quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

O FOTÓGRAFO


Sempre quis ser escritor. Quando adolescente lia até com certo furor, mesmo não entendendo muita coisa. Na verdade ficava maravilhado com aquele mundo de letras reunidas num papel dentro de um livro. Ouvi uma vez de um fotógrafo que certo escritor russo delongava-se em explicitar o psicológico humano. Me contou também uma história do tal russo, que não lembro como se pronuncia o nome. Era a história de um estudante que matava uma velha e se apoderava do dinheiro ou coisa que o valha. Aí, segundo o fotógrafo, o aluno rebelde passava toda a história do livro com remorso. Tentei ler, mas não entendi uma só palavra. Mesmo assim prometi a mim mesmo que seria escritor. O tempo passou e só consegui escrever cartas para uma mulher que estava apaixonado. Um dia ela resolveu sair comigo. A criatura, provavelmente pela força da curiosidade estava lá na hora marcada. Eu que cheguei atrasado, pois estava compondo um poema para entregar-lhe. Resolvi recitá-lo, quando abri a boca e consegui ir até a segunda estrofe. A mulher levantou-se num rompante, muxoxou e grunhiu. Foi embora e nem se despediu.
Em tempos conheci outro fotografo. Era um velho tarado. Disse-me que as imagens poderiam ser coladas, para, quem sabe, forjar algum acontecimento. Lembrei da pintura de Dom Pedro primeiro às margens do rio Ipiranga, gritando “Independência ou morte”. Aquela pintura seria burlesca. Lembrei disso, não que eu tenha disponibilidade de raciocínio, mas vivo nos bares dos universitários e ouço muita coisa que falam. Essa é uma delas. O fotógrafo velho e tarado me convidou para ser seu assistente. Aceitei sem piscar. Ele não tinha uma das vistas em perfeita condição. Precisava então que alguém junto com ele e sob sua coordenação espreitasse as imagens fortuitas da rua. O velho fotografava e mandava para umas revistas. Sei que uma era para turistas. Não entendia porque ele, na maioria das vezes, escolhia umas neguinhas xexelentas para registrar. Não pelas neguinhas, mas pela xexelentologia. Uma vez ele me disse que eu era muito opaco, só porque fiz a pergunta em relação às neguinhas. Achei que era elogio e ri satisfeito.
Um dia ele me disse que se envolvera com duas mulheres distintas. Conheci uma delas. Era uma coroa também, meio pelancuda, mas dava um caldinho, pensei de imediato, depois mudei de idéia. A mulher era muito desbocada, falava cinco palavrões em cinco palavras. Ele, o velho fotógrafo, ria divertindo-se e achando que aquela balbúrdia lexical e semântica era a sensualidade latente da mulher independente. Esquisito. Eu ficava enojado quando aquela criatura aparecia enquanto trabalhávamos. Nunca mais bebi no mesmo copo do velho depravado. Em alguns dias ele me levou e mandou que tirasse fotos dos dois em letargia hipnótica do namoro. Tirei as fotos e eu mesmo as editei. Depois me disse que ia me mostrar as fotos que ele mesmo tirara com a outra criatura. Sempre que chegava a casa do velho me intrigava com a bateria de remédios que ele mesmo tomava. Era um colírio e alguns remédios para a pressão e para alergia. Com tanta droga não sei como agüentava beber do jeito que bebia. Disse-me também que quando acordava ressaquiado só podia beber chá. Perguntei então pelos remédios enfim.
_Não posso, alguns ali são de restrita responsabilidade, tenho que tomá-los de vez em quando por causa da alergia.
E assim fiquei sabendo que alergia mata. Nesses tempos destitui a idéia de ser escritor. Decidi ser fotógrafo. Até porque já dominava a técnica satisfatoriamente. E graças ao velho saía aos poucos do meu estado de burrice sólida que me acompanhava desde pequeno. O velho mandou que eu lesse alguns livros e imaginasse as imagens escritas pelo escritor.
_Fotografia também é assim, só que você capta a imagem, registra e ela aparece numa tela de computador.
_As imagens de um livro só aparecem em nossa mente, não é isso?
_Isso mesmo.
E então ao conversarmos ele começou a me mostrar umas fotos. Segundo ele eram clássicas, publicadas em revistas antigas, “O CRUZEIRO” o nome de uma delas. Foi aí que para meu desespero havia uma entre tantas, a foto de minha irmã beijando a boca imunda e execrável daquele velho fotógrafo. Senti uma quentura por dentro, fiquei meio cego e não ouvi mais a fala do velho.
_Aaah! Essa é a garota que lhe falei, ela é mais nova do que eu e é quente, quente e quente... Parece um bule de café ou uma chaleira em chamas... Você entende metáforas? Não, é muito opaco para entendê-las.
Ali desconfiei de “ser opaco” e entendi que não se tratava do que eu achava que fosse. Então aproveitei a minha intransparência e dissimulei o que sentia. Olhei nos olhos do velho fotógrafo e percebi um certo temor. Continuamos então a passar fotos e em seguida fomos editar algumas. Minha mente estava ainda confusa e aos poucos absorvi aquele ciúme fraternal que me tomava como uma onda. Não entendia como minha irmã que não era nenhuma neguinha xexelenta poderia dependurar-se nos beiços imundos daquele velho chupador de clitóris antigo. Uma vez ele mesmo me contou uma história a respeito de um rei que matou o pai e casou-se com a mãe. Disse-me que a história era tão antiga que acabou virando complexo. Não entendi direito, mas agora me passava pela mente que aquele velho tinha idade de ser pai de minha irmã. Seria complexo também isso? Comecei a me sentir como o estudante se sentira, menosprezado e cheio de soberba arrodeando meu eu.
_Aqui, achei... Isso aqui é um convite para eu fotografar o grande evento que haverá no palácio dos governantes amanhã... Eu não sei quem é esse cara, mas li nos jornais que será um evento de primeira, é minha chance para erguer-me novamente e ir para o top de linha da fotografia, tenho que colocar minha foto nesse crachá e me apresentar, você vai comigo como assistente...
Tudo veio nitidamente à minha cabeça. Olhei o convite e lembrei-me de ter ouvido algo a respeito daquele evento na televisão. Deixaria de ser opaco. Esperei de fato o momento que colocaria em prática o plano que me tomou de assalto e teria que executá-lo.
_Meu remédio, garoto, vamos pegue o meu remédio...
O velho gostava de água bem gelada para entornar a cápsula. Servi-lhe e voltei para a edição das fotos. Ele morreu inchado. O edema de glote tampou a passagem do ar. Senti remorso como Raskolnikof. No outro dia apresentei-me ao palácio dos governantes com a minha foto no crachá. As fotos que tirei foram as mais elogiadas. Deixei de ser opaco e assumi o posto de fotógrafo exclusivo do palácio. Não sabia, mas minha irmã herdou o seguro de vida que o velho tinha feito e colocado o nome dela. Ela e a coroa pelancuda dividiram o dinheiro, as duas extorquiam juntas o velho safado. Não tive mais remorso, mas fiquei com raiva de minha irmã e da coroa. Comecei a achar que essa história de crime e castigo não existe. Só mesmo na cabeça de escritores...

