo estirado para ao mesmo tempo repousar a cabeça dela e eu olhar a extensão e contornos do sulco que compunham o sovaco de Suzana. Comecei a fitá-lo em discreta visão. Olhava o rosto de Suzana, seus traços e olhos puxados. Com a escova do cabelo já assanhada e com outra visão, a de través, pus-me a desejar a axila com cheiro de creme da minha parceira de sexo. Olha-se para um lugar e fita-se outro. Delineei então toda axila da morena Suzana. E ficava cada vez maior a minha ereção. Pensei ao mesmo tempo na boca de Teresa Cristina lambendo meu pau e no corpo rijo de Suzana em letargia latente depois do gozo.
_Você é estupidamente grande...
Quando achava de beber, bebia conhaque e ficava bêbado na terceira dose. Vomitava logo. Suzana então me levava para a privada, depois de ter golfado uma ou duas vezes. Aí sentia o cheiro do sovaco. Mas não tinha o cheiro que queria sentir. Gostaria de sentir o cheiro das entranhas de Suzana no seu sovaco. O cheiro salgado de dentro da mulher. Ficava entediado com a companhia meio intelectual de Suzana. Ela começava a falar de Simone de Beauvoir. Eu fingia não entender bulhufas. Não gosto de feministas e odeio papo cabeça de gente que não conhece porra nenhuma. Conhece nada de viver, por exemplo. Já havia dito isso a ela. Conversa, conversa e conversa, depois morre, sem fazer, nem transformar nada, nem ninguém. Uma vez Suzana me apresentou a uma criatura com um sovaco horroroso. Falava de educação e de coisas espirituais. Fiquei tão entediado que fui fumar maconha com os adolescentes, voltei muito doido e falei sobre vaginas. Todos me ouviram fingindo normalidade. Percebi, entretanto um ranço careta e moralista sobrevoando a atmosfera. Então me calei encabulado. Talvez fosse a maconha, mas acho que não. Suzana não era assim intelectualizada com tamanha intensidade como queria mostrar ali naquele momento de sexo. Comecei a ouvir a ladainha filosófica que se dispôs a falar. Falava para disfarçar o pudor que a tomava. Eu viajava no sovaco de Suzana, ela nem desconfiava disso. Falava mais coisas intelectuais. Depois falou de cultura e sociologia. Disse-me que eu deveria cuidar da minha cabeça e fazer poemas mais engajados.
_Mas Suzana a poesia de engajamento já saiu de moda...
Ela aproveitou e disse que se eu fosse realmente poeta eu tinha que ter dentro de mim uma vontade de explodir o mundo. Acho que fiz uma cara daquelas de desfaçatez bem acentuada. Suzana muxoxou e levantou-se novamente. Estava visivelmente acanhada e com pudor do belo corpo que possuía. Mas eu só queria continuar a olhar o sovaco dela. Pensei em dizer-lhe isso, mas ela não entenderia. Mudei de assunto o mais rápido possível e fiz-lhe novamente um carinho rude. Peguei-lhe pelo sovaco e fiquei roçando meu braço embaixo das axilas dela. Um dia Teresa Cristina falou dos meus pés. Comparou meu pé com meu pau. Uma estranheza enigmática quase me tomou nesse dia. Depois pus a olhá-lo e dobrei a perna até a virilha e tentei medir os dois para ver qual era maior. Meu pé era um pouco maior. Enfiei o pé na vagina de Teresa Cristina. Mas o que queria mesmo era penetrar no sovaco de Suzana. Ela sem desconfiar do meu real objetivo deixou que eu brincasse com o seu corpo. Meti meu rosto no sovaco e fiquei cheirando, lambendo, beijando, mordendo. De repente no êxtase, assaltou-me um pensamento que andou dentro de mim por instantes. Será que a minha tara sovacal era um fato social? E se de repente o mundo inteiro aderisse ao sexo de axilas? Mas nenhuma axila era como a de Suzana. Uma vez estudava Letras numa faculdade mambembe. Só fazia então olhar e observar os colegas. Apesar de estudantes de Letras tinham leitura limitada ao curso somente. Eu tentava me firmar como poeta. Conheci dezenas de garotas lá. Mas uma destacou-se em meu eu. Era despojada, tinha um cenho franzido e usava saia rodada. Parecia uma cigana. Zafira era o nome dela. Ela, Zafira, era dona de uma autenticidade ímpar, apesar de muito nova. Às