Carlos Vilarinho
02/12/07

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

TRANSE RITUALÍSTICO

TRANSE RITUALÍSTICO

Foi quando lambi Eleonora pela primeira vez que a minha memória brilhou. Fingia que dormia e ia, em seguida, espreitar minha mãe e meu pai antes de dormir. Ouvia de mês em mês, meu pai dizer para minha mãe.
_Ah, Luciana! Que maravilha de sangue.
Ele estava com a cabeça enterrada entre as pernas de mamãe. Sempre tive curiosidade de saber o que aquilo significava e voltava para a cama com o gosto de sangue na lembrança. Ficava intrigado também com o sussurro de pathos de minha mãe emitia. Parecia uma comoção empírica que ela tirava do fundo da alma. Ao mesmo tempo a angústia e o remorso de pecador me perseguiam lado a lado. Sentava na cama e rezava o pai-nosso e a ave-maria.
_Não me castigues, ó Deus, todo poderoso! Livrai esse filho, ainda menino, da expiação luxuriosa.
E então estudava Latim para me tornar padre. Havia um sacerdote estranho e esquisito, contava histórias escabrosas e em todas as oportunidades contava num ímpeto irregular olhando para mim. Como se soubesse o que eu seria em poucos anos a partir dali. Tinha uma fundura nos olhos e um olhar penetrante de quem quer hipnotizar. Todos tinham medo, menos eu. Eu ria de través querendo despertar um desejo obscuro. Foi assim que percebi qual a data que meu pai chupava o sangue de minha mãe. Era todo dia vinte e oito. Cresci espionando todo dia vinte e oito do mês. Quando era adolescente, lá pelos quinze, dezesseis, eu olhava e depois me masturbava gozando um prazer estranho. Prazer de ter minha mãe. Queria ser Édipo. Acho que minha mãe chegou a perceber, pois um dia ao andar pela sala, ela baixou os olhos em mim e me viu teso olhando as suas ancas.
E assim fui crescendo, esperando ter uma mulher e sem conseguir nenhuma.
Eleonora chegou para cuidar de meu pai. Era uma sarará bonita e grande, cheia de sardas pelo corpo. Meu pai ficou estafermo, não servia mais para nada. Minha mãe ia receber o soldo da aposentadoria e deixava a metade na farmácia. Se não fossem as casas de aluguel que construiu, teríamos passado fome. Eu não sabia o que eu mesmo era. Não consegui ser padre. Um dia vi minha mãe conversando e gesticulando muito forte com o sacerdote. Não sei o que houve, mas depois desse dia ela nunca mais foi, nem me deixou voltar à igreja. Ali, naquele tempo, eu já sabia o que significava a cabeça de meu pai entre as pernas de minha mãe. Era quase um masturbador profissional. Entretanto sabia que ainda faltava algo em mim que por certo se concretizaria algum dia.
_Ah, Luciana! Que maravilha de sangue.
Era um silogismo que faltava a inferência da conclusão. Eleonora então fazia o seu trabalho regiamente, fazia a comida, lavava a roupa e banhava meu pai todos os dias. Eu a olhava com uma fome diferente. E algo grunhia na minha barriga descendo pela virilha. Comecei a pensar qual seria o dia da sangria de Eleonora. Tentei de várias formas olhar o volume entre as pernas dela mas não conseguia discernir. Eleonora era tão grande quanto havia entre as pernas. Não sabia se o volume que via era natural ou fabricado colado à calcinha. Também ela fechava a porta durante o banho bem fechada, além de, ao que parece, tampava a fechadura com papel higiênico.
E eu continuava sem mulher aos vinte nove anos. Eleonora tinha uns trinta e cinco por aí. Um dia vi que me olhava esgueirando-se na porta da cozinha. Passava os dias assistindo televisão e sonhando com as atrizes de novela. Sonhava tanto que às vezes trocava os nomes de minha mãe e até de Eleonora pelo das atrizes. Acho que isso despertou uma certa curiosidade em Eleonora, noveleira que era também. Então começamos a conversar brevemente. E por vezes notava um sorriso meigo de Eleonora para mim. Mas eu sorria pouco, nem sabia direito o que significava sorrir. Quando estava no catecismo o sacerdote dizia que risos e galhofas eram parte do demônio e, em seguida, ele mesmo ria um riso satânico. Que por sinal eu adorava e aprendi a rir só daquele jeito. O riso de Eleonora era diferente, era mais leve e brando. Acho que aquele deveria ser verdadeiramente o riso de uma mulher. Comecei então a ficar mais perto de Eleonora, mesmo sem jeito e acabrunhado. Aos poucos Eleonora acumulou funções. Passou a me servir também, além de os afazeres com meu pai. Minha mãe logo desconfiou e ao contrário do que eu imaginava, incentivou Eleonora a me seduzir.
Em poucos dias dei o primeiro beijo da minha vida. Meu beiço tremia e meu corpo todo esquentou. Lembrei de meu pai e o sangue de minha mãe. Quando chegava perto de Eleonora sentia uma fome diferente, como já havia dito antes. Sentia a carne quente e macia da sarará cheia de sardas. Como não tinha experiência com mulher, custei a me firmar diante de Eleonora. Meu pai moribundo não me dava instruções sexuais. Nunca dera, não seria agora depois de semimorto que daria. Minha mãe que um dia chegou bem perto de mim e me disse com agir com uma mulher. Fiquei muito constrangido e indignado com aquele atrevimento sem pudor de minha mãe. Senti de novo o cheiro de sangue. Dessa vez ele emergia de minha mãe.
Aos poucos então a minha dúvida foi se diluindo. Já sabia mais ou menos o que queria fazer e quem eu era na verdade. Pus-me então a orar dia e noite.
_Não me castigues, ó Deus, todo poderoso! Livrai esse filho, agora homem crescido, da expiação luxuriosa.
E rezava em latim. Um dia ao entrar no quarto de meu pai vi os seios de Eleonora, fiquei vermelho de vergonha e saí. Eleonora veio atrás de mim e decidida, começou a me acariciar. Disse-lhe que parasse que o pior poderia acontecer. Tentava então avisar, pois já sabia o que eu era de fato. Mas ela não deu ouvidos e disse que tinha sangue entre as pernas. Imediatamente foi acionado dentro de mim o que havia desde criança e só descobri alguns meses atrás. Fui para o quarto com Eleonora e comecei a lamber-lhe as pernas lembrando das palavras de meu pai com minha mãe quando eu os espreitava. Lambi todo o sangue que saía de Eleonora, suguei tudo. Em seguida fiz minha segunda vítima em três meses de antropofagia delirante. Abocanhei todo o sexo de Eleonora e com uma mordida firme arranquei os lábios vaginais. Eleonora deu um grito de dor lancinante, tentou desvencilhar-se e com minha força descomunal, mordi as nádegas. O sangue então jorrava com mais abundancia. Lembrei do bebê que havia devorado semanas atrás. A carne era diferente. A do bebê era mais deliciosa e suculenta, mais macia. A carne de Eleonora era um pouco mais dura e acho que as sardas davam um gostinho meio acre. Parecia que tinha sido banhado com limão, mesmo assim havia em mim um apetite monstruoso. Entendia então a fome diferente que passei a sentir por Eleonora. Como um lobo faminto destrocei toda a parte carnuda da mulher que já não respirava e em êxtase canibalesco, lambia e chupava-lhe as costelas. Ao terminar, voltei a mim, que não sabia quem eu era realmente se esse que voltara do transe antropofágico ou aquele imbecil que nunca fizera nada na vida. Como me livrar daqueles restos ali. Foi então que vi a figura de meu pai em pé se escorando em alguém, moribundo e rindo o riso dos sádicos.
_Muito bem, pensei que nunca ia aprender...
Vi então que quem o escorava era minha mãe, já com um saco para colocar os chupa-molhos que sobraram de Eleonora. Levamos para o quintal e fizemos o ritual de agradecimento ao deus canibal...


Carlos Vilarinho
08/12/07

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

ESPELHO
Tratar com destreza,
Ternura e carinho.
Singelo sem pobreza.
Letras e sílabas
Costuradas em linho.

Construir imagens
Comer pão e carne
Beber água e vinho.

Sonhar e enrubescer

Distorcer, fantasiar,
Denegrir.
Tergiversar, engendrar,
Mentir.
Sustar, imputar, assacar.
Enegrecer.

Amor turvo,
Ódio doente.
Ódio curvo,
Amor latente.

19/02/08
Carlos Vilarinho

sábado, 16 de fevereiro de 2008

A GUERRA DE FORMIGAS

Texto classificado como conto pelo Concurso Letras Premiadas da Edição 2007 – ALPASXXI- DESTAQUE NACIONAL.
http://alpasxxi.literatura.zip.net
A GUERRA DE FORMIGAS

Um dia ao ler uma crônica de Ferreira Gullar deparei-me então com uma guerra de formigas. Dizia ele que um doido contara-lhe como fora a batalha sangrenta, indócil e irascível das de cabeças vermelhas contra as de cabeças negras. O doido, numa narrativa peculiar, metafórica e fabulosa, bem ao estilo de Esopo, deslumbrou e fascinou o hoje cronista e poeta que vivia debruçado na venda do pai em busca de nuances da vida cotidiana para mais tarde ele próprio degustar-se em suas histórias e poemas contados.
Eu não vivia debruçado na venda de meu pai, ele não tinha venda. Mas o vento que me esbofeteava o rosto, as folhas que caíam e as lagartixas que me diziam sim o tempo todo, me faziam pensar, ainda menino, no estado das coisas. Também menino, colocava formigas para brigar, sempre uma acabava arrancando a cabeça da outra e, já menino, não entendia o porquê de tanta violência incitada por mim próprio. Então, ainda menino, observava os adultos e, por vezes, via um tio brigar com uma tia, ele trazia a expressão louca na face. Todos o temiam, eu não. Não sei como, mas sabia que dentro dele havia um pulsar angustiado e saturado da vida em si. Ele brigava com a tia para satisfazer a angústia e saturação que realmente nos são impostas.
Descobri em Shakespeare que o ser humano só serve para viver. Cada qual em seu cada qual. Shylock, o agiota judeu, avisou a Antonio, o mercador devedor. Não nego que depois de algumas leituras, de alguns autores, tornei-me descrente e triste. Como diria um compositor, “assim caminha a humanidade, com passos de formiga e sem vontade”. E mesmo insone, acalentando a noite e pensando nos amores que tive e tenho, não consigo deixar de ser ser humano. Imagino o que levaria a considerar uma loucura. Acho que louco é o humano que é paradoxal e que paradoxalmente não aceita mudanças.
Lá pelo início dos oitenta, também conheci um doido. Ele não me contou história, apenas me deu uma injeção de glicose. Disse-me que tinha uma letra bonita, e era verdade, depois me pediu um esquadro (eu era estudante de desenho técnico). Ao questionar, ele me respondeu e só aí soube que era lunático. “É para medir a lua, saber onde pousar, tô construindo um foguete para fugir desse lugar de doido”. Depois me perguntou se eu era certo.
Ninguém sabe que é sozinho. E não quer saber. Só sabe que tem alguém para controlar, opinar e não respeitar o que esse alguém pensa ou acha dele. Desse outro que quer o controlar. No entanto quer saber o que se acha de outro qualquer certamente. Talvez surja uma nova espécie de santo, segundo Alberto Caeiro. Deus vai perguntar isso algum dia. E mais: vocês não querem ser iguais? Provavelmente haverá um uníssono sim. Como o da lagartixa. E aí todos correrão por entre as pedras, como as lagartixas.
Então “Que morte tem a morte, que vida tem a vida?” Responderíamos todos: mas que pergunta desse rapaz! Deve estar insatisfeito ou infeliz com alguma coisa. Como estar satisfeito com diferenças, ou indiferenças, gritantes. Ou como estar feliz com o amor longe e distante? Só mesmo Penélope para ainda amar Odisseu no meio de tantos pretendentes e do mar revolto que o levava cada vez mais para longe.
Mas o amor não é a minha seara, tenho que ficar atento no cimo do outeiro observando a guerra das formigas.

Carlos Vilarinho
04/11/07

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008


O SEGREDO DO UNIVERSO

Sem ondas de rádio, televisão e muito menos Internet, Platão há mais de dois mil anos já desconfiava do universo paralelo. Em sua astrologia judiciária, Platão muito provavelmente acreditava que depois que todos os planetas completassem seus ciclos e voltassem ao ponto de partida para então recomeçarem a rodar, influenciariam diretamente na história e na vida das pessoas na terra. Há no mínimo essa suposição e conjetura em “TIMEU”. Livro de natureza cosmogônica. Dessa forma tudo que ocorrera desde Atenas antiga, talvez antes até, ao ano em que os planetas encerassem seus ciclos, tudo voltaria a acontecer. Idênticos ou não, mas voltariam.
Isso seria intrigante para todo mundo, sobretudo para quem lê muito e vive banhado de dúvidas ao longo da existência própria. Mas não é só isso. O Eterno Retorno de Nietzsche fala de forças que retomarão seus lugares em face da finitude de variações que se apresentam em, digamos, sua rota biossintética, ou em seus ciclos moleculares. Nietzsche também achava que sempre houvera algo secreto no tempo do universo e que é fatal o retorno para a vida que se vive ou que já se viveu. Isso sem falar que Zaratrusta já pregava em seus sermões o além-homem que surgiria depois da morte do próprio homem. Morrer para renovar. Um e outro, Platão e Nitzsche, sem querer tomar partido ou comprar cegamente qualquer uma das teses, foram homens com visão de mundo muito além do eu de cada um deles. Outro viés sobre o tempo circular, é negar em sua plenitude o passado e o futuro. Como Schopenhauer, comemorar “a forma de aparecimento da vontade é só o presente”. O fato de ter sido bebê, ter vivido uma adolescência conturbada ou ter passado por uma desilusão amorosa quando jovem adulto, não significa efetivamente que tudo isso foi o passado de quem quer que seja. Como também planejar o futuro, sua casa própria, seu carro e os filhos na faculdade. Tudo isso poderá ocorrer sem planejamento prévio, se já for ocorrido em outro ciclo ou dimensão e desde que siga seu caminho sempre fazendo ou tentando fazer o melhor. São os “tempos passados”. Tomemos por “tempos passados” outras vidas já vividas. Ou melhor, a mesma vida já vivida quando ao término do ciclo planetário de Platão, por exemplo. Ou pelas forças e repetições dos átomos, assim falou Zaratrusta. Ou, porque não, ciclos de vidas anelares em torno do planeta formando tempos distintos de cada um de nós, teoria do cronista que vos escreve.
Por enquanto nada de teorias espíritas e/ou religiosas. Mas como ficaria então a teologia católico-cristã de Adão e Eva que comeram o fruto proibido? Mito que designa a tentação e o saber. Mitos são para transformar consciências, história fictícias com fundo moralista. Esse daí mesmo foi criado pela religião para amedrontar o homem. Ou, e a negação do Eclesiastes de toda e qualquer novidade do mundo? Aí provavelmente não seja mito. Ou até mesmo os reconfortantes salmos? Genialidade humana na criação da palavra.
Penso que tudo se encaixa devidamente. Desde os ciclos planetários, passando pelo Eterno Retorno e seu arauto Zaratrusta, presente, passado e futuro, Schopenhauer, entre tantas as teses do tempo e do universo. Talvez seja assustador, entretanto será consolador e revigorante. A existência de uma vida (ou de todas as vidas) no mundo parece(m) realmente repetir-se. Muito se assemelha com filmes de ficção científica em que o cientista fica preso na roda do tempo repetindo tudo que já havia feito ou passado. No filme ele tenta consertar sempre aquilo que deu errado em sua vida e conseqüentemente na dos outros. Pode-se inclusive sustentar Darwin e suas evoluções através do tempo. Pode-se inclusive prestar atenção na evolução tecnológica. Pode-se inclusive lembrar o psicanalista Carl Jung e seu inconsciente coletivo. Pode-se, como fez Borges em seu “O TEMPO CIRCULAR”, lembrar as reflexões de Marco Aurélio quando diz “Quem viu o presente viu todas as coisas: as que aconteceram no passado insondável, as que acontecerão no futuro”. Ao que tudo indica, o segredo do universo é tão simples e ao mesmo tempo atemorizante que fica ou acrescenta-se mais uma dúvida no espaço cósmico. Einstein, por exemplo, vivia no mundo da lua em conjecturas univérsicas. Sabe-se que o cientista passava horas lendo as histórias de Platão sobre imortalidade a um parente enfermo. Ele era um gênio intuitivo com um talento analítico. Provavelmente foi quem mais tenha chegado perto do verdadeiro e real enigma do universo.
Retornando à teologia católico-cristã. Cristo voltará (talvez até já tenha voltado ao longo dos ciclos em outra pele) e provavelmente usará as mesmas palavras ou no mínimo algumas parecidas. Os santos, orixás, guerreiros e outras culturas, podem ser encaradas como simples crendices ou como pessoas que sofreram. E aí se coloca o sofrimento como um, digamos, atalho para a sabedoria divina. Ao chegarem a tal estágio de sofrimento e de conseqüente sabedoria, transcendem e, de novo a tese cristã, tornam-se luz no universo. Esses que viraram luz são os anjos da guarda que protegem os seus na terra. E os demônios, de acordo também com a tese religiosa, esses são os malvados e perversos que ao encerrarem seus ciclos, diga-se morrerem, não se arrependem no último minuto e negam as indulgências misericordiosas. Dessa forma são formados guetos do mal trabalhando invisivelmente para atazanar a vida dos seus desafetos. Ou não, a vida de qualquer um. O que eles querem mesmo é ver a desgraça alheia. Esses talvez voltem ou não, provavelmente há um julgamento no universo. Pessoalmente gostaria que esses diabos sucumbissem num gigantesco buraco negro. Como o homem foi o mais inteligente dos animais e por isso evoluiu através do tempo, ele criou um mecanismo de defesa infalível. A palavra, como já dito lá em cima. Desde então, entoando cânticos xamânicos, mantras e salmos eles acreditam que afastam esses demônios ou maus espíritos, como queiram. O léxico como arma da inteligência unido à fé que remove montanhas. Certo, ninguém desdenha que a palavra tem lá sua força, e ao que parece tem mesmo, mas para terminar, há no mínimo uma dúvida altamente intrigante e maior do que todas as outras. Se assim for realmente, então as indulgências misericordiosas, que falei acima no parágrafo, são fornecidas pelo universo em harmonia para todo ser humano, onde então estaria Deus? Será que ele está atrás de nossas próprias representações, como supôs Jung?
O fato é que a vida parece ser constituída de ciclos intermináveis. Termina e recomeça. Agora, não há como precisar quando um ou outro nascerá novamente. Isso é outro segredo do universo.