vezes, quando eu falava asneiras intelectuais de propósito, ela era a única que perguntava: O que é isso? Quando eu sabia, dizia. Quando inventava, inventava também a resposta. Era jovem e solteiro e não havia em mim ainda a tara axilal. Acho que tudo começou naquele dia. Zafira passou e um vento levantou o saião. Aquilo foi um presente dos deuses. Vi a calcinha pequenina. Não sei o que se passou na cabecinha dela que não largou os livros presos embaixo do braço, no sovaco. Veio ofegante para o meu lado e sentou-se sem graça. Tão desconcertada que vi o seio, grande, rosado e duro pular da blusa. Eu que lhe avisei. No entanto o que me chamou a atenção realmente foram as dobras da junção do braço e do ombro descendo para o sovaco. A minha imaginação de poeta brilhou entre as dobras do braço e o seio rosado. Achei que a vagina de Zafira era daquela forma. Pedi a ela, com a cara mais deslavada para que me mostrasse. Ela riu. Ruborizou-se. E pediu para que eu a acompanhasse. Fomos para uma sala no último andar. Zafira sentou-se numa mesa de professor e suspendeu o saião, tirou a calcinha pequenina e me mostrou o sexo com os pêlos aparadinhos protegendo ao redor dos lábios a entrada vaginal. Lambi até ficar viscoso. Senti o cheiro das entranhas, que procurava em toda mulher que possuía e poucas tinham. Elas preferem o cheiro do creme laboratorial. Em cima e embaixo. Pensei em fazer um movimento masculino, uma greve, uma passeata, pela volta do cheiro das entranhas femininas. Voltei do sonho com a sacudidela de Suzana. Havia cochilado embaixo do sovaco dela.
_Quanto tempo eu dormi?
_Não sei, uma hora, mais ou menos.
_E você ficou assim todo esse tempo?
_Fiquei... Fiquei com peninha de você.
Tive orgulho de Suzana. Ela gostava de mim, dava provas de suporte amoroso. E eu cá nos meus pensamentos e sonhos prostitutos. Na verdade não sei até que ponto vale a pena amar o sexo oposto. Vale a pena fazer amor, conversar, beber, comer e depois ir embora cada um para sua casa. Eu mesmo iria procurar futebol na televisão, beber cerveja e babar todo o sofá quando cochilasse. Acho que não babei o sovaco de Suzana. Aliás, dava graças a deus por ela não ser adepta da ladainha de “amor vamos fazer um filho?”. Nem todas as mulheres são filhas de Yemanjá. A maioria delas traz uma Padilha de frente. Quem escolhe o que quer ou quem quer é a mulher e quem come são elas. Ditadura vaginal desde os primeiros tempos. Ouço diariamente em todos os lugares que vou e fico a abelhudar o universo feminino que todas gostam do cheiro de homem. Cheiro de sovaco de homem. Numa coisa elas têm razão, o cheiro das entranhas é estimulante sexual. Contudo são paradoxais e elas próprias enchem-se de perfume. Suzana não é diferente. Teresa Cristina era diferente, às vezes não sentia cheiro de nada que exalasse dela. Teresa Cristina casou-se com um vendedor de automóveis que ganhava três vezes mais do que eu. Tive vontade de mostrar-lhe as poesias que fizera pensando nela. Mas não ia adiantar, poesia não mata fome nem dá status social. Além de que todo poeta é zonzo e prefere girar o mundo atrás de metáforas a buscar alicerce financeiro para sentir-se poderoso. Teresa Cristina era prática dentro e fora de quatro paredes. Suzana agora me olhava com olhos pidões de beijos.
_Quer casar comigo e ter filhos?
_Tá maluco? E o meu noivo?
_Se gostasse dele não estaria aqui nua e me pedindo beijos.
_Não estou lhe pedindo beijos.
_Está me pedindo por dentro sem deixar sair.
_Mas que conversa! Não quero casar com você...
Era isso que queria ouvir. Fiquei mais tranqüilo, mesmo percebendo o embaraço que a tomou inadvertidamente. Ela queria, sim. Mas não acreditava que estivesse falando a verdade. Não estava mesmo. Suzana começou a vestir-se. Deixei, queria ficar só. Ela saiu sem falar comigo. Uma onda de solidão me invadiu. O cheiro do creme de Suzana ficou no ar. Cheirei meu próprio sovaco e pus-me a escrever poemas de cheiro...
Carlos Vilarinho 01/03/08