Carlos Vilarinho 3/12/2006

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Leitores, meus! O blog ogroquirimaniaco criado a partir de um conto de minha autoria (O OGRO QUIROMANÍACO) vem satisfazer a vontade de amigos e leitores que conhecem meu trabalho. Ler, pensar e comentar. Não somente o texto postado mas a vida como um todo. Literatura, amigos, é o homem, mulher, criança e cachorro também, respirando(plantas, répteis e asteróides). Além de encontrá-los aqui nesse blog criado por mim e novíssimo, também encontrarão textos meus em http://leitoracritica.blogspot.com/ da amiga, madrinha literária e sobretudo uma das principais incentivadoras Gerana Damulakis. Toda quinta-feira haverá um texto da minha autoria aqui no blog. Portanto sejam bem vindos e boa leitura!
Carlos Vilarinho
12/02/08

sábado, 9 de fevereiro de 2008

A DAMA


Foi lá na redação que vi Danyella. Estava sentado ouvindo o editor, pensando em tomar café. Ela veio e sentou-se ao meu lado. Não havia pensado em meu comportamento idiossincrático-meditativo ao longo da vida. Não sabia o que eu era. E agora sei quem sou. Tudo de praxe durante o falatório, a não ser quando o poeta tomou a palavra.
_Tudo, companheiros, é uma questão natural. Se analisarmos o tempo em sua passagem iminentemente e, muito natural, efêmera... e com a nossa perspicácia ao observar e interpretar os fatos para depois cria-lo e recria-lo teremos a notícia...
Eu tinha uma bolha no pé. Calçava um único tênis que possuía velho e surrado. Quando o poeta Carlos começou a falar, não sei porque, mas a coceira parou, deu um tempo. Pensei na passagem do tempo para escrever minha matéria. Então, olhei Danyella ao meu lado. Ela estava com uma calça colada ao corpo. Desenhava toda sua perna. Algo fantástico contatou minha energia com a dela que, sem querer e com o pensamento voltado a um texto que teria que escrever, esperei Danyella levantar.
_...não que não tentemos, não que não pensemos, não que não saibamos e alguns não sabem, mas as mulheres devem ser bem tratadas...
A bolha no pé voltou a coçar. Estava usando também um desodorante forte, ativo e aquilo me deixava renitioso. O poeta Carlos é um bom amigo, um sujeito muito parecido comigo. Gostava de beber cerveja e falar na seleção brasileira. Enxergava nas entrelinhas e até um pouco histriônico com relação às mulheres. O poeta era tão sensível que me fazia observa-lo ali com uma coceira nos pés. Sentia a volúpia da coceira. Notei então a mira acre e o bigode revoltoso de Valcélio a espionar indignado a minha coceira.
_... e foi assim que Nietszche chorou, amigos... eu enquanto jornalista e com tantos fatos falsos noticiados pelo mundo afora, criados a partir da imaginação de um homem, digo-lhes que o que estão querendo fazer com nossa classe é um absurdo.
A reunião decidiria o dissídio coletivo. Havia no paroxismo da vida uma existência paradoxal que era o jornalista desinformado. A turma toda estava além da indignação. Não abri a boca para dizer que era verdade tudo aquilo, o fato do desconhecimento, mas a minha presença incomodava boa parte da redação. Danyella então se levantou e ali eu senti o que há muito não sentia. Um tremor no coração e um desejo quase incontrolável. Durante o seu andar até a cafeteira envolvi-me numa espécie de transe em conexão com o universo feminino. Danyella me causaria, a partir daquele dia, muito embaraço de excitação espontânea.
_...Fernando Pessoa genialmente falou que ficava no cimo de um outeiro olhando o seu rebanho, ótimo, amigos, se tivéssemos agora um Fernando, ou melhor, Alberto Caeiro, a nos olhar e nos guardar lá de cima no papel que está no seu pensamento...
Não sei quanto tempo o poeta falou, não prestei mais atenção depois que pus meus olhos em Danyella. Passei o resto daquele dia inquieto e excitado. Segui a mulher até o lado de fora da redação e minha excitação amoleceu quando a vi entrar num carro e seguir com um outro homem. A bolha de meu pé voltou a incomodar, o sangue que corria dentro de mim com mais intensidade, tornou-se um córrego que parecia jazer de tristeza pela ausência de Danyella.
_Jornalista, para que lado fica o amor?
Um velho que ficava todos os dias na porta do jornal limpando sapatos me perguntou isso. Aliás, ele já havia me perguntado em outras situações e eu indignado e sempre injuriado com as coisas da vida.
_HUMPF!!!!
Naquele dia eu respondi.
_O amor acaba de entrar num carro.
E foi ele mesmo, o engraxate, quem me contou sobre Danyella.
_É, eu vi. Aquela dama causa frisson em todo mundo quando chega. Ela é casada com um palermão que aparece de vez em quando na televisão convocando o povo para ir à vigília dos crentes... Tem também um filho com o tal palerma chamado Esdras. È muito tímida, sensível e carente...
_Como é que você sabe disso tudo?
_Jornalista, tenho sessenta anos e já tive meia dúzia de mulheres, conheço todas... a dona que virou sua cabeça tropeçou no próprio salto e segurou-se em mim e eu a segurei para não cair, acredita, jornalista, que só com esse toque ela ficou toda arrepiada?
A imagem dos seios arrepiados de Danyella veio imediatamente à minha cabeça. E saí para beber levando comigo na obscuridade dos pensamentos aquela dama que só mil talheres iam satisfaze-la.
Ao chegar à redação no dia seguinte, rodei em torno de mim mesmo para busca-la. Não a vi, quase entro no desespero, quando em seguida ouvi um melífluo “licença”. Era ela. Ouvi ao mesmo tempo o estrondo retumbante do meu coração acelerado. Danyella olhou dentro dos meus olhos e riu um riso contido num sopro de respiração. Eu ri também e emendei.
_Toda licença do mundo para a dama seguir seu caminho suavemente.
Ela olhou novamente e riu um riso menos contido. Lembrei do engraxate e imaginei os pelos eriçados do sexo de Danyella, junto a uma gota de suor. Não sei porque mas veio à minha mente Dom Pedro II. Tempos atrás havia lido um livro sobre o imperador deposto. Dom Pedro teve muitas mulheres e uma dedicatória que fez para uma delas ficou em meu pensamento “Não consigo mais segurar a pena, ardo de desejo de cobri-la de carícias”. Um dia direi isso a Danyella, prometi a mim mesmo. Depois de alguns meses estávamos bem próximos. Sabia que de uma forma ou de outra Danyella me admirava e pensava em mim. Sabia que me olhava enquanto os meus olhos não estavam ao alcance dos olhos dela. Esgueirava-se na cadeira para ver como eu tratava as outras colegas, denotando um arroubo ciumento que a sua discrição e complacência não deixavam transparecer o que sentia por dentro, talvez passeasse por seu coração a dúvida de ser especial. Não deveria duvidar se me conhecesse perspicazmente. Enfim estávamos na atmosfera romântica marcada por um ponto de intersecção que nos unia em algum lugar do universo. Trabalhávamos um em frente ao outro e cada vez mais eu a desejava. Acho que ela também. Inventei até projeto fantasma para ficarmos juntos, discutirmos e enquanto discutíamos eu a imaginava nua, sem o seu vestido azul. Um dia, entretanto tudo começara a se concretizar, ao cair no chão a caneta com que trabalhava, abaixei para pegar. Foi assim que vi o talho de Danyella todo descoberto. Ela estava só de vestido sem nada por baixo. Fiquei nervoso com a visão que tivera, e ela percebeu. Riu de esconso e levantou-se para ir à cafeteira. Olhou para mim de soslaio e quebrou para o banheiro. Eu fui atrás. Ela entrou esperou entrar e trancou a porta.
_Estou pronta.
Beijei a mulher com furor, segurei o sexo com vontade, coloquei-a em cima da pia que quebrou. Levei então para o vaso, sentei e encaixei Danyella sem dar espaço a vácuo. Ela escorregou em cima de mim teso, duro e viril, soltou um urro de amor contido. Como dois animais em transe de orgasmo nos amamos no banheiro da redação por quarenta minutos. Ao sairmos deparamo-nos com o poeta Carlos escorado na parede com dor de barriga, eis que me disse:
_Não há nada senão o fetiche
Não há nada senão o cio dolorido e desejoso de um poeta
Não há nada como saciar a dor
Não há nada como beber o amor...
Na última carta que mandei a Danyella, coloquei a frase que prometi a mim mesmo “Não consigo mais segurar a pena, ardo de desejo de cobri-la de carícias”

Carlos Vilarinho
18/11/07



USURA, PEDERASTIA E CLEMÊNCIA PARA OS NÉSCIOS...



Andava sempre metido em terno preto. Eram dois somente. Um puído e outro menos gasto do que o primeiro para seguir com seu intento. Deu sorte e herdou tudo que tinha. Foi esperto e conseguiu multiplicar tudo que obteve por direito. Contudo, e ao que parece, os meios de multiplicação do patrimônio não foram assim tão lícitos. Cresceu amiúde, vá lá. Mas desde o dia em que a mulher o abandonou com o filho pré-adolescente, dez, onze anos, e saiu dizendo a todos que vira um demônio gordo e fétido que o acompanhava comendo dinheiro. Ele tornou-se membro de uma igreja evangélica. Então começara a terapia sacerdotal e a caridade subjugada, tudo para recuperar a imagem.
_Não sou eu quem vai lhe dá a clemência, Senhor Belmiro... Pois não temos nada em comum, nenhuma discórdia ou alguma contenda travada para que eu lhe conceda clemência...
_Como não? Não é necessário contenda... Nesse caso você funcionará como funcionário divino, mandado por Deus e me descarregará, me tornara livre de tal influência...
_Que influência, Senhor?
_Ora, minha mulher me abandonou há dez anos dizendo a todos por aí que um demônio gordo me acompanhava comendo dinheiro... De lá para cá tenho feito caridades, mas ainda sinto o corpo pesado e sempre vejo vulto me seguindo...
_Senhor, compreenda, a errada em sua história foi a sua mulher que o abandonou, de mais a mais não existe demônio que come dinheiro, isso é invenção do candomblé... O demônio é um só e está em toda a parte...
_Isso não é meio contraditório? Como ele é um só e está em toda parte?
_Ele é o Deus do mal...
_Deus do mal?
_Sim...O que posso lhe sugerir como Pastor e estudante de psicologia é que fique atento aos seus sonhos, eles sempre dizem algo...
O seu trabalho era administrar os bens e os dotes. Era dono de uma vila de casas. Doze casas, todas alugadas num terreno grande e fértil. Muitas plantas medicinais no local: boldo, erva-cidreira, maria-preta entre tantas. Árvores frutíferas em um quintal barrento onde a terra e os animais domésticos viviam em uníssona harmonia. Os inquilinos sorviam-se das árvores, dando-lhes em troca carinho e cuidado.
_Quem ela pensa que é? Aquela terra e aquelas casas são minhas, eu as adquiri, eu as construí com os meus recursos, com as minhas mãos... E agora vem uma fulaninha não sei das quantas para colocar ordem em meu cortiço...Não, se preciso for, crio uma cláusula no contrato para quem usar a terra indevidamente...
_Mas o que é usar a terra indevidamente, meu pai?
_Menino! Se você não se ocupasse tanto em ler essas besteiras que lê, se me ajudasse, não faria uma pergunta dessa...
Discutia à porfia, durante o jantar. Na fala anterior quase se engasgou com o pedaço de abóbora que colocou goela abaixo para em seguida avançar sobre o naco de carne gordurosa e ensebada que boiava na tigela. Olhou raivoso e com usura para o filho que não notou a avareza carnívora do pai. Uma cena muito parecida com a de Perilo Ambrósio, personagem usurário e desumano de João Ubaldo, quando foi expulso de casa pelos pais portugueses em VIVA O POVO BRASILEIRO.
_Eu escolhi estudar literatura, meu pai... É isso que eu quero, faço e pago com o meu trabalho...
_Grande trabalho... Ficar arrumando livro numa biblioteca...
_É um trabalho tão digno quanto o do senhor...
_Não... Por que não quis arrumar os livros da biblioteca da nossa igreja? Além do mais o meu trabalho é cuidar o que vai ser seu um dia...
_Se vai ser meu um dia, então deixe que eu administro a vila...
_Ora, João Batista! Que piada! Você mal saberia lidar com aquela infame que fez uma horta no quintal... Plantou árvores sem o meu consentimento...
_Então é isso que o senhor chama de usar a terra indevidamente?
_Claro! A terra é um lugar sagrado que pertence a um dono… E esse dono sou eu... Eu sou o Moisés daquela terra...
_(em voz baixa) Ramsés, isso sim!
À noite e pela primeira vez o senhor Belmiro sonhou com o demônio comilão. Foi um sonho intercalado, dividido em partes. Como uma câmera cinematográfica alternando o Zoom. Ao mesmo tempo em que o demônio dava-lhe ordens e exigia usura e usurpação dos inquilinos. Na outra cena, ele, o espírito de porco, devorava ferozmente a carne da esposa que fugira num prato em que se misturavam pedaços de seio, joelho e cotovelo com notas de cem reais. Atrás do cérebro estava o Pastor Osório com o indicador o repreendendo e ao mesmo tempo querendo mais dinheiro. Numa nuance conturbada o mesmo Pastor dava-lhe a clemência e depois se transfigurava, convertia-se, no demônio comilão de dinheiro.
_Pastor Osório! Pastor Osório!
_O que foi homem? Está branco!
_O senhor disse para prestar atenção nos sonhos...
_Sim! E o que sonhou?
_Foi horrível, Pastor, foi horrível! O senhor estava lá!
_O Nosso Senhor?
_NÃO! Claro que não! Foi o senhor... Você, Pastor... Você e ele...
_Ele quem, senhor Belmiro?
_O demônio comilão...
_E o que ele queria?
_Ele quer que eu faça algo com os inquilinos e quer dinheiro...
_Senhor Belmiro, sugiro que o senhor faça comigo uma sessão de descarrego... Faço isso coletivamente as terças, mas como o caso do senhor já está explícito...
_Explícito? Como explícito?
_Ora o senhor não está sonhando com a coisa ruim?
_Foi só uma vez...
_Vai sonhar outras e outras e outras... Então farei seu exorcismo particular, o senhor terá que adquirir em minha mão a água benta miraculosa para banhar-se...
_Eu compro.
As sessões de descarrego eram feitas nas manhãs de quarta, quando João Batista, filho de Belmiro, ia para a biblioteca. Ao término o Pastor recomendava sempre descanso ao endomoniado. Era o único dia que os inquilinos tinham folga dos pareceres ambientalista do proprietário e seu pequeno reino.
_E aqueles animais...
_Que animais, meu pai?
_Daquele desfavorecido... Ele cria um papagaio e dois cachorros, aquilo está um inferno, tenho que dar um jeito... O cachorro por pouco não me mordia hoje... Já disse para ele dar fim naqueles bichos...
_Meu pai, os bichos estão atrapalhando a vida na vila? A gente não mora lá e pelo que sei os moradores não se queixam da presença dos animais... Eles gostam...
_Ora, João Batista, não me venha com conceitos para se viver harmoniosamente... O mundo é dos homens...Já houve queixas daqueles animais, acordam, berram, gritam, latem de madrugada... Isso é verdade que já ouvi daqui... Amanhã entregarei os novos contratos, quem não assinar terá que ir embora...
_Isso não é certo...
_Quem sabe o certo sou eu... Ali, ninguém tem para onde ir e minhas cláusulas são essas...
_Isso é um absurdo, meu pai! Você quer acabar com a horta e as árvores que estão plantadas ali... As pessoas que cuidam do lugar, tem árvore ali de décadas... O que quer fazer? Cimentar tudo?
_Talvez coloque cimento, mas com árvore vai ser mais caro e ponto final...
Os momentos que antecediam e o ato do descarrego eram de total fatalidade e horror para Belmiro. Isso sem falar que o Pastor queria receber o pagamento antes da peleja demoníaca. Então toda quarta-feira ele desembrulhava uma caixa que ficava entre o colchão. Contava um bolo de dinheiro e amarrava no elástico. Claro e evidente que o restante voltava à caixa embrulhada e para dentro dos colchões. Um dia antes do início da sessão o Pastor Osório sentiu uma súbita dor de barriga. Correu ao vaso e voltou com uma expressão terrível e com uma vermelhidão pavorosa na face. Naquele dia o senhor Belmiro rezou muito pedindo clemência, mas mesmo assim nos seus sonhos à noite, ele veio. Trazia uma expressão firme, grotesca e de desprezo pela dor humana. Comia dinheiro e entrava num orgasmo prazeroso e fétido. Nessa parte o pavor que tomava o sono de Belmiro ia embora e ele também se refestelava na orgia da abastança. No dia seguinte levou o novo contrato de locação de imóveis aos inquilinos. A maioria assinou sem titubear. Outros não. Entre os que não assinaram, estavam: o dono do papagaio e dos cachorros e a moça da horta e dos arbustos.
_Misericórdia, senhor Belmiro, misericórdia...
_O senhor não pode fazer isso, essas pessoas que assumiram o compromisso não terão como cumprir, todos são pobres e mal tem o que comer, o que pagamos pela casa do senhor é o suficiente...
_Então se preparem, amanhã vou tirar todas as plantas que não foram plantadas por mim... Esse terreno é meu e quem faz as coisas nele sou eu... E ponto final...
_O senhor está nos negando a terra que pagamos para viver, senhor Belmiro?
_A terra me pertence, minha senhora... Não dei autorização a ninguém para plantar nada aqui... Nem cebolinha, nem mastruz, muito menos limoeiro... Também não dei autorização a criar cachorro no meu terreno... Eles cagam tudo, deixam tudo fedido, não quero cães aqui... Nem papagaio, já recebi reclamações a respeito desse bicho, acorda toda a vizinhança de madrugada, quando tudo ainda está escuro... E é verdade, porque eu escuto da minha casa os berros frenéticos desse papagaio...
_Mas os cachorros tomam conta das casas, e a horta e os arbustos novos, foram as crianças que plantaram... O limoeiro, aquele abacateiro que não tem nem um metro ainda... Foi minha filha e as amiguinhas dela que também mora aqui que plantaram...
_Problema... Arrancarei tudo... E não quero animais aqui... O contrato já está em suas mãos, assine ou vá embora...
_Senhor Belmiro, ninguém tem culpa da fuga da sua esposa... O senhor transfere a sua decepção, seu ódio incontido e enrustido pela mulher que lhe abandonou para gente...
_Se assunte, minha senhora... Nunca lhe dei deixa para comentar o que aconteceu ou deixou de acontecer comigo... Quem a senhora pensa que é? E quem é essa “perua do beco” aí ao seu lado? Quem a senhora pensa que é? Ministra do meio-ambiente ou militante do greenpeace
_Sou um inquilino que nunca atrasou nada do que devo, inclusive com relação ao senhor e a sua casa... Pago água e luz muito caro sem atraso... E agora o senhor vem em cima do seu pedestal de proprietário feudal fazer exigências fora de propósito... O que tem minhas plantas, minhas árvores? Elas valorizam seu terreno, enriquecem suas terras... Além de servir de quebra-galho medicinal e de tempero para comida...
Não houve acordo, no outro dia Belmiro arrancou a horta e os arbustos novos. Queimou tudo ao redor e mandou cimentar a terra batida. Dois dias depois do homicídio ambiental e particular, a atrocidade continuou. Acharam ao amanhecer os dois cachorros da vila mortos.




_Você nem sabe, Querido, o velho só pensa em clemência de Deus... Ele mesmo me disse que a mulher o abandonou, fugiu tempos atrás dizendo que via demônios em cima do cara, imagina... Morre de medo, o anciãozinho... Então, Querido, é assim que temos que trabalhar... Em cima do medo de quem tem medo...
_Eu ouvi essa história, tem muito tempo, desde então ele vive assim pedindo clemência, já freqüentou tudo quanto é igreja, e veio parar na nossa...
_Para mim tanto faz, Querido Aderaldo, eu quero é que ele pague a clemência dele em Real bem vivo... Só quero isso, por enquanto vou e mando ele rezar trinta, quarenta orações, depois pego o dinheiro e digo que é para o sacerdócio... Disse a ele que tenho Consentimento Expresso para o Exercício Sacerdotal, disse isso logo quando ele chegou aqui... Aliás, digo isso para todo mundo que chega aqui no desespero querendo clemência e misericórdia de Deus, se colar, colou...
_Ele acreditou, Osório?
_Claro, toda quarta-feira vou fazer o descarrego... Levo a água da torneira lá de casa e digo que está benta pelo Supremo Pastor...
_E você já contou a ele?
_Ao Supremo Pastor? Claro, ele sabe de tudo, cada um defende o seu, não é esse o lema? Se houver demônio ele que se arranje...
_E se houver demônio realmente?
_Ele está acreditando nisso piamente... Veja, teve um dia que eu forjei uma dor de barriga e fui ao banheiro, lá eu me maquiei todo com um pó vermelho, daqueles que o Supremo Pastor usa para impressionar quando finge estar tirando demônio do corpo de um de nós, voltei com horror na face e comecei a sessão, apavorei o homem... Outro dia me disse que sonhou comigo junto com o tal demônio, disse-lhe que isso fazia parte do exorcismo... Quer saber? Ele merece mais do que isso... O que ele faz com os inquilinos dele, é pouco para o que ele sofre em minha mão, se depender de mim ele nunca terá clemência... Nunca. Agora vamos deixar de conversa fiada e me beija, vai, amor...




_Você soube o que houve na vila do pai de João Batista?
_Os cachorros comeram veneno, não foi?
_Não foi só isso não, houve um princípio de incêndio... O pai dele, o velho Belmiro, tocou fogo nas árvores... Menina! Parece que o velho está maluco, depois de tudo, com o fogo e as labaredas querendo engolir a vila inteira, ele se ajoelhou implorando clemência... Foram chamar o Pastor que dizem que fazia descarrego na casa dele e o desgraçado pulou fora... Dizem que o velho paga uma fortuna para ele...
_Aquele Pastor? O Osório? Aquilo é uma bicha, Menina...
_O Pastor?
_Por que o espanto? Ouvi dizer que aquilo é uma orgia só... Ele tenta se esconder dentro da doutrina e dos dogmas religiosos, estuda psicologia e todo mundo na faculdade sabe da viadagem dele...Bichona enrustida, isso sim! Aliás, nem sei mais como se conceitua “igreja”... É um jogo de poder sórdido e hipócrita... Um absurdo, mas a religião é usada, manipulada por vaidade, para aparecer bem no conceito público e por trás daquele véu negro e fedorento estão as piores coisas... Preconceito, pederastia, desejo e vontade da carne... Há casos em que a tal caridade cristã é escolhida, sabia? Eles escolhem quem deve receber as caridades, as doações... O lugar que seria para purificar, renovar energia, serve até para lavagem de dinheiro, além de crimes que não se deve falar...
_Eu também já ouvi dizer... Inclusive tem até homicídio no meio... Uma história mal-contada, segundo dizem, que um garoto flagrou dois pastores em sexo oral e saiu desesperado gritando assustado...
_O tal garoto que encontraram morto um dia depois..._Isso mesmo! Eu só acredito em Deus... Faço minhas orações em casa sozinha, peço e mesmo assim me conformo com o que tenho... Igreja? São todas da mesma laia...
_Pois é! Com tudo isso só tenho pena do pobre do João Batista...
_Que pena! Perdeu o emprego por causa da arrogância e tirania do pai...
_O que o pai dele tem a ver com isso?
_O dono dos cachorros que amanheceram envenenados e mortos é irmão da diretora daqui, da biblioteca... Ele, o João Batista, tinha indicado a casa da vila para o rapaz, um favor que fez à diretora... Mas o que se sabe é que o pai, o velho Belmiro, não gostou que o filho intercedesse quando soube de que se tratava de alguém daqui da biblioteca, em favor da diretora... O velho nunca gostou da biblioteca, nem de livros, nem de leituras... João Batista deve ter saído à mãe, então... O velho vivia criticando até mesmo o curso de literatura do João Batista e segundo soube, antes do iminente incêndio, houve uma discussão e a diretora estava lá, pois tinha ido visitar o irmão e ao que me consta o velho a desrespeitou chamando-a de “perua do beco”...
_ Menina, que barraco, hein? Quem não tinha nada a ver com o peixe, foi quem pagou o pato! Misericórdia, Pai... Clemência para esse povo!



Alternadamente.
Uma quarta-feira o Pastor Osório faz o descarrego de Belmiro. Na outra quarta quem vai é o Pastor Aderaldo...

Carlos Vilarinho
O HOMEM QUE NÃO QUERIA MORRER


Deitado em sua cama, enfermo e moribundo. Mais tarde em coma. Fausto declinava em sua mente a idéia da morte iminente. Fazia a eterna reflexão dos quase mortos e muxoxava a cada dez minutos. Entre os espaços dos muxoxos grunhia e falava para si mesmo e imperceptivelmente para a mulher que assustada e incrédula com a partida do marido rezava sem parar. Fausto reclamava das orações, não se entregava para extrema-unção. Havia ainda de escrever um livro sobre tudo que vira em sua vida e para isso demandava tempo, talvez mais um ano. Fausto lembrou-se como matara um comunista na alta ditadura. A sangue-frio, olhando nos olhos do miserável. Atirou primeiro no joelho estraçalhando-o e deteve-se observando a dor e o sofrimento do stalinista. Isso durante uns quarenta minutos, até o comuna se acostumar com a dor e dizer-lhe mais impropérios. Em seguida, colocou-o com a bunda para cima e fez quatro soldados seviciá-lo, para depois capá-lo. E derradeiramente, depois de horas de atrocidades em nome da pátria amada, dizimou-o despachando o militante revolucionário para o inferno das almas, segundo ele próprio. Talvez essa fosse a lembrança mais marcante de Fausto. Foi a sua primeira vítima, logo que foi alçado a condição de capitão. Não teve calafrios ou remorsos. Nem tampouco lembranças da face estarrecida de dor do sujeito que teimava em cantar a internacional até morrer. Em contrapartida quando a ditadura acabou o exército tirou-lhe todas as honrarias quando pela quinta vez insistiu em denegrir o general César, no quinto ano consecutivo durante o desfile de sete de setembro. Durante os cinco anos, Fausto bradava com todos pulmões e num paroxismo exagerado que o general César era um homossexual desclassificado e pedófilo. Durante a marcha em revista. Dessa forma, Fausto explicava a senhora Morte, dona de um perfil soturno, funesto e esquelético, que ela não poderia levá-lo a cabo naquele momento. Não que ele estivesse com medo ou receoso de encontrar o Cão dos infernos, não era nada disso. Até porque ele se considerava tão ruim quanto o desgraçado das sombras. Mas Fausto queria registrar sua vida para aqueles que ficavam.
_Basta de asneiras, Fausto! Você é agora nesse momento o homem que deve morrer e ponto final... São ordens.
_Ordens de quem? Posso saber? E por quê cantas?
_Você só saberá depois que fizer a passagem... Vamos logo com isso, vim te buscar e tenho pressa, mais tarde tenho outro encontro com um escritor lá na Bahia...
_Ora, a senhora bem sabe que não é assim que se trata o algoz da humanidade, eu vim ao mundo para matar e dar-lhe serviço, não para ser levado às pressas por quem propriamente me incumbiu da missão.
_Aquele trato nosso já faz muito tempo, você já morreu e já nasceu de novo e nunca me deu tanto trabalho para levá-lo como agora. Além do mais essa vida sua que agora se esgota foi lhe dada para a sua remissão o que de nada adiantou...
_Quem é ruim sempre será ruim, Morte, você sabe disso melhor que ninguém... Que música renitente!
_Ora, vamos, Fausto, lá você terá muito tempo para lenitivos e arrependimentos...
_Não, jamais me arrependerei, nem preciso de descanso ou alívio... Preciso de tempo para as minhas memórias...
_E para mim urge o tempo para vim buscar os meus, os do Cão... Você teve setenta e seis anos para se recuperar e não me ver mais, se isso acontecesse não seria eu que estaria aqui e sim um anjo torto.
_Se assunte, Morte desnaturada, por acaso eu tenho semblante ou perfil de quem precise de anjo? Ainda por cima torto. Não, Morte, mesmo que para você e para o cão aqui seja um mundinho besta e repetitivo, onde os homens afadigam-se por asneiras e coisas minúsculas, eu tenho cá comigo que esse mundo dos vivos ainda deseja o meu corpo e minha mente, principalmente a minha mente, permeando os caminhos verdes do universo em harmonia...
_Ora, Fausto, tanta bobagem e tolice sai de sua boca... Está dado à poesia agora na hora da morte? Você nunca foi sensível a verde, nem a universo algum, nem mesmo em harmonia como inventas... É bem verdade que o universo dá a chance, mas jamais ele está em harmonia... Deu-se agora para acreditar também em Deus, Fausto?
_Sabes que nunca fui dado a essas tolices, invenção dos fortes para colocar medo e enfraquecer mais os fracos... Crendices que não levam a nada... O Cão existe sim, ele está aqui comigo travestido de morte e quer se alimentar de tudo que eu sei... Mas não lhe dou miserável, não sem antes escrever ao mundo o grande homem que fui...
_Agora entrou no delírio. Você nunca foi um homem de letras, qual o motivo agora de juntar letrinhas para leituras? Vai colocar todo o sangue que derramou no seu livro?
_Não derramei sangue em vão, Morte, fizemos um pacto antes de eu nascer, combinamos que eu mataria os mais importantes e que lhe daria, talvez só bastasse um, mas como saber qual era aquele um que saciaria de uma vez só seu apetite sanguinário? Na primeira vez, quando matei aquele desgraçado comunista, senti um gosto amargo seguido de êxtase e clímax, quase que sexual, não consegui parar mais de matar.
_O combinado não foi nessa vida, Fausto. Você veio para cá dessa vez para se redimir como já disse... Esqueceu o choro que tiveste antes de nascer? Pedindo perdão ao seu universo em harmonia? Ele é generoso, eu e o Cão, não... Ele lhe deu a oportunidade, aliás, o universo é tão bobo que concede oportunidades a todos, mas você já estava arraigado no sangue alheio, onde sentia cheiro de tragédia, morte e traição, você se apresentava... Então de posse dessa certeza marginal e perversa que lhe absorvia, você próprio tinha conhecimento que jamais ia se recuperar para ser homem bom... Você já nasce, Fausto, pensando em perversidade, assim como você, talvez mais da metade da população não preste, de uma forma ou de outra, o homem vem ao mundo pensando em prejudicar seu semelhante e por isso o Cão não desaparece, porque o homem não quer...
_O Cão não desaparece porque é ele quem comanda as ações, mas a mim ele não vai comandar, eu não posso, e não quero morrer agora, simplesmente porque o Cão ordenou você vir me buscar, não foi dele as ordens? E, por gentileza, pare com essa sinfonia...
_Quanto mais você se espernear, mais a sua doença se agrava, você não tem saída, está todo podre por dentro e sob efeito de remédio para não sentir dor, contudo se você preferir, poderá ficar mais um pouco, mas saiba que os remédios não vão conseguir aplacar sua dor... Está escrito que você terá que sentir pelo menos a metade da dor de todas as pessoas que matou e fez sofrer... Isso não são ordens do Cão, foi você que assim quis quando nasceu e combinou com o seu universo em harmonia... Não lembra, não é? Claro que não, você prometeu uma coisa e se não seguisse o prometido com o universo morreria novamente na penúria e assim o fez, continuou fazendo o que sempre quis, fartando-se de sangue alheio e inocente... A sua índole, Fausto, é suja e você é desprezível.
_Ora, vejam só! Vejam só quem fala que sou desprezível.
_Achas então que é um homem de valores?
_Evidente que sim.
_Para o seu universo em harmonia, homem de valor não tira a vida de outro.
_Ora, matei quem devia morrer, só isso.
_Tem certeza?
_Claro.
_Por que então não matou o general César?
_Não tive oportunidade.
_Teve sim, não matou porque achava que ele era mais poderoso do que você. E ele é mesmo. Apesar da reles viadagem, o general César consumiu sua força e desde ali você começou a sentir dor, não foi?
_Que dor?
_A dor moral, Fausto.
_Que moral? Nunca tive moral, nem ética, nem nada... E agora você sai das trevas para vir me falar dessas asneiras...
_Achava que não tinha porque sempre passou por cima dos outros, desrespeitando-lhes, quando você passou a ser o perseguido e desrespeitado sentiu o que era isso... Sentiu tanto que foi definhando até ficar aí onde está agora se debatendo querendo sofrer mais... E vai sofrer, Fausto, seu ciclo de oportunidades finda-se aqui, suas próximas vidas serão de agruras, dissabores, aflições e sofrimentos e mesmo assim, ao que parece, você continuará ruim e perverso como sempre foi...
_Ora, veja lá com quem você fala, Morte dos infernos, sou o capitão Fausto do sétimo regimento de cavalaria do exército da república do Brasil, veja lá, Morte e alto lá...
_Você tem poucos minutos, Fausto, é melhor acordar e se despedir daquela pobre mulher orando desesperada por você, mas em vão, o universo não irá ouvi-la... Você ainda tem quem ore por você, miserável, ainda que seja só uma pessoa, porque o resto do mundo lhe odeia, até seus filhos...
_Meus filhos?
_Sim, seus filhos.
_Você deve estar enganada, Morte, só tenho um filho...
_Você é que está enganado.
_Tenho um filho chamado Dante, em homenagem ao poeta italiano criador do inferno humano, tá vendo? Dizes que não conheço as letras, mas conheço os autores, sim senhor...
_E Paulo?
_Não tenho filho chamado Paulo.
_Você me disse há pouco que matou quem deveria morrer...
_Isso mesmo...
_Seu filho então devia morrer?
_Meu filho é um desnaturado, chama-se Dante, já lhe disse... Me abandonou quando soube que eu fazia aqueles servicinhos para o exército, você sabe...
_Para o exército e para sua alma enlameada...
_Que seja, mas para mim ele morreu mesmo, não mora mais comigo e sequer vem ver a mãe, queria levá-la com ele, eu não deixei.
_Você não conhece Paulo?
_Nunca conheci um Paulo na minha vida.
_Disse-lhe há pouco, Fausto, que bastaria uma morte para cumprir a sua missão, você não lembra mas você fez um acerto com o universo em harmonia e logo em seguida antes de nascer fez outro acerto comigo e com o Cão. Disse-lhe na oportunidade que você não teria coragem de nos mandar seu próprio filho, você retrucou e garantiu que nos mandaria e com requintes de perversidade. Confesso que nem eu, nem o Cão acreditamos muito, mas como se tratava de uma alma de natureza enfumaçada e baixa, ficamos à espera... Para nossa surpresa você cumpriu com o combinado, estávamos quites, você matou todas essas pessoas que agora aparecem atrás de mim e que estão lhe esperando, por conta própria. Bastava aquela primeira morte, Fausto, lembra? Aqui está ele, seu filho Paulo... O filho que você deixou a mingua por que a mãe dele era uma empregada doméstica... Marlene, assim ela chamava-se... Marlene encantou-se por você ao vê-lo pela primeira vez na casa de sua vó, desde então você passou a cortejá-la, quando seu pai descobriu e deu uma surra nela acusando-a de sedução... Mas foi você quem a seduziu, Fausto... Antes de ser abandonada, Marlene revelou que esperava um filho seu, você deu as costas, chamando-a de puta-mentirosa para ganhar créditos com seu pai... Ela pariu Paulo, o filho que você estraçalhou o joelho e mandou que os soldados o currassem, Lembra? Claro que lembra... Este é seu filho, Fausto, que você nos presenteou com requintes de perversidade, prepare-se porque ele também vai acertar as contas com você...
A morte levantou-se da cadeira e numa espécie de respiração inflada passou de um semblante esquelético e frágil para um musculoso e terrificante degolador cortando-o ao meio. O intestino, os miúdos e outros órgãos podres e fétidos voaram pelos cantos do quarto. A mulher que orava sentiu o último suspiro do algoz da humanidade, não chorou, não disse nada. Respirou aliviada.
Paradoxalmente à vontade do miserável, a Morte percebia regozijada e zombeteira num quase gozo devasso ao alívio da mulher que orava numa insistência misericordiosa. Junto ao alívio, veio a perplexidade e um cheiro de enxofre. De repente, admirada e irresoluta, adquiriu um riso irônico e perverso agora a contornar-lhe o rosto. Gargalhou ao ouvir a sinfonia que invadia a atmosfera fúnebre.
“TODOS OS HOMENS DEVEM MORRER” de Bach.

Carlos Vilarinho
Autor de "AS SETE FACES DE SEVERINA CAOLHA & OUTRAS HISTÓRIAS" (funceb 2005), "A RESTITUIÇÃO DOS ZACHEUS" entre ourtros.